Filosofia para leigos

Bertrand Russell

 

Nota introdutória

O texto do filósofo, matemático, educador, crítico social e ativista político inglês Bertrand Russell (1872-1970), abaixo republicado em português, foi obtido do portal da Bertrand Russell Society (BRS; https://users.drew.edu/jlenz/brs-about-br.html). Embora tenha sido publicado no livro Unpopular Essays (1950; Ensaios impopulares) a sua origem é uma palestra que o filósofo fez para a rádio BBC em 1946. A versão em português deixa transparecer o estilo conversacional e o idioleto russelliano, que o inteligente leitor de PortVitoria não terá dificuldade de entender. Joaquina Pires-O’Brien

Desde que existem comunidades civilizadas, a humanidade vem sendo confrontada com problemas de dois tipos diferentes. Por um lado, tem enfrentado o problema de dominar as forças da natureza, de adquirir o conhecimento e a habilidade necessários para produzir ferramentas e armas, e para encorajar a natureza na produção de animais e plantas úteis. No mundo moderno esse problema é tratado pela ciência e pela tecnologia, e, a experiência tem mostrado que, para lidar com o mesmo adequadamente, é necessário treinar um grande número de cientistas altamente especializados.

Mas há um segundo problema, menos preciso, e, erroneamente, considerado por alguns como sem importância. Refiro-me ao problema de como empregar melhor o nosso comando sobre as forças da natureza. Isso inclui temas inflamatórios como democracia versus ditadura, capitalismo versus socialismo, governo internacional versus anarquia internacional, especulação livre versus dogma autoritário. Em tais questões, o laboratório não pode dar nenhuma orientação conclusiva. O tipo de conhecimento que mais ajuda na solução de tais problemas é um amplo levantamento acerca da vida humana, tanto no passado quanto no presente, e, uma apreciação sobre como as fontes de miséria ou de contentamento aparecem na história. Verifica-se que o aumento da habilidade, por si só, não assegurou nenhum aumento da felicidade ou do bem-estar humano. Quando os homens aprenderam a cultivar o solo, usaram os seus conhecimentos para estabelecer um culto cruel de sacrifício humano. Os homens que primeiro domesticaram o cavalo, empregaram-no para pilhar e escravizar povos pacíficos. Na infância da Revolução Industrial, quando os homens descobriram como fabricar produtos de algodão com máquinas, os resultados foram horríveis; o movimento de Jefferson para a emancipação dos escravos na América, que já estava perto do êxito, foi extinguido; o trabalho infantil na Inglaterra desenvolveu-se ao ponto de uma terrível crueldade; e o impiedoso imperialismo na África foi estimulado na esperança de que os homens negros pudessem ser induzidos a se vestir com os produtos de algodão. Nos nossos próprios dias, uma combinação de gênio científico e habilidade técnica produziu a bomba atômica, mas, após tê-la produzido, estamos todos aterrorizados e não sabemos o que fazer com a mesma. Esses exemplos, de períodos muito diferentes da história, mostram que algo mais do que habilidade é necessário, algo que talvez possa ser chamado de ‘sabedoria’. Isto é algo que deve ser aprendido, se é que pode ser aprendido, por meio de outros tipos de estudos do que aqueles necessários para a tecnologia. E é uma coisa que agora é mais necessária do que nunca, pois o rápido crescimento da tecnologia tornou os antigos hábitos de pensar e agir mais inadequados do que em qualquer época precedente.

 

‘Filosofia’ significa ‘amor à sabedoria’, e a filosofia nesse sentido é o que os homens devem adquirir, a fim de que os novos poderes inventados pelos tecnólogos, e entregues por eles para que sejam empregados por homens e mulheres comuns, não empurrem a humanidade para um terrível cataclismo. Mas, a filosofia que deve ser parte da educação geral[i] não é a mesma filosofia dos especialistas. Não só na filosofia, mas em todos os ramos do estudo acadêmico, há uma distinção entre o que tem valor cultural e o que é apenas de interesse profissional. Os historiadores podem debater o que aconteceu com a infrutífera expedição de Senaqueribe[ii] em 698 AEC[iii], mas quem não é historiador não precisa saber a diferença entre essa expedição fracassada e a sua expedição de sucesso três anos antes. Os helenistas profissionais podem discutir, de um modo útil, uma leitura em disputa num drama de Ésquilo, mas essas questões não são para o homem que, apesar de sua vida atarefada, deseja adquirir algum conhecimento acerca do que os gregos conquistaram. Da mesma forma, os homens que dedicam as suas vidas à filosofia devem considerar questões que o público leigo educado faz bem em ignorar, como as diferenças entre a teoria dos universais em Aquino e em Duns Scotus[iv], ou as características que uma linguagem deve ter para dizer coisas sobre si mesma sem cair no contrassenso. Essas questões pertencem aos aspectos técnicos da filosofia, e sua discussão não faz parte da contribuição desta para a cultura geral.

Como um corretivo da especialização que o aumento do conhecimento tornou inevitável, a educação acadêmica[v] deve ter por objetivo dar, o tanto quanto o tempo permite, aquilo que tem valor cultural em estudos, como história, literatura e filosofia. Deve ser fácil o suficiente para que um jovem que não conheça o grego possa adquirir, através de traduções, um entendimento, ainda que insuficiente, daquilo que os gregos realizaram. Ao invés de ficar estudando repetidamente os reis anglo-saxões na escola, alguma tentativa deve ser feita para dar um conspecto da história mundial, colocando os problemas dos nossos dias em contraposição com os dos sacerdotes egípcios, dos reis babilônicos e dos reformadores atenienses, assim como com todas as esperanças e desesperos dos respectivos séculos. Mas é só sobre a filosofia, tratada de um ponto de vista similar, que eu desejo escrever.

Desde os seus primeiros dias, a filosofia tem tratado de dois objetivos diferentes, mas estreitamente inter-relacionados. Por um lado, visou uma compreensão teórica da estrutura do mundo; por outro lado, procurou descobrir e inculcar o melhor modo de vida possível. De Heráclito a Hegel, ou mesmo a Marx, manteve consistentemente ambos os fins em vista; não era nem puramente teórica nem puramente prática, mas buscava uma teoria do universo sobre a qual basear a ética prática.

Por conseguinte, a filosofia estava intimamente relacionada com a ciência por um lado, e com a religião, por outro. Consideremos primeiro a relação com a ciência. Até o século XVIII, a ciência era incluída naquilo que comumente se chamava ‘filosofia’, mas, desde então, a palavra ‘filosofia’ foi confinada, do ponto de vista teórico, ao que é mais especulativo e geral nos tópicos com os quais a ciência trata. Diz-se muitas vezes que a filosofia não é progressiva, mas essa afirmação é, em grande parte, uma questão semântica: assim que se descobre um caminho para chegar a um conhecimento definido sobre uma questão antiga, o novo conhecimento passa a ser considerado como pertencente à ‘ciência’, e a ‘filosofia’ fica privada do crédito. No tempo dos [antigos] gregos e até a época de Newton, a teoria planetária pertencia à ‘filosofia’, porque era incerta e especulativa; mas Newton tirou a questão do reino do jogo livre das hipóteses, fazendo com que a mesma exigisse um tipo de proficiência diferente daquela que tal questão exigia quando ainda estava aberta a dúvidas fundamentais. Anaximandro, no século VI AEC, tinha uma teoria da evolução, e sustentava que os homens eram descendentes de peixes. Isso era filosofia porque era uma especulação não apoiada por evidências detalhadas, mas a teoria da evolução de Darwin era ciência, porque baseava-se na sucessão de formas de vida encontradas nos fósseis e na distribuição dos animais e plantas em muitas partes do planeta. Alguém poderia dizer com suficiente verdade para justificar uma piada: ‘Ciência é o que sabemos, e filosofia é o que não sabemos’. Mas, é preciso acrescentar que a especulação filosófica sobre o que ainda não era ainda sabido mostrou-se um valioso preliminar para o conhecimento científico exato. As especulações dos pitagóricos na astronomia, de Anaximandro e Empédocles na evolução biológica, e de Demócrito quanto à constituição atômica da matéria, forneceram aos homens da ciência de épocas posteriores, hipóteses que, exceto para os filósofos, nunca poderiam ter entrado em suas cabeças. Podemos dizer que, do ponto de vista teórico, a filosofia consiste, pelo menos em parte, na formulação de hipóteses grandes e gerais que a ciência ainda não está em condições de testar; mas quando se torna possível testar tais hipóteses, caso verificadas, elas se tornam uma parte da ciência, e deixam de ser consideradas ‘filosofia’.

A utilidade da filosofia, do ponto de vista teórico, não se limita a especulações que podemos esperar confirmadas ou apropriadas pela ciência dentro de um tempo mensurável. Alguns homens ficam tão impressionados com o que a ciência sabe que se esquecem o que esta não sabe; outros estão muito mais interessados no que a ciência não sabe do que naquilo que faz, e menosprezam as suas conquistas. Os que pensam que a ciência é tudo, tornam-se complacentes e corajosos, e criticam todo o interesse por problemas que não têm uma definição circunscrita necessária para um tratamento científico. Nos assuntos práticos, eles tendem a pensar que a técnica pode substituir a sabedoria, e, que matar uns aos outros por meio da técnica mais recente, é mais ‘progressivo’, e portanto é melhor do que manter-se vivo por métodos antiquados. Por outro lado, aqueles que falam mal da ciência retrocedem, via de regra, a alguma superstição antiga e perniciosa, e se recusam a admitir o imenso aumento da felicidade humana que a tecnologia, se amplamente utilizada, tornaria possível. Ambas as atitudes devem ser deploradas; é a filosofia que mostra a atitude correta, ao esclarecer, ao mesmo tempo, o alcance e as limitações do conhecimento científico.

Deixando de lado, por um momento, todas as questões que têm a ver com a ética ou com os valores, há uma série de questões puramente teóricas, de interesse perene e apaixonado, que a ciência é incapaz de responder, pelo menos neste momento. Por acaso nós sobrevivemos à morte em qualquer sentido, e, se assim for, nós sobreviveremos por um tempo ou para sempre? A mente pode dominar a matéria, ou a matéria domina completamente a mente, ou, quem sabe, cada qual tem uma certa e limitada independência? O universo tem um propósito ou é conduzido por uma necessidade cega? Ou é um mero caos e confusão em que as leis naturais que pensamos encontrar são uma mera fantasia gerada pelo nosso próprio amor pela ordem? Se existe um esquema cósmico, por acaso a vida tem mais importância do que a astronomia nos leva a supor, ou a nossa ênfase na vida é um mero paroquialismo e [um produto da nossa] autoimportância? Eu não sei a resposta a estas perguntas, e eu não creio que qualquer outro saiba, mas eu penso que a vida humana seria empobrecida se elas fossem esquecidas, ou se respostas definitivas forem aceitas sem a evidência adequada. Manter vivo o interesse em tais questões, e examinar as respostas sugeridas, é uma das funções da filosofia.

Aqueles que têm uma paixão por retornos rápidos e por um balanço exato do esforço e recompensa podem se sentir impacientes com um tipo de estudo que não pode, no estado atual do nosso conhecimento, chegar a certezas, e que incentiva – aquilo que pode ser pensado como sendo uma ocupação de desperdício de tempo – com meditações inconclusivas sobre problemas insolúveis. A esse ponto de vista eu não posso, de nenhuma maneira, subscrever. Algum tipo de filosofia é uma necessidade para todos, exceto para os mais irrefletidos, e, na ausência de conhecimento, é quase certo que seja uma filosofia tola. O resultado disso é que a raça humana se divide em grupos rivais de fanáticos, cada grupo firmemente persuadido de que sua própria marca de absurdo é a verdade sagrada, enquanto a outra é uma heresia condenável. Arianos e católicos, cruzados e muçulmanos, protestantes e adeptos do Papa, comunistas e fascistas, ocuparam grande parte dos últimos 1.600 anos com fúteis conflitos, quando uma pequena filosofia teria demonstrado a ambos os lados, em todas essas disputas, que não tinham qualquer razão válida para acreditar que estavam certos. O dogmatismo é um inimigo da paz e uma barreira insuperável à democracia. Na idade atual, tanto quanto nos tempos antigos, o dogmatismo é o maior dos obstáculos mentais à felicidade humana.

A exigência de certeza é algo natural para o homem, mas é, no entanto, um vício intelectual. Se você levar seus filhos para um piquenique em dia [de tempo] duvidoso, eles vão exigir uma resposta dogmática se [o tempo] vai estar bom ou chuvoso, e ficarão desapontados com você quando você não puder ter certeza. O mesmo tipo de garantia é exigida, mais tarde na vida, daqueles que se comprometeram a conduzir as populações para uma Terra Prometida. “Liquide os capitalistas e os sobreviventes gozarão da felicidade eterna.” “Extermine os judeus e todos serão virtuosos.” – “Mate os croatas e deixe os sérvios reinarem.” – “Mate os sérvios e deixe os croatas reinarem.” Estas são amostras dos slogans que ganharam uma enorme aceitação popular em nosso tempo. Mesmo um mínimo de filosofia tornaria impossível aceitar tal absurda sede de sangue. Mas, enquanto os homens não forem treinados para reter o julgamento na ausência de provas, eles serão levados para o caminho errado pelos profetas da certeza, e é provável que os seus líderes sejam fanáticos ignorantes ou charlatães desonestos. Resistir à incerteza é difícil, mas também o é em relação à maioria das outras virtudes. Para a aprendizagem de cada virtude há uma disciplina apropriada, e para a aprendizagem do juízo suspenso a melhor disciplina é a filosofia.

Mas, para que filosofia possa servir a um propósito positivo, ela não deve ensinar meramente o ceticismo, pois, assim como o dogmatista é prejudicial, o cético é inútil. O dogmatismo e o ceticismo são, em um certo sentido, filosofias absolutas; uma é certa de saber, e a outra, de não saber. O que a filosofia deve dissipar é a certeza, seja de conhecimento ou de ignorância. Conhecimento não é um conceito tão preciso como é comumente pensado. Em vez de dizer ‘eu sei disso’, devemos dizer ‘eu mais ou menos sei algo mais ou menos assim’. É verdade que essa condição não é necessária em relação à tabuada de multiplicação, mas o conhecimento em assuntos práticos não tem a certeza ou a precisão da aritmética. Suponha que eu diga: ‘a democracia é uma coisa boa’; em primeiro lugar eu devo admitir que estou menos certo disso do que eu estou de que dois e dois são quatro, e, em segundo lugar, que a ‘democracia’ é um termo um tanto vago o qual eu não posso definir precisamente. Portanto, devemos dizer: ‘Estou bastante certo de que é bom que um governo tenha algo das características comuns às Constituições britânica e americana’, ou algo parecido. E, um dos objetivos da educação [em filosofia] deve ser fazer dessa declaração uma plataforma mais eficaz do que a declaração comum do slogan político.

Porque não basta reconhecer que todo o nosso conhecimento é, em um grau maior ou menor, incerto e vago; é necessário, ao mesmo tempo, aprender a agir segundo a melhor hipótese, sem crer dogmaticamente nela. Voltando ao para o piquenique: apesar de você admitir que pode chover, você começa dizendo que é provável ter tempo bom, mas admite a possibilidade oposta ao levar sobretudos. Se você fosse dogmático, deixaria os sobretudos em casa. Os mesmos princípios se aplicam a questões mais importantes. Pode-se dizer de uma forma ampla: tudo o que passa por conhecimento pode ser organizado em uma hierarquia de graus de certeza, com a aritmética e os fatos de percepção no topo. Que dois e dois são quatro, e que eu estou sentando escrevendo em meu quarto, são afirmações a respeito das quais qualquer dúvida séria de minha parte seria patológica. Estou quase tão certo de que ontem o tempo foi bom, mas não completamente, porque a memória às vezes prega peças estranhas. As lembranças mais distantes são mais duvidosas, particularmente se existe alguma forte razão emocional para se lembrar falsamente, como, por exemplo, como George IV se recorda de ter estado na batalha de Waterloo[vi]. As leis científicas podem ser quase certas, ou apenas ligeiramente prováveis, de acordo com o estado da evidência. Quando você age de acordo com uma hipótese que você sabe que é incerta, a sua ação deve ser tal que não tenha resultados muito prejudiciais na eventualidade da sua hipótese ser falsa. Na questão do piquenique, se todos do grupo forem saudáveis, você pode arriscar que se molhem, mas, não se a saúde delicada de um possa incorrer num risco de pneumonia. Ou, suponha que você encontre um muggletoniano[vii], será justificado argumentar com ele, pois não muito dano ocorrerá se o sr. Muggleton tiver, de fato, sido um homem tão grande quanto supõem os seus seguidores, mas, não será justificado queimá-lo na fogueira, porque o mal de ser queimado vivo é mais certo do que qualquer proposição da teologia. É claro que, se os muggletonianos fossem tão numerosos e tão fanáticos a ponto de ser ou você ou eles, a questão se tornaria mais difícil, mas permanece o princípio geral de que uma hipótese incerta não pode justificar um mal certo, a menos que um mal igual seja igualmente certo na hipótese oposta.

Conforme já dissemos, a filosofia tem tanto um objetivo teórico quanto um prático. Agora é hora de considerar o último.

Para a maioria dos filósofos da Antiguidade, havia uma estreita ligação entre uma visão do universo e uma doutrina sobre o melhor modo de vida. Alguns deles fundaram fraternidades que tinham uma certa semelhança com as ordens monásticas dos tempos posteriores. Sócrates e Platão ficaram chocados com os sofistas porque estes não tinham objetivos religiosos. Se a filosofia for desempenhar um papel sério na vida de homens que não são especialistas, não deve deixar de defender algum modo de vida. Ao fazer isso, está procurando fazer algo parecido com o que a religião tem feito, mas com certas diferenças. A primeira e maior diferença é que não há recurso à autoridade, seja da tradição ou de um livro sagrado. A segunda diferença importante é que um filósofo não deve tentar estabelecer uma Igreja; Auguste Comte tentou, mas falhou, como merecia. A terceira é que mais ênfase deve ser dada às virtudes intelectuais do que tem sido habitual desde a decadência da civilização helênica.

Há uma diferença importante entre os ensinamentos éticos dos filósofos antigos e aqueles que são apropriados para os nossos próprios dias. Os filósofos antigos apelavam para os ‘cavalheiros diletantes’, que podiam viver da maneira como parecia bom para eles, podendo até, se quisessem, encontrar uma cidade independente com leis que incorporassem as doutrinas do mestre. A imensa maioria dos homens modernos e educados não tem essa liberdade; eles têm de ganhar a vida dentro da estrutura da sociedade, e não podem fazer mudanças importantes em seu próprio modo de vida, a menos que pudessem primeiro assegurar mudanças importantes na organização política e econômica. A consequência disso é que as convicções éticas de um homem devem ser expressas mais na advocacia política e menos no seu comportamento privado, do que como ocorria na Antiguidade. E, a concepção do que vem a ser um bom modo de vida tem que ser uma concepção social e não individual. Mesmo entre os antigos, isso foi concebido por Platão na sua República, mas muitos deles tinham uma concepção mais individualista dos objetivos da vida.

Com esta ressalva, vejamos o que a filosofia tem a dizer sobre o tema da ética.

Para começar com as virtudes intelectuais: a busca da filosofia é fundada na crença de que o conhecimento é bom, mesmo se o que for sabido seja doloroso. Um homem imbuído do espírito filosófico, seja ele um filósofo profissional ou não, desejará que suas crenças sejam tão verdadeiras quanto possa concebê-las e, em igual medida, ama saber e odeia incorrer em erro. Este princípio tem um alcance mais amplo do que pode parecer à primeira vista. As nossas crenças brotam de uma grande variedade de causas: o que os pais e os professores nos disseram na juventude, o que as organizações poderosas nos dizem para fazer a fim de que ajamos como querem, aquilo que expressa ou diminui os nossos medos, aquilo que afeta a nossa autoestima, e assim por diante. Qualquer uma dessas causas pode nos levar a crenças verdadeiras, mas o mais provável é que nos leve na direção oposta. A sobriedade intelectual, portanto, nos levará a examinar minuciosamente as nossas crenças, com vistas a descobrir em qual delas há alguma razão para crer que seja verdade. Se formos sábios, aplicaremos a crítica solvente especialmente às crenças de que achamos mais doloroso duvidar, e àquelas mais prováveis de nos evolver em conflitos violentos com homens que possuem crenças opostas, mas igualmente infundadas. Se essa atitude pudesse se tornar comum, o ganho no tocante a diminuir a acerbidade das disputas seria incalculável.

Há outra virtude intelectual, que é a da generalidade ou imparcialidade. Eu recomendo o seguinte exercício: quando, em uma sentença que expressa opinião política, há palavras que despertam emoções poderosas diferentes em leitores diferentes, tente substituí-las pelos símbolos A, B, C, etc., esquecendo o significado particular de cada símbolo. Suponhamos que A é Inglaterra, B é a Alemanha e C é a Rússia. Contanto que você se lembre do que as letras significam, a maioria das coisas que você vai acreditar dependerá do fato de você ser inglês, alemão ou russo, o que é logicamente irrelevante. Quando, na álgebra elementar, você resolve problemas sobre A, B e C subindo uma montanha, você não tem nenhum interesse emocional nos respectivos sujeitos, e você faz o melhor que pode para resolver a solução com uma exatidão impessoal. Mas, se você pensasse que A fosse você mesmo, B o seu odiado rival e C o professor que criou o problema, os seus cálculos iriam desandar, e você certamente acharia que A era o primeiro e C o último. Esse tipo de preconceito emocional está provavelmente presente quando for refletir sobre problemas políticos, e somente o cuidado e a prática podem permitir que você reflita tão objetivamente quanto no problema algébrico.

Pensar em termos abstratos não é, naturalmente, a única maneira de alcançar a generalidade ética; esta também pode ser alcançada, e quiçá de uma maneira ainda melhor, se você for capaz de sentir emoções generalizadas. Mas, para a maioria das pessoas, isso é difícil. Se você estiver com fome, fará grandes esforços, se necessário, para conseguir comida; se seus filhos estão com fome, você pode sentir uma urgência ainda maior. Se um amigo está morrendo de fome, você provavelmente vai se esforçar para aliviar a sua aflição. Mas se você ouvir que alguns milhões de indianos ou chineses estão em perigo de morte por desnutrição, o problema é tão vasto e tão distante que, a menos que você tenha alguma responsabilidade oficial, provavelmente você logo esquecerá tudo sobre o mesmo. Mas, se você tem a capacidade emocional de sentir males distantes agudamente, você pode alcançar ética geralmente através do sentimento. Se você não tiver essa rara capacidade, o hábito de ver problemas práticos tanto abstratamente quanto concretamente é o melhor substituto disponível.

Na ética, a inter-relação entre a generalização lógica e a emotiva é um assunto interessante. “Amarás teu próximo como a ti mesmo” inculca a emotividade generalizada; “As declarações éticas não devem conter nomes próprios” inculca a lógica generalizada. Os dois preceitos soam muito diferentes, mas quando eles são examinados, verificam-se que eles são praticamente indistinguíveis na importância prática. Os homens benevolentes preferirão a forma tradicional; os lógicos podem preferir a outra. Eu mal sei qual classe de homens é a menor. Qualquer das formas de declaração, se aceita pelos estadistas e tolerada pelas populações que eles representam, conduziria rapidamente ao milenarismo. Judeus e árabes se reuniriam e diriam: “Vamos ver como obter a maior quantidade de bem para os dois juntos, sem inquirir muito de perto como o mesmo seria distribuído entre nós”. Obviamente, cada grupo obteria muito mais daquilo que traz felicidade para ambos do que qualquer um consegue obter no presente. O mesmo se aplica aos hindus e muçulmanos, comunistas chineses e adeptos de Chiang Kai-shek[viii], italianos e iugoslavos, russos e democratas ocidentais. Mas, ai de nós! Nem a lógica nem a benevolência devem ser esperadas de qualquer lado em qualquer dessas disputas.

Não se deve supor que os rapazes e moças que estão ocupados adquirindo um valioso conhecimento especializado possam despender muito tempo para o estudo da filosofia, mas mesmo no tempo que pode ser facilmente poupado sem prejudicar a aprendizagem da capacitação técnica, a filosofia pode dar certas coisas que irão aumentar o valor do aluno como um ser humano e como um cidadão. Pode criar o hábito do pensamento exato e cuidadoso, não só na matemática e na ciência, mas também em questões de grande importância prática. Pode dar uma amplitude impessoal e um maior alcance na concepção dos objetivos da vida. Pode dar ao indivíduo uma medida justa de si mesmo em relação à sociedade, do homem no presente em relação ao homem no passado e no futuro, e, de toda a história do homem em relação ao cosmos astronômico. Ao ampliar os objetos de seus pensamentos, a filosofia fornece um antídoto para as ansiedades e angústias do presente e torna possível uma melhor aproximação da serenidade que está disponível à mente sensível, no nosso torturado e incerto mundo.

                                                                                                                                                [1]

[i] Termo usado no sentido de educação liberal.

[ii] Senaqueribe foi rei da Assíria de 705 a 681 AEC conhecido por ter destruído a Babilônia em 689 AEC.

[iii] AEC: Antes da Era Comum. EC: Era Comum.

[iv] Referência aos dois mais conhecidos filósofos e teólogos da Idade Média, o italiano São Tomás de Aquino (1225-74 EC) e o escocês John Duns Scotus (c. 1266-1308 EC).

[v] Termo usado no sentido de educação liberal.

[vi] George IV (1762-1830) reinou na Grã Bretanha primeiro como Regente, a partir de 1811, e depois da morte de George III em 1820, como monarca. Conhecido pela vaidade, hábitos e gastos extravagantes, por ter sido um coletor de memorabilia da Guerra Peninsular. Consta que ele afirmou falsamente ter estado presente na Batalha de Waterloo, e que, durante um banquete na presença do Duque de Wellington, ele pediu ao duque que confirmasse isso, a resposta do duque foi “Eu frequentemente ouvi Vossa Majestade dizer isso”.

[vii] A palavra ‘muggletoniano’ refere-se a um adepto da seita cristã fundada na Inglaterra em torno de 1651 por Lodowicke Muggleton (1609-98) e John Reeve (1608-58), os quais diziam-se ser as testemunhas mencionadas no Livro da Revelação, da Bíblia (Cf. Ap. 11:36). Tal seita, que sobreviveu até o século XIX, teria se desmembrado de uma outra seita que se opunha aos Quakers.

[viii] Chiang Kai-shek, também conhecido como Jiang Jieshi ou Jiang Zhongzheng, foi um político e líder militar que atuou como líder da República da China (Taiwan), entre 1928 e 1975.

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Tradutora: Joaquina Pires-O’Brien

Revisora: Débora Finamore

Referência

Russell, B. Filosofia para leigos. PortVitoria, UK, v. 15, Jul-Dec 2017. ISSN 20448236. https://portvitoria.com