A coruscante visão moral de André Glucksmann
Adam Gopnik
André Glucksmann, que morreu na noite de segunda-feira [10 de novembro de 2015], em Paris, foi uma das grandes figuras e pensadores mestres da vida francesa contemporânea, com a ironia de que grande parte de sua grandeza dependia de seu desmantelamento apaixonado da ideia de ‘grandes homens’ e ‘mestres pensadores’, que ele achava ter desfigurado a vida europeia por muito tempo. Sua morte, aos setenta e oito anos, é mais do que dolorosa; é desconcertante e desorientadora. Se você tivesse a sorte de conhecê-lo, ainda era possível imaginar uma viagem de metrô para seu grande apartamento boêmio repleto de livros no norte de Paris e, com sua esposa brilhante, Fanfan, empenhada a seu lado – numa atmosfera sempre de algum modo mais chekhoviana que francesa – tomando chá e falando sobre o mundo.
Glucksmann, cuja franja prateada e olhos de águia encapuzados, tornou-se um ícone familiar do intelecto francês – nos anos setenta, quando emergiu como um dos ‘Novos Filósofos’, suas qualidades telegênicas tinham sido uma parte inegável do pacote – não era o tipo de filósofo que gostava de argumentar por si próprio. Ele preferia a verdade, se você a pudesse encontrar, pelo bem dos outros. Ele tomaria todo o tempo do mundo em busca disso, por mais remoto que fosse o caso: as lutas dos tchetchenos, ucranianos e ruandeses eram tão vivas para ele quanto as preocupações locais da França. O seu globalismo era um lembrete do melhor lado do universalismo francês em um momento de contração de horizontes.
Depois de uma tarde de Glucksmann, você emergiria sentindo-se um tanto envergonhado, não importa qual fosse o assunto, dos equívocos jornalísticos com os quais você poderia ter chegado – e vendo, com uma claridade estimulante, a verdade moral mais simples da circunstância. A última vez que o visitei foi quando cheguei a Paris para escrever sobre a crise do povo Roma, os ciganos. Ele escutou enquanto eu me preocupava com as muitas facetas da ‘questão’ – a verdade de que os ciganos estavam envolvidos em pequenos crimes, o compreensível medo popular dos imigrantes, etc. Então ele disse simplesmente: ‘Devemos reler Victor Hugo. Todos estão implicados. A face feliz do nomadismo é que todos os franceses foram para Londres para serem banqueiros. A face miserável é a do pobre cigano em seus acampamentos. Por ‘nós’, ele quis dizer ‘você ‘, e eu fui para casa e reli Hugo, e descobri o que Glucksmann já sabia – que, no livro Les Misérables, o inspetor Javert, a cruel personificação da mente do policial, era filho bastardo de uma família de ciganos. Estamos todos implicados.
A erudição fácil foi mais comovente por ter sido tão duramente conquistada. Glucksmann nasceu de dois apaixonados peregrinos intelectuais judeus do tipo que já foi a glória da mente europeia. (Os seus pais se conheceram quando, nos anos trinta, em Jerusalém, cada um reconheceu a capa vermelha do diário de Karl Kraus em seus bolsos.) Durante a guerra ele foi deportado com a sua família para Bourg-Lastic, uma estação de espera a caminho de Auschwitz. (Ver sua mãe enfrentar a polícia francesa lá, anunciando com franqueza aos internados que eles estavam sendo enviados para a morte, foi, como ele relatou em seu livro de memórias urgente, Une Rage d’Enfant (Uma raiva de criança), foi uma experiência de âncora para ele, provando que, confrontada com o mal, a resistência é sempre mais valiosa do que a obediência.) A experiência de 68 transformaria ele primeiro em radical e depois, brevemente, em maoista – isto ocorreu quando as ilusões do maoismo sugeriram que poderia ser uma alternativa populista ao Estalinismo do Partido Comunista Francês, uma noção maluca agora, mas que, para entender, era preciso estar lá. Então, nos anos setenta, sob a influência de Solzhenitsyn em particular, Glucksmann se voltou decisiva e permanentemente contra todas as formas de totalitarismo.
Ele às vezes lamentava as posições anteriores, mas não a experiência juvenil. Por entender que era fácil perseguir a paixão pela justiça e pela revolução usando medidas obscenas, Glucksmann podia entender a tentação totalitária como resposta a uma necessidade profunda e inexpugnável da natureza humana por um mestre, um guia. Seu amigo e colega um tanto mais jovem, o escritor Pascal Bruckner, quando solicitado a destilar a contribuição de Glucksmann ao pensamento francês, disse que foi pôr fim a qualquer romance sobre o comunismo, mas, mais importante, redefinir a sintonia do entendimento francês: ele deixou claro que construir um mundo mais ideal era uma tarefa menos importante do que consertar o mal neste. “Eu não posso te dizer que deves ser a favor. Mas eu sei o que ser contra”, era uma das locuções favoritas de Glucksmann. Era difícil saber como fazer um mundo melhor. Mas era fácil ver o que o estava tornado terrível. Projetar a ordem ideal era um trabalho impossível. Salvar as vítimas daqueles envolvidos no planejamento de ordens ideais não era, na verdade, tão difícil quanto a nossa preguiça nos permite fingir que era.
Assim, em Ruanda, na Chechênia ou onde quer que as pessoas fossem vítimas do ogro, ele estava lá – sempre em espírito e muitas vezes pessoalmente. Todos nós, no curso normal da vida, aceitamos alguma crueldade ou brutalidade como essencial para o funcionamento do mundo, ou a integridade de nosso lado, e construímos um muro de isolamento aceitável em torno de nossas almas. Esse ataque de drone, aquele massacre de inocentes – bem, lamentável, mas, certamente, possivelmente necessário? Ele não aceitava nada disso. Um admirador disse que Glucksmann não era a favor de ‘direitos humanos’ mas a favor dos ‘direitos do homem’. Essa distinção, intrigante na superfície, era fundamental: ‘direitos humanos’ podem ser atribuídos a grupos, classes, nações e movimentos. Os ‘direitos do homem’ residem apenas em indivíduos que têm uma reivindicação sobre a nossa humanidade, não importa o quanto pareçam estar no caminho dos direitos gerais abstratos de algum outro grupo, talvez maior.
Como Bruckner aponta, uma das singularidades da vida de Glucksmann era que, embora ele admirasse a contribuição americana para a definição de liberdade, ele nunca conheceu a América. Isso o tornou suscetível, particularmente na época da Guerra do Iraque, a uma visão às vezes irrealista da pureza das intenções americanas. Embora alguns tenham dito que ‘raiva’ – essa ‘raiva’ – foi a nota principal em sua mente, a verdade é que sua ‘raiva’ era mais parecida com o que chamamos de indignação, e a indignação pode ser marcada pela inocência. (Ele chocou muitos de seus amigos ao endossar Sarkozy nas eleições de 2007 – um endosso que ele não retirou exatamente, mas flexionou depois que a atitude menos que acolhedora de Sarkozy em relação a pessoas indefesas como os ciganos se tornou clara.)
Às vezes ele era chamado o Orwell francês, e ele era, de fato, igualmente destemido em seus compromissos, tomando lados para a esquerda e para a direita sem a menor preocupação sobre como atingiria qualquer outra pessoa – quem poderia alienar, ou o que determinada escola de pensamento poderia desaprovar. Mas o seu estilo estava longe da lucidez anglo-americana, e embora ele geralmente fosse chamado de filósofo, ele não era de todo um filósofo no nosso sentido acadêmico de alguém que explora uma série de tópicos resumindo o pensamento passado e depois argumentando por um nova conclusão. Ele era realmente um ensaísta, na tradição francesa, trazendo consigo um denso emaranhado de evocações históricas, polêmicas, exemplos pessoais, ironias e discursos emocionais, todos desempenhando um papel ao lado do resumo aforístico das ideias dos filósofos mais antigos.
O estilo às vezes podia ser esmagador e muitas vezes era um instrumento mais eficaz de prazer intelectual do que a persuasão política. Mas, em contrapartida, produziu milhares de pequenas epifanias – por exemplo, seu adorável ponto ‘al dente’, detalhado em um de seus livros, que entre o ‘cru’ e o ‘cozido’ – o amado binário simples do estruturalismo – havia sempre o ‘pourri’, o apodrecido, o podre. A nossa recusa em aceitar o apodrecimento como uma categoria própria foi, sugeriu ele, com uma encantada careta literária, uma espécie de cegueira moral, parte de uma falsa dialética que nos cegou para a verdade confusa e turbulenta do mundo. O mundo real não era composto de forças dialéticas oscilantes; era composto de reais e sofridas pessoas, esmagadas entre aquelas forças.
O que era difícil de ver, através dos elevados obituários desta semana, era quão doce um amigo ele poderia ser: sem pretensão ou arrogância, um homem de pura paixão intelectual, mas sem a pompa ou a autoestima que aflige a categoria. Em uma daquelas longas tardes de conversação, ele ouvia os vários lados de um dilema atual, na França ou em qualquer outro lugar, observando-o com olhos sonolentos e benevolentes, e depois pensava e finalmente falava – mais rabínico do que filosófico, buscando a verdade moral central de uma circunstância complicada. Ele costumava começar essa intervenção com um sorriso cansado e quebrado e depois dizia outra de suas locuções favoritas: “Ótimo. Agora, vamos contar até dois”. A verdade de que a guerra americana no Vietnã estava errada não significa que fomos obrigados a idealizar os seus vencedores ou a ver as vítimas do poder norte-vietnamita. Sim, é claro, havia elementos na Chechênia que eram abaixo de admiráveis - isso não alterava o dever de resgatá-los do Putinismo. Ou – uma verdade mais desconcertante para um liberal americano se envolver – não parece extremamente provinciano permitir que a antipatia a George W. Bush cegue alguém para o mal de Saddam Hussein? Um tipo de verdade não negava outro. Uma verdade, de fato, exigia a outra. O legado de Glucksmann tem uma simplicidade essencial que é quase tolstoiana: seja contra o mal porque você nunca pode ter confiança sobre o bem, e, conte pelo menos até dois quando for fazer a sua aritmética moral. Essas são boas verdades para deixar para trás, tornadas mais belas pelo quão enganosamente difíceis elas são de se viver.
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Adam Gopnik, escritor da casa, tem contribuído para o The New Yorker desde 1986. Durante a sua estadia na revista, ele escreveu textos de ficção e de humor, resenhas de livros, perfis, e reportou matérias de outros países. Atuou como o crítico de arte da revista de 1987 a 1995, e como correspondente de Paris de 1995 a 2000. De 2000 a 2005, ele escreveu sobre a vida em Nova Iorque. Os seus livros, que vão de coleções de ensaios sobre Paris a alimentos e histórias para crianças, incluem: Paris to the Moon (De Paris à lua); The King in the Window (O rei na janela); Through the Children’s Gate: A Home in New York (Através do portão de crianças: um lar em Nova Iorque); Angels and Ages: A Short Book About Darwin, Lincoln and Modern Life (Anjos e idades: um pequeno livro sobre Darwin, Lincoln e a vida moderna); The Table Comes First: Family, France, and the Meaning of Food (A mesa vem primeiro: família, França e o significado da comida); e Winter: Five Windows on the Season (Inverno: cinco janelas na estação). Gopnik ganhou três prêmios de revistas nacionais, para ensaios e críticas, e o prêmio George Polk de reportagens em revistas. Em março de 2013, Gopnik foi galhardeado com a medalha de Cavaleiro da Ordem das Artes e Letras da França. Ele também faz palestras ocasionais, e, em 2011, foi o palestrante convidado das Palestras Massey da Canadian Broadcasting Corporation. O seu primeiro musical, ‘The Most Beautiful Room In New York,’ (O quarto mais bonito de Nova Iorque) foi lançado em 2017, no teatro Long Wharf, em New Haven, Connecticut.
Notas
O presente artigo foi publicado em 11 de novembro de 2015 na revista semanal americana The New Yorker. Fonte: https://www.newyorker.com/culture/cultural-comment/the-coruscating-moral-vision-of-andre-glucksmann
© The New Yorker and Adam Gopnik.
Tradução: J Pires-O’Brien (UK); Revisão: H el Masri (UK)