10 poesias selecionadas de Fernando da Mota Lima

A jornada da folha
Dentro da manhã ensolarada
A folha desprendeu-se do galho
E partiu voando, tangida pelo sopro do vento.
Sobrevoou florestas mares cidades
Errou através dos espaços infinitos.

A tarde desceu sobre seu voo
Também o crepúsculo.
Por fim sobreveio a noite
A noite com a sua treva e mistério
A noite com seus abismos.

A folha errante estremeceu
Já fatigada da longa travessia
E mansamente deslizou sobre o chão
Onde a Magra Caetana
Cumprindo sua jornada indiferente pisou-a
Surda ao último suspiro que exalou.
Recife, 7 de dezembro de 2012

Carpe Diem
O que fiz eu do meu dia
foi nada e entanto foi tanto
que o nada se fez poesia
e o meu vazio o espanto
raiz da filosofia.

O que fiz eu do meu dia
não vale um nada, um tanto
desse comércio do tempo
que é qualquer um, qualquer trampo
poeira ao sopro do vento.

O que eu fiz, diz Montaigne
é tudo que vale o dia.
Nada com nada paguei-me
fiz do meu nada poesia
e a vida vivi, vivei-me.
Recife, agosto de 2013

O sábio da torre
Aprendeu a viver
depois de descobrir que filosofar
é aprender a morrer.
Foi livre num mundo de intolerância extrema
onde os bons matavam em nome de Deus
e os maus matavam em nome do bem.
Viveu o mundo dividido
entre católicos e protestantes
dentro da sua própria família.

Temperou estoicismo ceticismo
amor à vida como ela é
não como insanamente a transfiguram
os metafísicos os utópicos os temíveis
idealistas salvadores da humanidade.
Por isso jamais o tentou
a idéia de mudar o mundo
por decreto ou delírio metafísico.

Viveu a amizade como conquista única
a amizade no seu sentido integral
no grau em que eu seria o outro
e o outro meu eu.
E no fim de tudo encontrou a mulher
a mulher e filha que merecia.

Foi livre porque fundou sua ilha
dentro de um castelo onde cabia
nossa inteira humanidade.
Fazendo do seu eu a condensação
de tudo que é humano
compreendeu a humanidade do canibal
do herege da puta do camponês
que acolhe a natureza da morte
com a sabedoria ausente no filósofo.
Quem verdadeiramente vive é quem
Conquista a coragem de morrer.
Seu nome é Montaigne.
Recife, 28 de junho de 2013

Sentimento da morte
O sentimento da morte
há tanto vive comigo
que já nem sei se morrê-la
será meu prêmio ou castigo.

Passam o rio e as águas
num fluxo sem pausa ou fim.
Lavam meu ser, minhas mágoas
e me libertam de mim.

E quando enfim nada for
apenas um corpo morto
serei estrume da flor
barco sem alma no porto.

Serei a brisa no mar
liberta do mundo torto
e o vento enfim cantará:
ele que é nada está morto.
Recife, 9 de maio de 2013

Dia dos mortos
Para os vivos e mortos que perdi.
Os que morreram te esperam
Na eternidade do tempo
Onde o sempre presente
Suprime o sopro do vento.

Por isso teu dia é deles
Como hoje é o dia que conta.
Ora por ti e por eles
E acolhe a sombra que espanta
O voo errante do ser.

Hoje é teu dia, pois neles
O fim de tudo te aguarda
E a linha incerta do tempo
Visa o que morre ou se atarda.

Aqui nos resta a memória
Que o luto chora e guarda
Tecendo o fio da história
Humana que assim se grava:
Tudo no ser é passagem
E o fim do ser a viagem.
Recife, 02 de novembro de 2012

Poema intransitivo
Escrever o poema que não se fala
muito menos grita
o poema da rua, do povo pisado
o poema voz coletiva, todavia lírico
de uma ardência lírica própria do indivíduo.

Escrever o poema de amor
impessoal como um conceito geométrico
lúcido como a luz do sol
intransparente como a treva
estóico como a vontade que nada redime.

Escrever o poema que me confessasse sem identidade
que amasse sem objeto singular
e celebrasse a vida que importa por ser mortal.
O poema que fosse doação sem recompensa
eternidade de tudo que é presente.

Escrever o poema que me ligasse ao outro
sitiado na sua humanidade como eu na minha.
O poema que me libertasse de mim
diluindo-me na energia cósmica
que já não fosse eu nem universo.
Recife, junho 2013

Contingência II
Ah, fútil sombra humana
que te figuras tão alta
somente a ti te enganas
se julgas que fazes falta.

Tua presença é passagem
não raro impressentida
teu curso a curta viagem
que é só um sopro de vida.

Vê como é frágil e passa
toda a matéria que somos.
A linha que a vida traça
já se apagou no que fomos.
Curitiba, 20 de abril de 2013

O inferno é o outro
No seu inferno o inferno
era de fato o outro.
Mas como ser sem o outro, sem ser o outro?
Depois de lutar uma vida
contra seu próprio inferno
logrou elevar-se do caos subterrâneo
à superfície da casa
penosamente construída.
Tijolo sobre tijolo
parede emendada a parede
entre recortes de janelas
linhas de repouso e sombra
a luz derramada na espiral da escada
e até um jardim
onde plantou uma flor
batizada como solidão lunar.

Enfim, artes do engano, a sua ilha
com cada coisa em seu lugar.
Mas logo sobrevieram as forças
elementares e incontornáveis do Continente:
o mar de ressaca, tempestades
tufões, maremotos e tornados.
Afundou com sua ilha
numa ensolarada manhã de outubro.
Uma bela manhã para morrer,
eis tudo que disse.
Recife, 09 de junho de 2013

Beleza
A beleza que perdura
É um noturno jardim
Cuja secreta urdidura
Revelas somente a mim.

É luz além da epiderme
Além da linha fugaz
Onde sonhando perder-me
Te encontro além de onde estás.

A beleza prenda impura
Na carne ainda mais é
Pois sobre a pele o que dura
É a vaidade ferida
Da condição da mulher.
Recife, 10 de abril de 2011

A Beleza
Há algo mais banal do que a beleza
que em tudo e cada coisa nos espreita?
Reinando sobre toda a natureza
se entrega a todo abraço que a estreita.

Em tudo que povoa o estranho mundo
imprime seu sinal com tal firmeza
que impele meu mergulho até o mais fundo
das águas refluentes de beleza.

Se tudo ela recobre, em tudo está
fundindo em cada ser sua estranheza
por que tanto ainda logra espantar

o senso dócil servo da baixeza?
A luz de quem a vê é o olhar
que vê por ser parente da beleza.
Recife, junho 2013