A bússola incerta da pós-cultura
Joaquina Pires-O’Brien
Resenha do livro A civilização do espetáculo de Mario Vargas Llosa. Tradução de Cristina Rodriguez e Artur Guerra. 219 pp. Quetzal Editores, Lisboa. 2012. €16,60. ISBN: 978-989-722-059-3.
Quando em 2010 o nome de Mario Vargas Llosa foi anunciado como o vencedor do prêmio Nobel de literatura, muitos intelectuais de esquerda protestaram contra a escolha por considerá-lo uma voz perniciosa da direita, fato que o jornalista Johan Norberg registrou numa matéria republicada em PortVitoria (3, 2011). É que Vargas Llosa não era apenas um romancista mas também um intelectual público conhecido pela sua visão liberal democrática. Foi com o seu chapéu de intelectual público que Vargas Llosa escreveu este livro. A sua tese central é a de que a cultura tradicional encontra-se sob uma enorme ameaça, pois a civilização do espetáculo de hoje em dia valoriza apenas as novas culturas, enquanto que a cultura tradicional – entendida pelas atividades intelectuais, artísticas e literárias capazes de transcender o tempo –, perdeu a antiga superioridade. Por considerar as novas culturas uma impostura, Vargas Llosa opta por designá-las pelo termo coletivo ‘pós-cultura’.
O livro começa com uma introdução que consiste em uma revisão da literatura sobre a metamorfose da acepção de cultura, indo de T.S. Eliot a Frédéric Martel e passando ainda por George Steiner, Guy Debord, Gilles Lipovetsky, Jean Serroy e outros. O ensaio de T. S. Eliot intitulado ‘Notes towards the definition of culture’, publicado em 1948, é uma advertência à ameaça contra a alta cultura e uma defesa da hierarquia das classes culturais. Tal ensaio é criticado por Steiner num artigo de 1971, no qual este ressalta a omissão de Eliot relativa ao Holocausto e a outras grandes carnificinas, sublinhando que ‘a cultura em vez de atenuar, provoca e celebra essas sangrias’. Vargas Llosa esclarece a diferente ‘aproximação’ de cultura entre o seu livro e o livro de Guy Debord A sociedade do espetáculo, de 1967, apesar da semelhança dos títulos. Debord, Vargas Llosa afirma, revisita uma tese da juventude de Marx sobre a alienação da sociedade industrial moderna dominada pelo capitalismo e que ‘é mais econômica, filosófica e histórica do que cultural’. Outra referência é o livro de 2010 de Gilles Lipovetsky e Jean Serroy A cultura-mundo. Resposta a uma sociedade desorientada, no qual a cultura-mundo é uma referência à cultura global, convertida em verdadeira ‘cultura das massas’ devido à capacidade de alcançar a maior quantidade possível de consumidores. Também de 2010 é o livro Cultura Mainstream, do sociólogo Frédéric Martel, sobre a cultura resultante da globalização e da revolução audiovisual, denominadores comuns dos povos dos cinco continentes do mundo. Vargas Llosa interpreta a cultura mainstream de Martel como aquilo que ele chama de ‘cultura do entretenimento’. Ele concorda com Martel que o enorme valor comercial da cultura mainstream não mitiga ou atenua o desaparecimento da velha cultura.
Os ensaios desse livro são organizados dentro de seis categorias: I. ‘A civilização do espetáculo’; II. ‘Breve discurso sobre a cultura’; III. ‘Proibido proibir’; IV. ‘O desaparecimento do erotismo’; V. ‘Cultura, política e poder’; e VI. ‘O ópio do povo’. E no final há ainda um posfácio contendo três ensaios adicionais: ‘Reflexão final’, ‘Mais informação, menos conhecimento’ e ‘Dinossauros em tempos difíceis’.
Vargas Llosa começa a descrever a civilização do espetáculo com uma cena de setembro de 2008 em Nova Iorque, registrada numa crônica de El País, em que diversos papparazi fazem plantão em frente às torres do setor bancário na expectativa de captar um eventual suicídio decorrente do recente colapso financeiro. Para Vargas Llosa, essa cena representa, melhor do que qualquer outra, o estado da nossa civilização, na qual o entretenimento ocupa o primeiro lugar na tabela de valores – e nele estão incluídos a bisbilhotice e o escândalo que alimentam o jornalismo irresponsável. Para o escritor peruano, o início do declínio da nossa civilização coincide com o início da prosperidade que se seguiu à Segunda Guerra Mundial, quando cresceu a classe média e aumentou o tempo de lazer das pessoas, gerando uma enorme demanda por entretenimento. Outro fator contribuinte para esse declínio foi o desejo de levar a cultura tradicional ao grande público, que teve o ‘indesejado efeito de trivializar e vulgarizar a vida cultural’. E, somado a esses dois fatores, houve outros tipos de comportamentos, como o maior consumo de álcool e de drogas recreativas, a ânsia de fama, a bisbilhotice, o desejo de experiências de massa como festivais, as raves de música eletrônica e os jogos de futebol.
Em ‘Breve discurso sobre a cultura’, Vargas Llosa revisita a evolução do conceito de cultura desde os tempos antigos até chegar à redução horizontal de todas as culturas, proposta pelos antropólogos. A cultura tradicional foi aos poucos substituída pela nova cultura, definida como sendo uma realidade autônoma de ideias e valores estéticos e éticos, independente do seu grau de profundidade e transcendência. Todo mundo é culto nessa nova cultura que se estende a tudo e a todos. E, isso é válido até para as culturas infames como a ‘cultura da pedofilia’, a ‘cultura da marijuana’, a ‘cultura punk’ e a ‘cultura da estética nazista’. Entretanto, como tais culturas infames tendem a ser marginalizadas pela sociedade, elas não chegam a representar uma ameaça real para a cultura tradicional. Uma potencial ameaça que Vargas Llosa se esqueceu de mencionar nesse livro foi a cultura hip-hop, a mais notável mistura de arte com entretenimento que já surgiu.
Em ‘Proibido proibir’, o autor procura mostrar a reação contrária a proibições de qualquer natureza, que começaram com os protestos estudantis de maio de 68 contra o autoritarismo do establishment. Quando confrontados com questões morais de fundo ideológico, religioso ou étnico, os Estados laicos modernos buscam coerentes com suas constituições. Vargas Llosa aponta que, ainda que coerentes, tais soluções são impossíveis de agradar a todos. Dois exemplos mencionados são a proibição do uso do véu muçulmano nas escolas e nos recintos públicos na França e a retirada dos crucifixos das salas de aulas na Alemanha.
Em ‘Cultura, política e poder’ Vargas Llosa mostra como a tentativa de adaptar a cultura para o grande mercado sufocou a cultura tradicional ou tirou-a de vista. A cultura pós-moderna deu origem à pós-cultura, caracterizada pela diversão instantânea que proporciona. O problema da pós-cultura encontra-se no relativismo que a torna suscetível à anomia, à apatia cívica, ao desapego à lei e à falência da ordem espiritual. O resultado é uma sociedade enfraquecida e vulnerável não só aos lobos e hienas políticos mas também aos monstros do nacionalismo e do racismo.
No posfácio deste livro, o ensaio Dinossauros em tempos difíceis é a transcrição de um discurso que Vargas Llosa fez em 1996, quando recebeu o Prêmio da Paz oferecido pelos livreiros e editores alemães, dando uma descrição pessimista do estado da literatura apesar da estatística positiva em termos de números de títulos publicados e vendas de livros. Vargas Llosa autodescreveu-se como um ‘dinossauro’ pelo fato de ser um dos poucos indivíduos que ainda creem que a literatura não existe apenas para o entretenimento, mas que tem o poder de ‘ajudar os leitores a entender melhor a complexidade humana, a manter-se lúcidos sobre as deficiência da vida, alertas perante a realidade histórica circundante e indóceis à manipulação da verdade por parte dos poderes constituídos’. Vargas Llosa conclui o discurso, mostrando o paradoxo do declínio da literatura nos países mais cultos e mais livres do mundo e a sua valorização nos países que tendem a ser conhecidos pelas violações de direitos humanos. Enquanto no primeiro grupo a literatura vem se convertendo ‘num entretenimento intrandescente’’, no segundo grupo a literatura é percebida como veículo disseminador de ideias subversivas e germe de insatisfação e rebeldia.
Apesar do retrato pessimista da literatura feito por esse livro, é possível argumentar que a cultura tradicional e ‘as culturas’ tenham o seu tempo e lugar e que a opção por uma delas em primeiro lugar não significa falta de interesse pela outra. A civilização do espetáculo de Mario Vargas Llosa é um convite à reflexão sobre as nossas escolhas no campo da cultura em geral e da literatura em particular.
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Joaquina Pires-O’Brien é a editora de PortVitoria.
Citação:
VARGAS LLOSA, M. A civilização do espetáculo. Tradução de Cristina Rodriguez e Artur Guerra. Quetzal Editores, Lisboa. 2012. ISBN: 978-989-722-059-3. Resenha de: PIRES-O’BRIEN, J. (2014). A bússola incerta da pós-cultura. PortVitoria, UK, v. 8, Jan-Jun, 2014. ISSN 2044-8236, https://portvitoria.com