A desconstrução criativa de Miguel de Cervantes

Débora P. Finamore

Resenha do livro Dom Quixote de la Mancha, de Miguel de Cervantes de Saavedra. (Tradução de Ernani Ssó; introdução de John Rutherford; posfácios de Jorge Luis Borges e Ricardo Piglia.) São Paulo: Penguin Classics, Companhia das Letras, 2012.

Miguel de Cervantes só obteve o sucesso literário aos 57 anos, com a publicação da primeira parte de Dom Quixote, em 1605. Muitos leitores desconhecem o fato de a obra mais famosa de Cervantes ter sido publicada em duas partes, com um intervalo de dez anos entre elas e com uma segunda parte apócrifa de permeio.

A saga do Engenhoso fidalgo Dom Quixote de la Mancha, escrita em prosa e em língua vulgar, surge como uma paródia dos ainda populares romances de cavalaria que vieram a público a partir do século XII. Cervantes, portanto, busca desconstruir com ironia e humor uma literatura cuja hegemonia perdurava há aproximadamente 500 anos.

Na primeira parte (O engenhoso fidalgo dom Quixote de La Mancha ), dividida em 52 capítulos, um narrador que revela estar fazendo um relato de segunda mão – a história teria sido escrita pelo historiador árabe Cide Hamete Benengeli que, como veremos mais adiante, trata-se de um alter ego de Miguel de Cervantes – narra duas viagens de um fidalgo de sobrenome Queixada ou Queijada que beirava os 50 anos, possuía compleição rija e rosto enxuto, era seco de carnes, grande madrugador e amante da caça. Tal fidalgo, em determinado momento de sua vida, dera para ler nas horas ociosas – que eram muitas – romances de cavalaria, e apenas romances de cavalaria.

Esse é o fato que o leva a empreender sua primeira viagem (capítulos 1 a 5) já intitulando-se dom Quixote, mesmo que só venha a ser sagrado cavaleiro alguns capítulos depois por um vendeiro em cuja casa se hospeda (capítulo 3).

A segunda viagem (capítulos 7 a 52) já será feita em companhia de Sancho Pança, um vizinho lavrador, elevado à condição de escudeiro do dito cavaleiro. Nessa viagem, entre tantos episódios célebres, ocorre o embate contra os moinhos de vento; moinhos de vento para Sancho e para nós, os leitores ‘realistas’, gigantes para o visionário dom Quixote.

A primeira parte do livro finda com o segundo retorno de dom Quixote a sua casa, depois de passar por muitas peripécias, que vão transformando os olhares do cavaleiro e do escudeiro — dom Quixote começa a ver não apenas com a lente do ideal, mas também com a do real; Sancho Pança, por sua vez, se deixa encantar pelos ideais da cavalaria e da arte. Todavia, o ladino narrador diz-nos ter encontrado novos relatos do Quixote os quais nos promete apresentar em breve ocasião.

Embora o livro (essa primeira parte) fizesse enorme sucesso – só a Bíblia o ultrapassava em número de vendas –, quase dez anos se passaram sem que Cervantes desse ao público a prometida segunda parte. Nesse vácuo, um escritor de pseudônimo Alonso Fernadez de Avellaneda publicou, em 1614, a continuação das aventuras de dom Quixote e Sancho Pança. Mesmo sem a maestria do original, o texto apócrifo alcançou algum sucesso. Possivelmente movido por esta intrusão autoral, contra a qual o criador não poderia lutar, visto que o livro inautêntico fora publicado com a devida aprovação da Igreja e do Rei, Cervantes pôs-se a escrever a sua segunda parte, a qual veio a lume em 1615.

Na segunda parte (O engenhoso cavaleiro dom Quixote de La Mancha ), dividida em 74 capítulos, a terceira e última viagem de dom Quixote é narrada pelo mesmo narrador de segunda mão, desta vez ainda mais ladino, na medida em que intensifica as marcas do texto cervantino que justificam o fato de Miguel de Cervantes ser considerado um divisor de águas entre a literatura antiga e a literatura moderna. Uma dessas marcas encontra-se na inversão e na duplicação do paradoxo entre ‘real’ e ‘ideal’ – o razoável Sancho embarca cada vez mais na fantasia, enquanto o louco dom Quixote recobra pouco a pouco sua lucidez.

Nessa parte, embora o cavaleiro ainda vivencie muitas de suas tresloucadas aventuras, o que chama atenção do leitor é o fato de o cavaleiro se aproximar cada vez mais do real que abandonara em nome do ideal motivador de suas duas primeiras viagens. Logo no início (capítulo 10), dom Quixote pede a Sancho que promova um encontro entre ele e sua amada; Sancho, fazendo o jogo fantasioso do cavaleiro, apresenta-lhe três lavadeiras como sendo Dulcineia del Toboso e suas aias. Dom Quixote, então, surpreende Sancho e o leitor, quebrando o jogo fantasioso, ao dizer que vê somente três lavadeiras montadas em seus burricos.

O uso da metalinguagem é outra das marcas do texto cervantino que justificam sua modernidade. Nessa segunda parte, o narrador desdenha com preciso sarcasmo a obra apócrifa de Avellaneda, explicitando a autoria da mesma em vários episódios. Num deles (capítulo 59), o cavaleiro e seu escudeiro encontram, em uma estalagem, dois fidalgos, dom Juan e dom Jerônimo, que leem a segunda parte apócrifa das aventuras de dom Quixote. Tanto ele como Sancho discutem com os cavaleiros, renegando a versão apresentada, por essas conter muitos erros em relação ao dom Quixote “real”; por exemplo, dom Quixote se indigna de o falso autor o apresentar já desenamorado de Dulcineia del Toboso. Noutro episódio (capítulo 70), uma personagem, Altisidora, sonha com diabos que jogam livros como se jogassem bola, e, entre os livros que serviam como bola, encontra-se a falsa segunda parte de Avellaneda. Ainda num outro episódio (capítulo 72), a autoria verdadeira e a autoria falsa da história de dom Quixote, ou seja, a versão de Cide Hamete (alter ego de Miguel de Cervantes) e a versão do autor tordesilhesco (Cervantes não se digna a nomear Alonso de Avellaneda, refere-se a ele apenas pelo adjetivo gentílico) são colocadas em xeque no encontro que se dá, em uma hospedaria, entre Sancho Pança, dom Quixote e dom Álvaro Tafer. Este último é um personagem do livro de Avellaneda, tido como amigo de dom Quixote que, entretanto, não vê nenhuma semelhança entre o dom Quixote do tordesilhesco e o cervantino que se encontra à sua frente.

O ápice dos paradoxos — real x ideal; verdadeiro x falso; loucura x sanidade; vida x arte —, desenvolvidos nas partes 1 e 2 da saga do Dom Quixote de la Mancha, se dá no capítulo final (capítulo 74). Nesse capítulo, dom Quixote faz seu testamento como Alonso Quixano, o Bom e nosso narrador de segunda mão assume sua condição de autor único e ‘verdadeiro’ do personagem Quixote/Quixano.

Há, no Brasil, dezenas de edições brasileiras da tradução lusitana do Dom Quixote feita pelos viscondes de Castilho e de Azevedo, publicada em Portugal desde 1876 e no Brasil desde 1898 até o momento presente.

Já a primeira tradução brasileira de que se tem notícia foi feita por Milton Amado e Almir de Andrade (editora José Olympio), em 1952. Três décadas depois, em 1983, aparece a tradução de Eugênio Amado (editora Itatiaia). Com a chegada do século XXI, que marca o quadricentenário da obra-prima de Miguel de Cervantes, novas traduções brasileiras vem sendo lançadas. Alguns exemplos: a de Sérgio Molina (editora 34), em 2002 e 2007; a de Carlos Nougué e José Luis Sanchez (editora Record), em 2005; e a de Ernani Ssó (Penguin/Companhia das Letras), em 2012. Essa resenha tomou como texto base essa última tradução.

                                                                                                                                               

Débora P. Finamore é colaboradora e membro do conselho editorial de PortVitoria.

Citação

CERVANTES DE SAAVEDRA, Miguel de. Dom Quixote de la Mancha. (Tradução de Ernani Ssó; introdução de John Rutherford; posfácios de Jorge Luis Borges e Ricardo Piglia.) São Paulo: Penguin Classics, Companhia das Letras, 2012. Resenha de FINAMORE, D. P. A desconstrução criativa de Miguel de Cervantes. PortVitoria, UK, v.13, Jul-Dec, 2016. ISSN 2044-8236, https://portvitoria.com