O bicentenário da independência da América Latina I. O processo da independência e os seus personagens

Joaquina Pires-O’Brien

Em 2010 a América Latina deu inicio às comemorações do bicentenário de sua independência, que começou com a América hispânica. Em 1806 Francisco de Miranda liderou uma tentativa malograda de libertar a Venezuela. Entretanto, as próximas tentativas obtiveram um melhor resultado devido à conjuntura na Europa, causada pela ocupação da Península Ibérica pelas tropas francesas sob o comando de Napoleão Bonaparte. Em 19 de abril de 1810 um grupo de insurgentes da província da Nova Granada (atuais Equador, Colômbia e Venezuela) aproveitou a reviravolta política na Espanha para declarar a sua independência. O mesmo ocorreu nas províncias do Rio da Prata (atuais Argentina, Chile e Paraguai). Embora a independência de fato e o reconhecimento internacional ainda levaria alguns anos para se concretizarem, o processo de libertação iniciado em 1810 teve um enorme papel psicológico no sentido de unir as lideranças regionais e desenvolver na população crioula o sentimento nativista.

As províncias da Nova Granada que em 1810 haviam se declarado independentes, em 1811 constituíram as Províncias Unidas da Venezuela que depois virariam a República da Nova Granada e a Gran Colombia. Dentro do grupo inicial que declarou a independência, destacava-se o jovem Simão (Simón) Bolívar (veja mais abaixo sua biografia), de 27 anos de idade, que havia retornado de Paris no ano anterior cheio de entusiasmo pelo ideário republicano. No ano seguinte, Bolívar, juntamente com Luís López Méndez e Andrés Bello partiu para Londres numa missão de angariar o apoio do governo Britânico e comprar armas. Em Londres, os três se encontraram com o patrício Francisco de Miranda y Rodriguez (veja mais abaixo sua biografia), conhecido simplesmente como Miranda, o precursor da independência que serviu como líder intelectual dos futuros libertadores.
Após a derradeira derrota de Napoleão a Espanha restabeleceu a sua monarquia, a qual rejeitou de imediato a declaração de independência de suas províncias na América. Quando isso ocorreu os governos independentes já haviam começado a se enfraquecer, e isso facilitou a retomada de poder por parte dos partidários da realeza. Com promessas de riquezas futuras, os caudilhos espanhóis partidários da realeza, como José Tomás Boves, conseguiram reorganizar exércitos para defender os interesses da metrópole.

A guerra da independência
A independência da América Latina foi conseguida apenas após um longo processo de lutas, permeado por problemas internos e à custa de milhares de vidas. Na América do Sul a guerra da Independência ocorreu em duas grandes frentes, a Frente Norte, formada em torno da Nova Granada, e a Frente Sul, formada pelas províncias do Rio da Prata. Na América Central a guerra da Independência começou no México e só depois envolveu os demais países ao sul.
Na Frente Norte as lutas pela independência começaram logo após o final da Guerra Peninsular, quando o exército espanhol foi reconstituído. O exército da Nova Granada ficou sob o comando do Generalíssimo Miranda, que havia retornado de Londres. Sob as ordens deste Bolívar ficou encarregado de defender Porto Cabello. A situação da Nova Granada passou de mal a pior, quando em 1812 um forte terremoto destruiu boa parte de Caracas e de outras cidades vizinhas e causou a morte de mais de dez mil pessoas.

Devido à atual contingência, Bolívar foi derrotado em Porto Cabello e obrigado a fugir para Cartagena das Índias, na Colômbia. De lá Bolívar escreveu o seu famoso Manifesto de Cartagena, datado de 15 de dezembro de 1812, no qual ele atribuiu a derrota aos seguintes motivos: (i) a incipiência do sistema federal instituído, (ii) a má administração do tesouro, (iii) o terremoto de 1812 que atingiu Caracas, (iv) a impossibilidade de estabelecer um exército permanente, e (v) a campanha contrária da Igreja Católica. Na sua crônica do acontecimento Bolívar escreveu: ‘ainda que a natureza se oponha, lutaremos contra ela e faremos com que nos obedeça’.

De fato os partidários da realeza haviam se aproveitado da ignorância da população para promover a causa real, afirmando que o terremoto havia sido um castigo de Deus. A luta entre patriotas e realistas culminou com a vitória dos realistas enquanto que os patriotas sofreram um grande número de baixas, forçando o Generalíssimo Miranda a aceitar o armistício. Foi o fim da Primeira República.

Em 1813 Bolívar retornou triunfante a Caracas e em 1814 ele ajudou a criar a República da Nova Granada. Entretanto esta última não durou muito, pois no final do mesmo ano Bolívar foi derrotado pelas tropas realistas lideradas por José Tomás Boves. Entre 1813 e 1817 A Venezuela estava caótica e repartida entre facções de diversos caudilhos, o que dificultou ainda mais as lutas pela independência e a unificação do governo.

Em maio de 1815 Bolívar, que na ocasião tinha 32 anos de idade, teve que se refugiar em Kingston, na Jamaica Britânica. Foi de Kingston que ele escreveu a sua famosa Carta da Jamaica, datada de seis de setembro de 1815, da qual ficou apenas o rascunho em inglês, preservado no Arquivo Nacional de Bogotá. Embora na linha de saudação não constasse o nome do destinatário, supõe-se o mesmo era Henry Cullen, um súdito britânico residente em Falmouth, perto da Baía de Montego, na costa norte da Jamaica.

Na sua Carta da Jamaica Bolívar afirmou ter ciência de que o governo Britânico, por ser inimigo da Espanha e o principal denunciador das atrocidades cometidas pelos conquistadores contra os povos indígenas, era favorável ao movimento de libertação da América hispânica. Explicou que apesar das lideranças terem criado juntas populares para estabelecer as regras para a convocação dos congressos representativos, a revolução foi precipitada devido à ameaça de anarquia e a falta de um governo legítimo, justo e liberal, e que isso teria sido a causa dos inúmeros problemas da causa revolucionária. Empregando metáforas fortes, Bolívar queixa-se da ‘omissão da Europa perante a política sanguinária e peçonhenta da Espanha para com as suas colônias ultramarinas, a sua discriminação aos nascidos na América no tocante à ocupação de cargos administrativos e à falta de apoio dos irmãos do Norte (os Estados Unidos). Outra queixa de Bolívar foi a hipocrisia da Europa ao taxar de crime o ato de Bonaparte contra os reis de Espanha enquanto ignoraram as atrocidades que os conquistadores praticaram contra Montezuma e Atahualpa, o primeiro monarca do após e o segundo imperador Inca do Peru.

Segundo a maioria dos historiadores, a guerra de independência das províncias hispânicas do norte começou de fato apenas em 1817. Boves faleceu e seu exército ficou acéfalo. Oito meses após a morte de Boves o exército dos patriotas foi refeito e contou com o apoio de muitos que antes participaram do exército de Boves, sob o comando de Bolívar. Bolívar se dirigiu para a região montanhosa de Ocumade del Tuy para posicionar-se melhor na tentativa de tomada de Caracas. Entretanto, foi derrotado e retirou-se por três meses da luta.

No sul do continente a luta pela independência das Províncias Unidas do Rio da Prata havia reiniciado em 1817, quando o general José de San Martín derrotou os espanhóis na batalha de Chavabuco após ter atravessado os Andes, resultando no estabelecimento da República do Chile.

A declaração de independência do México deu-se primeiramente em 16 de setembro de 1810, no vilarejo de Dolores, quando os conspiradores liderados pelo Padre Miguel Hidalgo, mandaram repicar dos sinos da igreja, num evento que passou a ser conhecido como o ‘Grito de Dolores’. Um exército foi por eles improvisado na jornada para a capital, mas no seu retorno foram capturados e o padre Hidalgo executado. A liderança da revolta foi assumida por outro padre, José María Morelos, mas apesar do mesmo ter experiência militar e de já ter vencido diversas batalhas, Morelos foi capturado e executado em 1815. Os novos líderes do movimento pela independência, Vicente Guerrero e Guadalupe Victoria, já com seus exércitos, lutaram no centro sul e no sul do México. Embora em 1820 a Espanha tivesse conseguido reorganizar os seus exércitos para tentar sufocar as rebeliões, a causa realista foi perdida quando o general Agustín de Iturbide, que estava à frente do exército maior, passou para o lado dos revolucionários. A Espanha reconheceu formalmente a Independência do México em 24 de agosto de 1821.

Não há como ignorar o fato de que a independência da América Latina foi feita por um punhado de homens corajosos e determinados. Seguem abaixo as biografias resumidas desses heróis que hoje chamamos de ‘libertadores’.

Francisco Miranda
Francisco de Miranda y Rodriguez (1750-1816), conhecido simplesmente como Miranda, foi o precursor da independência da América hispânica e mentor intelectual dos libertadores. Miranda é também apontado como o principal disseminador da maçonaria na América Latina, da qual ele se posicionou para unir os líderes revolucionários em torno da causa da independência.

Nascido de uma abastada família de comerciantes provenientes das Canárias, o desejo do jovem Miranda era fazer uma carreira militar. Julgando que teria melhores chances na Espanha mudou-se para lá aos vinte e um anos de idade. Na Espanha ele continuou a sua educação procurando se familiarizar com os grandes escritores da época. Após ter se alistado no exército espanhol em 1771 ele serviu como capitão no Regimento de Infantaria. A sua primeira missão foi a defesa de Melilla, território espanhol ao norte da África, lutando contra o sultão do Marrocos. Entre 1773 e 1775 ele serviu em Madrid, Argel, Granada e Cádiz. Em abril de 1780 ele foi para Havana onde foi nomeado capitão do Exército de Aragão e segundo ajudante de campo do General Juan Manuel de Cajigal y Montserrat. Sob o comando de Cajigal, Miranda participou da tomada de Pensacola, no oeste da Flórida, que havia sido ocupada pelos ingleses. Após a vitória dos espanhóis ele foi promovido por bravura a tenente-coronel. O General Cajigal enviou-o para a colônia britânica da Jamaica, para uma missão de troca de prisioneiros. Em 1782 Miranda participou da expedição de conquista colônia britânica Las Bahamas de onde ele conduziu a negociação de rendição dos ingleses.

Miranda foi acusado pela Inquisição de posse de livros e quadros proibidos. Pouco depois ele foi preso por ter permitido a visita do General Campbell a Cuba, embora conseguisse ser solto com a ajuda do General Cajigal. Em 1783 ele foi obrigado a fugir da pátria pela qual havia lutado durante tantos anos, chegando aos Estados Unidos no dia 10 de julho. Lá ele teria tomado conhecimento do processo da revolução de independência e conheceu importantes personagens como George Washington, Alexander Hamilton, Henry Knox, Thomas Jefferson, Samuel Adams, Gilbert de la Lafayette e Thomas Paine. Nos Estados Unidos ele também conheceu Juan Bolívar, o pai de Simão (Simón) Bolívar, e outros refugiados de Caracas.

Em 1784 Miranda partiu para a Inglaterra e fez de Londres a sua base, de onde se empenhou em aprender latim, grego e outras línguas, antes de iniciar uma viagem de aprendizado pela Europa, Ásia Menor e Egito. Na Inglaterra ele conheceu o Primeiro Ministro William Pitt, e procurou convencê-lo a apoiar a causa da independência das nações hispânicas na América. Durante a sua turnê Miranda fez amizades com vários notáveis. Há relatos não documentados de que ele teria usado o pseudônimo de ‘Meeroff’ durante uma turnê pela Holanda, Bélgica, Alemanha e Suíça. Em setembro de 1788 ele fez duas viagens a Marselha, França, lá retornando em fevereiro de 1789 quando participou da redação do primeiro documento de direitos humanos, juntamente com Thomas Payne e outros.

Em 1791 Miranda participou da Revolução Francesa e travou amizade com indivíduos pertencentes à facção moderada dos Girondinos, que se opunha à facção radical dos Jacobinos. Em 23 de março de 1792, Miranda mudou-se para a França quando esta se encontrava em plena revolução. Lá Miranda estabeleceu relações com o prefeito de Paris Jerome Petion. Embora tivesse até sido nomeado general da República Francesa, em 1793, depois que os jacobinos ganharam o poder e Robespierre implantou o seu Regime do Terror, Miranda foi preso acusado de conspirar contra a república, mas depois foi inocentado pelo Tribunal Revolucionário. Entretanto Miranda foi novamente preso e permaneceu na prisão La Force mesmo depois da queda de Robespierre. Tendo sido solto no ano seguinte Miranda ainda permaneceu na França por algum tempo antes de retornar à Inglaterra em 1798.

Em 1805 ele segue para os Estados Unidos, onde esteve com o Presidente Jefferson e o seu Secretário de Estado James Madison. Contando com a ajuda britânica em 1806 Miranda liderou a primeira tentativa de libertar o seu país do jugo espanhol, mas tendo fracassado ele fugiu e se refugiou no Haiti. Lá ele tentou organizar o movimento de independência, mas frustrado com a indiferença dos caribenhos, em 1807 ele retornou aos Estados Unidos. De lá seguiu de volta para a Inglaterra, onde se ocupou escrevendo artigos para uma revista. Durante sua última fase em Londres Miranda promoveu reuniões com outros líderes revolucionários de toda a América.

Miranda retornou a Caracas em 10 de dezembro de 1810, sendo recebido calorosamente pela população ao desembarcar em La Guaira. Pouco depois ele foi nomeado Tenente Geral dos Exércitos da Venezuela e logo em seguida Promotor da Sociedade Patriótica. Em 1811 participou da Assembleia Constituinte da primeira república. Entretanto, após ter sido derrotado pelas tropas realistas de José Tomás Boves, Miranda foi preso e mandado para a Espanha, onde morreu na prisão de La Carraca em 24 de julho de 1816. Miranda é reconhecido não só como um herói da independência da América Latina mas também como um dos pioneiros da luta por direitos humanos. Seu nome encontra-se gravado junto ao de outros revolucionários no Arco do Triunfo, em Paris, e uma estátua sua foi colocada na Fitzroy Street, em Londres.

Simão (Simón) Bolívar
Simão (Simón) Bolívar, o Libertador, cujo nome de nascimento é Simón Antonio de La Santíssima Trindade Bolívar y Ponte Palácios y Blanco, nasceu em 1783 numa abastada e tradicional família venezuelana. Aos dois anos e meio ele perdeu o pai e sua mãe morreu antes que tivesse completado nove anos. Ele ficou sob a tutela do avô, sendo cuidado pelos tios maternos e pela ama Hipólita. Teve uma educação esperada fornecida pelos melhores tutores de Caracas. Dono de um temperamento sensível, porém rebelde, ele vivia às turras com os seus professores. Desses últimos destacou-se Don Simón Rodriguez, por ter inculcado no jovem as ideias de liberdade e de direitos humanos, difundidas pelo Iluminismo.

Quando tinha apenas dezessete anos de idade, o avô de Bolívar faleceu e Bolívar mudou-se para Madrid para completar seus estudos. Entretanto, o jovem se apaixonou pela jovem espanhola Maria Teresa Rodríguez del Toro y Alaysa, com a qual se casou em 1802, aos dezenove anos de idade. O casal mudou-se para Caracas e poucos meses depois Maria Teresa faleceu após ter contraído febre amarela. Em 1804 o jovem viúvo decidiu retornar à Europa, fixando-se desta vez em Paris, onde após um período inicial de farras ele aceitou os conselhos de um antigo mestre e passou a ler as obras dos autores importantes da época como Montesquieu, Rousseau, Voltaire e os enciclopedistas. Sob a influência desses autores Bolívar passou a nutrir uma grande aversão à Espanha e ao domínio espanhol, enquanto aumentava a sua admiração por Napoleão Bonaparte, recentemente coroado rei da Lombardia. Em 1805, durante uma visita à Itália, Bolívar fez seu famoso “Juramento do Monte Sacro”, em Roma, quando jurou que não descansaria enquanto não cortasse as cadeias do jugo espanhol.

Na Europa Bolívar pôde testemunhar os primeiros anos da república francesa e a ascensão de Napoleão ao poder. Em 1805, em Paris, Bolívar se afiliou à Loja maçônica San Alejandro de Escócia, mas deixou a mesma no ano seguinte. Sobre a ligação de Bolívar com a maçonaria, há também narrativas espúrias de Bolívar teria se afiliado à loja maçônica de Cádiz denominada Sociedad de los Caballeros Racionales de Lauraro, onde se agremiava os partidários da independência.

Um episódio ainda obscuro na biografia de Bolívar é seu envolvimento com o general patriota Manuel Piar e que culminou com a execução deste último a mando de Bolívar. Segundo consta a historiografia, em 1817 quando as forças espanholas se aproximaram das tropas de Bolívar este último requisitou reforços a Piar, que recusou ajudá-lo. Embora Bolívar tivesse sobrevivido, o episódio fez com que este perdesse a confiança em Piar. Sob o pretexto de que Piar viesse a desencadear uma guerra civil, no fim de março Bolívar se dirigiu para o sítio onde Piar se encontrava, próximo da cidade de Angostura, na Província da Guiana, tirou-o do comando e pôs-se à frente do seu exército. Pilar conseguiu fugir de Angostura em 25 de julho, mas em 16 de outubro foi capturado e depois fuzilado por traição e deserção, possivelmente por ordem do próprio Bolívar. O fato de Piar ser mestiço – ele era filho de uma negra e um marinheiro espanhol – levantou a questão de Bolívar teria agido por motivo racista. Entretanto, consta na historiografia que Piar havia se tornado um desafeto de Bolívar quando em 1814, Piar mandou prendê-lo, na ocasião em que se refugiou na ilha de Santa Margarita, controlada por Piar. Embora Piar logo tenha reconhecido o engano, Bolívar não esqueceu a afronta.

Enquanto em Angostura, atualmente chamada Cidade Bolívar, Bolívar escreveu seu mais famoso texto, o Discurso de Angostura, expondo o seu plano político e o seu desejo de criar no continente Americano uma grande e livre nação unida pela mesma língua. Ele também explica os motivos pelos quais não julgava viável nem uma grande república e nem uma monarquia universal, preferindo um meio termo entre tais extremos, que a seu ver só levariam à infelicidade e à desonra. Tendo se pronunciado a favor da democracia e contra a escravidão Bolívar expôs os motivos pelos quais ele não julgava possível um modelo único de governo para todas as nações: cada qual deveria adotar o sistema de governo que julgasse mais adequado. E para a sua própria pátria, que se chamaria Gran Colômbia, ele revelou a sua preferência por uma monarquia constitucional nos moldes daquela da Inglaterra:

‘E quando nos tornarmos fortes sob os auspícios de uma nação liberal capaz de nos dar proteção, verão que somos capazes de cultivar as virtudes e os talentos que conduzem à glória; aí então prosseguiremos na majestosa marcha para as grandes prosperidades a que a América meridional está destinada; aí então as ciências e as artes que nasceram no Oriente e que ornaram a Europa, voarão para a Colômbia livre que as convidarão oferecendo abrigo.’

Após ter dado mostra de poder na execução do General Piar, Bolívar conseguiu a adesão de outras duas milícias, a de Santiago Mariño e a de José Antonio Páez. Em 1819 Bolívar encontrava-se encurralado nos Andes do oeste venezuelano. Ao perceber que estava a menos de 300 milhas de Bogotá, ele partiu para a captura da mesma, liderando seus 2.400 homens através do estreito Páramo de Pisba nos Andes, muitos dos quais pereceram na travessia.

Bolívar conseguiu finalmente libertar as províncias do norte, após ter vencido a batalha de Carabobo em 24 de Junho de 1821. Seu próximo passo foi enviar tropas para o sul, sob o comando do General Antonio José de Sucre, que libertou o Equador. Mais tarde Bolívar partiu para se reunir às tropas de Sucre. Após encontrar-se com José de San Martín, decidiu-se que Bolívar se encarregaria da libertação do Peru, o último território realista do continente. O Peru havia se declarado independente em 1821, mas a verdadeira libertação só veio depois que Bolívar e Sucre venceram a batalha de Junín, em seis de agosto de 1824 e a batalha de Ayacucho em nove de agosto. Um ano depois, em agosto de 1925 Bolívar foi confirmado como presidente do Peru.

Com Bolívar ausente em novas investidas militares, as lideranças regionais tomaram proveito da situação para se fortalecerem, o que fez com que a nova República da Gran Colômbia começasse a desmoronar. Na Venezuela a situação já era delicada com as ameaças de ruptura por parte de José Antonio Páez, mas a profundidade da ruptura entre as províncias já não era reparável.

Para controlar a situação, Bolívar acabou tomando o poder à força e passou a governar como ditador, alegando caráter excepcional e temporário para salvar a república. Na Nova Granada houve muitos protestos públicos contra Bolívar, organizados por uma campanha contraria que Bolívar atribuiu ao Vice-Presidente Santander. Bolívar foi vilificado perante a população, quando um boneco representativo do mesmo foi queimado em praça pública. Em 25 de setembro de 1828 Bolívar sofreu um atentado que ele também atribuiu a Santander, tendo escapado do mesmo pela intervenção da sua amante Manuela Saenz, à qual Bolívar costumava se referir como ‘a libertadora do libertador’.

Em 1829, uma assembleia popular reunida em Valência decidiu pela separação entre a Venezuela e a República da Colômbia. Ignorando a autoridade de Bolívar a assembleia nomeou Paez como chefe supremo do novo país separado. Bolívar renunciou e decidiu afastar-se da vida pública. Uma nova assembleia constituinte foi formada em 36 de maio de 1830.

Após sua renúncia em 1829 Bolívar foi morar na costa. Entretanto, ao receber a notícia do assassinato do seu amigo, o General Sucre, ele ficou muito abalado e até cogitou partir para a Europa. O estado de saúde de Bolívar não era muito bom. Bolívar sofria dores de cabeça, falta de ar, febres e perdas de consciência, e mostrava sinais de que havia ainda contraído tuberculose. A amargura de Bolívar agravou o seu estado de saúde e ele veio a falecer pouco depois, em 17 de dezembro de 1830 em San Pedro Alejandrino, próximo a Santa Martha. Passou-se um bom tempo até que a imagem de Bolívar foi restaurada e ele passou a ser reverenciado como o grande herói da América do Sul.

José de San Martín
José de San Martín (1778-1850), o libertador da Argentina, Chile e Peru, nasceu em Yapeyú, atualmente San Martín, Corrientes, mas aos oito anos de idade ele mudou-se com seus pais para a Espanha. Em 1789, quando tinha apenas treze anos de idade ele entrou para a carreira militar, alistando-se no regimento de Murça. Ele participou da luta contra a ocupação francesa, que havia prendido o rei Fernando VII e colocado no seu lugar José Bonaparte, irmão de Napoleão. Numa outra missão ele lutou sob o comando do general inglês Beresford. Após a vitória na batalha de Baylen, em 19 de julho de 1808, a Andalúcia recuperou Madrid e San Martín foi condecorado com uma medalha de ouro e logo depois foi promovido a tenente-coronel. Embora não seja conhecida nenhuma evidência concreta a esse respeito, há relatos de que através de Bereford, San Martín veio a conhecer o nobre escocês Lorde Macduff, que o introduziu à loja maçônica La Gran Reunion Americana, de Londres, supostamente fundada por Miranda. San Martín teve uma passagem por Londres quando ele encontrou com Miranda e outros futuros libertadores. Quando San Martín retornou a Buenos Aires em janeiro de 1812, na fragata inglesa George Canning, as lutas pela independência já haviam começado nas províncias do sul. San Martín prontamente colocou-se a serviço dos revolucionários.

San Martín, juntamente com Carlos Maria de Avelar, criaram em Buenos Aires a loja maçônica nos moldes da loja de Cádiz, Ordem dos Cavalheiros Racionais de Lautaro. Há também especulações de que a loja de Cádiz e a Gran Reunión Americana, de Londres, supostamente fundada por Miranda, era uma só. Segundo Jasper Ridley, o autor do livro The Freemasons (1999), não existe evidência confiável que a Gran Reunión Americana, de Londres, se tratasse de uma loja maçônica oficial. A loja maçônica de Buenos Aires acabou servindo de modelo para diversas lojas ‘Lautarinas’ que se espalharam pelas Américas do Sul e Central.

Bernardo Riquelme O’Higgins
Bernardo Riquelme O’Higgins (1778-1842) era filho ilegítimo de Ambrose Bernard O’Higgins, um engenheiro irlandês que servia a coroa espanhola e que chegou a galgar o posto de vice-rei do Peru, e Isabel Riquelme, filha de uma proeminente família chilena. Seus pais não se casaram devido à necessidade de aprovação da coroa para casamentos entre servidores da coroa e pessoas nascidas na província. O’Higgins recebeu uma esmerada educação no Chile, no Peru e mais tarde na Inglaterra, onde ele frequentou durante três anos uma escola liberal baseada em Richmond. Em Londres ele conheceu Miranda, em cujo círculo ele absorveu o ideário político e revolucionário.

Depois de passar diversos anos na Inglaterra, O’Higgins mudou-se para a Cádiz, na Espanha, onde conheceu José de San Martín. Há narrativas não comprovadas de que tanto O’Higgins quanto San Martín e outros futuros libertadores teriam pertencido à loja maçônica de Cádiz, denominada Sociedad de los Caballeros Racionalles de Lautaro. O que parece mais certo é que havia sim tal loja maçônica e que a mesma teria servido de modelo para a loja de Buenos Aires, fundada por San Martín e Carlos Maria de Avelar, e denominada Ordem dos Cavalheiros Racionais de Lautaro.

Em 1800 O’Higgins embarcou de volta ao Chile, mas teve que retornar a Cádiz após seu navio ter sido interceptado por navios ingleses, que lutavam contra os franceses e os espanhóis. Em 1802 ele finalmente retornou ao Chile onde se iniciou na vida pública. Quando o governo da Espanha foi tomado por Napoleão Bonaparte, O’Higgins juntou-se aos líderes rebeldes que em 18 de setembro de 1810 haviam declarado a independência do Chile. O’Higgins usou a sua herança para formar duas milícias armadas para enfrentar a crescente oposição dos realistas e assim pode colaborar com o líder Juan Martinez de Rozas. Após ter comandado as suas tropas sob as instruções do Coronel Juan MacKenna, ele foi bem sucedido na batalha Sorpresa del Roble, contra os realistas. Na ocasião ele ficou conhecido pelas suas exortações aos soldados: ‘Ou viver com honra ou morrer com glória!’ e ‘Aquele que for valente que me siga!’ Em 1813, O’Higgins foi nomeado comandante-em-chefe do exército. A sua campanha foi bem sucedida até meados do ano seguinte, quando ele sofreu diversas derrotas e foi substituído no posto de comandante-em-chefe.

O’Higgins retirou-se com seus homens para a Argentina, atravessando os Andes, e lá ele lutou ao lado do General José de San Martín. Em 1817 O’Higgins e San Martín ganharam a independência do Chile após vencerem a batalha final de Chacabouco, após a qual O’Higgins foi designado Diretor Supremo do Chile. Nos anos seguintes O’Higgins continuou a luta para expulsar os espanhóis do Chile. Apesar de considerar-se um liberal, O’Higgins viu-se obrigado a tomar medidas autocráticas e isso acabou gerando descontentamento com o seu governo. Ao perceber que as suas duas opções eram seguir como ditador ou renunciar ele preferiu renunciar e exilar-se no Peru.

No Peru, O’Higgins tornou-se amigo de Simão Bolívar, e, em 1824, foi nomeado General de Exército da Grand Colombia, lutando sob as ordens de Bolívar. Devido à sua prolongada ausência do Chile e também por ter sido acusado de conspiração em 1826, O’Higgins recebeu baixa sem vencimentos do exército do Chile. Na ocasião ele tinha ido morar nas fazendas de Montalvan e Cuya, que havia recebido do governo peruano em pagamento pelos seus serviços. Em seis de outubro de 1842 o Congresso Chileno reverteu a decisão, decidindo que O’Higgins tinha sim o direito de receber sua pensão militar mesmo residindo no estrangeiro. Entretanto, a decisão veio tarde demais para O’Higgins, que faleceu poucos dias depois.

Antonio José de Sucre
Antonio José de Sucre (1795-1830) nasceu em Sierra de Berruecos, atualmente Cumabá, Venezuela, numa tradicional família de militares a serviço da coroa espanhola. Seu pai, o tenente-coronel Vicente Sucre y Urbaneja, apoiou a causa da independência desde o início. Aos quinze anos ele se alistou no exército patriota como alferes de engenheiros, sendo promovido a tenente durante a campanha de 1812, sob o comando do General Miranda. No final de 1815 Sucre participou da defesa de Cartagena das Índias e passou a integrar as tropas que combatiam na Guiana e no baixo Orinoco. Em 1818, já no posto de general de brigada, ele foi para Angostura, onde Simão Bolívar havia instalado o seu quartel-general e de onde organizava a nova República, e ganhou a amizade do Libertador.

Em 1821 Sucre chefiou um exército de apoio a Guayaquil, nas proximidades de onde estavam as tropas do general San Martín. Ele participou da campanha de libertação do Equador, cujo sucesso consolidou a independência da Gran Colômbia, partindo a seguir para juntar-se à campanha pela libertação do Peru. Com a renúncia de San Martín, Sucre comandou o exército que entrou em Lima em 1823, precedendo Bolívar. Ele também participou da batalha de Junín, de nove de dezembro de 1824, cuja vitória significou o fim do domínio espanhol no continente sul-americano. Tendo sido nomeado grande marechal e general chefe dos exércitos, Sucre marchou com os mesmos para o Alto Peru, onde proclamou a independência da Bolívia, assim chamada em homenagem a Bolívar, a quem encarregou de elaborar a Constituição. Apesar de ter sido nomeado presidente vitalício pela assembleia local, em 1828 ele renunciou devido às pressões dos peruanos que se opunham à independência da Bolívia.
Mesmo depois de ter se mudado para o Equador com a sua família, Sucre foi prestar ajuda à Colômbia, que havia sido invadida pelo caudilho peruano José de la Mar, derrotando-o em Portete de Tarqui. Para assinar o Tratado de Piura, ele seguiu para Bogotá, como delegado do Equador no congresso ali reunido, num momento em que a Gran Colômbia já se encontrava no processo de desintegração. Enquanto participava de uma comissão encarregada de negociar com o general Páez, que defendia a independência da Venezuela, o Equador também se declarou independente da Gran Colômbia. Sucre morreu vítima de uma emboscada na serra de Berruecos, ordenada por José Maria Obando, o chefe militar da província de Pasto.

A Influência da Maçonaria
Existe uma enorme historiografia colocando a sociedade da Maçonaria no centro das guerras de independência das Américas. É um fato não contestado de que todas as grandes transformações sociais que aconteceram nos últimos três séculos contaram com a participação de um significante número de maçons. Quase todos os líderes dos movimentos de libertação da América inglesa, hispânica e portuguesa eram maçons. Laurentino Gomes, em seu livro ‘1822’, publicado em 2010, afirmou que 50 dos 56 nomes que assinaram a declaração de independência dos Estados Unidos eram maçons. A maioria dos libertadores da América hispânica e os principais líderes que lutaram pela independência do Brasil também eram maçons.

Francisco de Miranda, o precursor da independência da América hispânica, fundou em Londres uma sociedade denominada Gran Reunión Americana, onde diversos futuros libertadores teriam se encontrado para discutir assuntos relativos à independência da América hispânica. Entretanto, de acordo com o livro de Jasper Ridley, The Freemasons (Os Maçons), publicado em 1999, não há nenhuma evidência concreta de que a Gran Reunión Americana tratava-se de uma loja maçônica vinculada à Grande Loja maçônica da Inglaterra.

Conforme já visto, havia em Cádiz, Espanha, uma loja maçônica denominada Sociedad de los Caballeros Racionalles de Lautaro, assim chamada em homenagem ao cacique que no século dezesseis lutou contra os invasores espanhóis, e da qual participou diversos revolucionários da América hispânica. Entretanto, segundo Ridley, a evidência de que o próprio Bolívar era maçon e afiliado à Sociedad de los Caballeros Racionales de Lautaro, de Cádiz, é circunstancial. Em Cumaná, na Venezuela em 1811 foi criada a loja Perfeita Amizade da qual participaram Bolívar além de diversos patriotas da Colômbia e Venezuela.

No Brasil a maçonaria começou com a Loja Cavaleiros da Luz, fundada em 1797 em Salvador, e a loja União fundada em 1800 no Rio de Janeiro. A coordenação a nível nacional de todas as lojas brasileiras deu-se em 1822, por iniciativa de duas lojas do Rio de Janeiro, a Comércio e Artes e a União e Tranquilidade, junto com a loja Esperança, de Niterói, as quais passaram a ser subordinadas à loja O Grande Oriente do Brasil, cujos primeiros mandatários foram José Bonifácio de Andrada e Silva, Joaquim Gonçalves Ledo, e por um breve período, o próprio Imperador Dom Pedro I.

Segundo Gomes, apesar da grande influência que a maçonaria exerceu na independência do Brasil, havia disputas políticas entre grupos pertencentes à mesma loja maçônica (Comércio e Artes), as quais chegaram a dificultar consolidação da monarquia constitucionalista instituída após 1822. A participação de Dom Pedro I como líder da Grande Oriente do Brasil durou pouco pois esta foi suspensa devido às disputas políticas. O livro de Gomes traz mais informações pormenorizadas sobre a Maçonaria na Independência do Brasil.

Embora a historiografia da maçonaria na América Latina faça referências à loja maçônica La Gran Reunión Americana, que teria sido fundada em 1797 por Francisco de Miranda y Rodriguez (1750-1816), na Fritzroy Square, perto de Piccadilly Circus, em Londres, e subordinada a Grande Loja de Londres, em seu livro ‘The Freemasons’ publicado em 1999, Jasper Ridley nega a existência de qualquer evidencia concreta sobre tal. Como suporte extra Ridley reitera o caráter não político da maçonaria inglesa e o fato de que nas maçonarias americanas e francesas havia membros que eram tanto a favor quanto contra as revoluções de libertação nesses países.

Como se pode esperar, qualquer sociedade unida em torno de uma causa tem uma grande capacidade de persuasão devido à psicologia de grupo. No caso da maçonaria tal causa era o ideário iluminista sobre liberdades individuais e direitos humanos. A maçonaria teve um importante papel na independência tanto da América hispânica quanto do Brasil, mas o seu papel foi indireto pois não tomava nenhuma decisão de ordem política.

Apesar do engajamento de Bolívar com o ideário Iluminista ser bem evidente nos seus escritos, Bolívar nunca se engajou confortavelmente no seio da maçonaria da maneira como fizeram os outros libertadores. Numa carta de 21 de outubro de 1825 que Bolívar escreveu ao general Santander, seu desafeto, ele desancou por atacado os membros da maçonaria chamando-os de malditos e charlatães. Cerca de um mês e treze dias depois do atentado que sofreu em 1828, Bolívar aprovou um decreto proibindo todas as sociedades secretas da Colômbia, incluindo a maçonaria.

Conclusão
Embora a maçonaria seja apresentada como uma mola propulsora dos movimentos de libertação nas Américas, tal reputação deve-se ao elevado numero de patriotas revolucionários que eram maçons e não à atuação direta da maçonaria. A maçonaria moderna inglesa, que deu origem a todas as demais, era apolítica apesar de ser um veiculo de divulgação das ideias iluministas. Entretanto, não há nenhuma prova de que a Gran Reunión Americana, a sociedade fundada em Londres por Miranda, estivesse ligada oficialmente à maçonaria inglesa. A maçonaria teve sim um papel nos movimentos de independência das Américas, mas tal papel foi sempre indireto, e apenas como veículo disseminador das ideias do Iluminismo. Apesar dos altos e baixos nos cenários interno e externo, a história dos primeiros cem anos das novas republicas hispânicas mostra um saldo positivo no legado iluminista introduzido pelos libertadores.

Nota: Veja na parte II deste artigo uma crítica ao conflito ideológico da América Latina.
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Citação:
Pires-O’Brien, J. O bicentenário da independência da América Latina I. O processo da independência e os seus personagens. PortVitoria, UK, v. 2, Jan-Jun, 2011. ISSN 2044-8236, https://portvitoria.com/