A Espanha como primeiro império global da história moderna
Juan José Morales
Resenha do livro World without end: The global empire of Felipe II (Mundo sem fim: O império global de Felipe II), de Hugh Thomas. Penguin Books Ltd, julho 2014.
O Império Espanhol existiu durante três ou quatro séculos e se estendeu a vastas áreas do globo. Nos estágios iniciais de sua expansão, a própria Espanha estava emergindo como nação-Estado moderna, os antigos reinos da Península Ibérica estavam se unindo gradualmente em uma única coroa, enquanto que uma enorme transformação social, religiosa e econômica estava a caminho. Uma compreensão adequada de tais desenvolvimentos complexos demanda prudência; o problema nesse campo não é a falta de documentos, mas sim o excesso desses.
O modo como a Espanha e o Império eram percebidos de fora é um tópico por si próprio. No mundo falante de inglês, a ameaça de um inimigo temível, no auge dos seus poderes, resultou numa visão compreensivelmente negra. Que isso tenha se tornado a sabedoria convencional e que tenha perdurado até o presente tem muito a ver com as tentativas de justificar e explicar a dominância ou o sucesso anglo-saxão, usando a Espanha em declínio como contraexemplo. Ideologicamente, essas visões se transformaram numa comparação de modelos religiosos, filosóficos e políticos, seguidos dos econômicos.
Dos libretos de ópera a Hollywood, na cultura popular ocidental, o rei espanhol Felipe II foi descrito como um monstro; na qualidade de mito popular, essa imagem deve perdurar. Contra a maré, não faltam livros, em variadas línguas, que tratem inteligentemente do Império Espanhol e de Felipe II, embora eles sejam, na maior parte, estudos especializados restritos aos círculos acadêmicos. A obra magistral de Fernand Braudel La Méditerranée et le monde méditerranéen a l’époque de Phillippe II (1949) ainda se destaca. Em inglês, o notável John H. Elliot preparou o alicerce para estudos mais profundos sobre a Espanha Imperial, em conjunto, mais recentemente, com o singular Felipe Fernández-Armesto, um historiador britânico de origem espanhola. Talvez a melhor biografia em inglês continue sendo a de Peter Pierson, Philip II of Spain (1975). Apesar de esgotada há bastante tempo, é notável pelas suas fontes e pela forma como coloca o tema dentro do contexto histórico. É, entretanto, revelador que nenhuma das excepcionais obras dos historiadores espanhóis tenha sido traduzida para o inglês, incluindo aquelas de especialistas líderes nesse campo, como os já falecidos professores Manuel Fernández Álvarez e Francisco Morales Padrón.
O venerado Hugh Thomas, celebrado pela sua inovadora obra The Spanish Civil War, publicada no início da década de 1960, publicou recentemente uma série de livros sobre o Império Espanhol. A sua abordagem é uma mistura de personalidades ‘coloridas’, bastante ação – nisso o tema é inexaurível − e algumas poucas reflexões. O livro World without end, o terceiro da trilogia, cobre as últimas conquistas do monarca; vai de 1540, quando Felipe II inicia a sua regência na Espanha – ele assumiu o Império desde a abdicação do seu pai Carlos V em 1556 − até a sua morte em 1598, quando a expansão cessou. Durante esse período, os conquistadores se converteram ou foram substituídos pelos colonizadores e pelos administradores – os vice-reis, os governadores, os bispos, e os padres − emergiram na qualidade de novos protagonistas. Hugh Thomas, que é um lorde inglês e amigo dos aristocratas espanhóis, tem um dom para descrever os grandes fidalgos do passado, exercício que é, às vezes, prejudicado pela atenção excessiva a genealogias.
O mérito do livro, entretanto, reside no fato de que, ao tentar uma explicação mais ampla da natureza, do alcance e dos feitos desse Império, Thomas revele as suas feições mais distintas. Este foi o primeiro Império global da história moderna, o qual se deu após a invenção da imprensa e no qual a palavra escrita ia ter um papel deveras fundamental. Os espanhóis eram desbravadores, velejaram os novos oceanos e foram os primeiros a descobrir e explorar uma geografia que se encontrava ainda por mapear. Nada os havia preparado para as culturas díspares e para a miríade de povos com que eles encontraram. Enquanto lhes emprestaram a sua própria cultura, religião e instituições, se misturaram com os povos indígenas. Além disso, questionaram o seu direito de dominar; muitos trabalhos filosóficos foram escritos em defesa dos índios; em particular, os de Francisco de Vitoria destacam-se como uma das bases da lei internacional moderna.
Hugh Thomas descreve Felipe II incisivamente como um “déspota esclarecido” e um “monarca burocrata”. Este, provavelmente, tinha a maior biblioteca da Europa, assistia aulas na universidade, e era um perspicaz conhecedor de arte, tendo patrocinado Ticiano e colecionado as obras-primas dos grandes pintores Jerônimo (Hieronymus) Bosch, Joaquim Patinir e Van der Weyden, que hoje se encontram no Museu do Prado. Felipe II assumia também os assuntos do dia, lidando com os oficiais e com uma interminável comitiva de militares e clérigos.
O poderoso e temido Felipe II tinha as falhas de um homem comum: deixou de lado alguns de seus aliados mais leais e competentes e depositou a sua confiança naqueles que não mereciam. Demasiadamente orgulhoso, os seus erros mais graves – como o desastre da Armada e a má gestão dos Países Baixos − foram causados pela sua excessiva confiança. Ele foi um homem de família, as suas cartas revelam o seu apego às suas filhas. Dentro de todos os seus reinos, Felipe II sentia-se mais à vontade em Castela, pois adorava o jeito franco de seu povo. Mas, os castelhanos detestavam-no, porque tiveram que suportar o ônus de guerras intermináveis e de crescentes impostos.
O Império Espanhol, contudo, não resultou do desígnio de um único homem: havia um ímpeto coletivo e diversas personalidades também deixaram as suas marcas.
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Conforme explicou o historiador Richard L. Kagan, no seu estudo de 1974 Students and society in early modern Spain, durante o século dezesseis, a Europa teve uma “revolução educacional”, um aumento súbito e sem precedência no número de indivíduos educados, e em particular, de homens educados em universidades; e em nenhum lugar isso ocorreu mais do que na Espanha Imperial, onde eles estavam destinados a atender às necessidades de uma nação-Estado recém-criada e cuja administração dos domínios ultramarinos assumiriam em breve.
“No total, os espanhóis da Idade Dourada criaram ou reestabeleceram nada menos do que quarenta universidades, incluindo aquelas nos territórios da Europa controlados pela Espanha, recorde que nenhum outro país europeu pode igualar.”
Embora os efeitos dessa instrução tenham tido curta duração, até 1600, Castela era, talvez, o reino mais bem educado da Europa.
Os conquistadores eram na sua maior parte instruídos; definitivamente todos os seus líderes eram. Uma mesa e uma cadeira dobráveis faziam parte dos seus apetrechos – até mesmo nas menores expedições de penetrar numa floresta ou subir em montanhas −, pois eles tinham que registrar os seus feitos e reportá-los à Corte para pedir reconhecimento e recompensa. A “Conquista” – o emprego deste termo era proibido – não foi uma atividade oficial, mas sim financiada pela iniciativa privada, sob uma licença da Coroa. Eles também administravam justiça local, por escrito, de acordo com a tradição espanhola. Assim que eles se assentavam, fundavam um povoado, dotado de um concelho e de um tribunal. A idade da conquista e da exploração gerou uma enorme quantidade de documentos. Uma vasta gama de crônicas, tratados, relatórios, registros de julgamentos, correspondências e memorandos lotam os arquivos espanhóis. Uma pesada burocracia. Por vezes uma ferramenta útil para neutralizar ambições de indivíduos, a burocracia também teria sido uma causa da estagnação. Conforme um vice-rei de Nápoles colocou em relação às suas instruções de Madrid: “Se alguém tivesse que esperar pela morte, iria desejar que ela viesse da Espanha, pois assim ela nunca chegaria.”
A força motriz por detrás dos conquistadores era bastante simples: o desejo de avançar a sua posição econômica e social. A religiosidade e o espírito de cruzados também tiveram os seus papéis. E um gênero literário emprestaria a esse empreendimento as paisagens mentais inspiradoras e um caráter peculiar: os romances de cavalaria, que, na ocasião, eram manias na Espanha. A “Patagônia” e a “Califórnia” são nomes de lugares totalmente fantasiosos, retirados diretamente dos romances de cavalaria.
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O livro World without end tem uma ampla seção dedicada à expansão espanhola na Ásia, que começou com uma base em Manila. As relações comerciais que logo se estabeleceram com a China são bem conhecidas; essas foram seguidas de um padrão consistente através da rota Galeão de Manila ou Nau da China. Esse comércio consistia em produtos de luxo para atender as altas classes da América Espanhola, que, em troca, exportava a prata.
A primeira expedição espanhola oficial à China chegou em Fuzhou em julho de 1575. Ela foi recebida pelo governador de Fujian, Lin Yaohiu, que demonstrou a costumeira diplomacia chinesa, com uma mensagem inequivocamente obstinada envolta em palavras polidas. As autoridades espanholas em Manila corresponderam com uma falta de tato que iria provocar a irritação chinesa, e, daquele momento em diante, ambos os lados souberam que outras relações não iriam acontecer.
Lamentavelmente, o autor escolheu materiais do arquivo que revelam as maquinações de um governador e de um jesuíta para invadir a China. Elas não passavam de “planos” grotescos que, independentemente da quantidade de correspondências contidas no arquivo, não merecem mais que uma nota de rodapé. As instruções de Felipe II voltadas a manter as boas relações com a China eram claras:
“Sobre a conquista da China, que V. Exa. parece pensar que deveríamos perseguir agora, daqui nos parece que essa não é a melhor hora de discutir o assunto, mas que deveríamos ao invés procurar ser bons amigos dos chineses. Abstenha-se; não se junte aos inimigos corsários dos referidos chineses, nem lhes dê motivo para se indignar contra nós.”
No seu livro, Thomas parece ter cometido um pequeno erro na tradução do trecho acima, mostrando os corsários como aliados ao invés de (como no original) inimigos dos chineses. O livro tem diversas imprecisões desse tipo − por exemplo, a origem de algumas cidades, vilas e pessoas mudam de uma província para outra − coisas que deveriam ter sido apanhados antes da publicação.
As contribuições espanholas em relação à China fora na verdade mais pacíficas. A primeira expedição oficial havia sido comandada por Miguel de Luarca, um militar veterano, e o Frei Martin de Rada, um matemático e astrônomo, familiarizado com a língua dos otomi após a sua estadia na Nova Espanha. Ambos eram espanhóis do seu tempo, o soldado e o frei adquiriram livros na China e ficaram prazerosamente surpreendidos com o fato de que esses eram baratos. Baseado nos relatos deles e de outros pioneiros espanhóis e portugueses, Juan González de Mendoza escreveu The History of the great and mighty Kingdom of China, publicado primeiramente em Roma em 1585 e logo em seguida traduzido para as principais línguas europeias. Embora Hugh Thomas admita que o livro de Mendoza tenha sido um bestseller durante cinquenta anos, este foi muito mais. Pela primeira vez uma quantidade razoável de informações sobre a China chegou ao Ocidente. A China foi apresentada como sendo uma luz favorável ou como uma civilização urbana, consciente de suas realizações e interessada na educação. O livro continha descrições de escolas e hospitais, das riquezas do comércio e de estilos de vida. Infelizmente, tal versão europeia original foi mais tarde suplantada pelas visões posteriores da revolução industrial, contaminada por insultos raciais de uma China então em declínio.
Um legado importante, o primeiro mapa da China produzido no Ocidente foi publicado em 1584, Cum privilegio Imperatoris, de Abraham Ortelius (reproduzido na China in European Maps: A Library Special Collection, compilado e editado por Min-min Chang). O mapa foi baseado no trabalho do geógrafo português Luís Jorge de Barbuda, também a serviço do rei. A Grande Muralha, os principais rios e as quinze províncias foram identificadas pela primeira vez. No verso foram impressos os primeiros caracteres chineses que chegaram na Europa, derivados de cartas do Frei Bernardino de Escalante.
Na mesma linha, em 1592 um outro frei espanhol em Manila, Frei Juan Cobo, fez a primeira tradução de um texto chinês – um livreto de Confúcio− em uma língua europeia, o castelhano espanhol; e ele também traduziu, pela primeira vez para o chinês, um resumo da ciência europeia, o Shi Lu.
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O primeiro encontro entre a Espanha e a América teve um custo humano que ainda não é totalmente conhecido. As epidemias europeias às quais a população indígena não tinha nenhuma imunidade causou a aniquilação de milhões. Não há como negar o abuso e a exploração; os relatos de primeira mão estão disponíveis, então e hoje, para todos lerem. Os assassinatos de Montezuma, Atahualpa e Tupac Amaru ressoam em todas as escolas de todo o mundo de fala espanhola. Nas suas salas de aula, a literatura de Alonso de Ercilla, Inca Garcilaso e da Sóror Juana Ines de la Cruz ainda é ensinada, e ninguém pergunta ou lembra de que raça eles eram. Por volta de 1535, a primeira imprensa do México estava montada e em funcionamento. Uma nota escrita pelo primeiro livreiro mexicano revela haver um estoque grande de La Celestina, um dos primeiros clássicos da literatura espanhola e, na verdade, uma crítica ácida dos costumes sociais. Em torno de 1570, a principal controvérsia em Lima foi aquela entre a Universidade Real de San Marcos e o Colégio Jesuíta de San Pablo. Muitas cópias da primeira edição de Don Quixote de 1605 foram despachadas para o Peru.
Parafraseando o grande historiador John H. Elliott, uma visão compreensiva do passado continua essencial.
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Juan José Morales escreve na revista espanhola Compromiso Empresarial. Ele já ocupou o cargo de Presidente da Câmara do Comércio da Espanha em Hong Kong, possui um mestrado em Relações Internacionais e Públicas pela Universidade de Hong Kong e também estudou relações internacionais na Universidade de Peking (Beida).
Cortesia de:
© The Asian Review of Books 9 Sep 2014 &
Juan José Morales. Fonte: http://www.asianreviewofbooks.com/new/?ID=2004#!
Tradução: Joaquina Pires-O’Brien
Revisão: Débora Finamore
Citation:
THOMAS, H. The global empire of Felipe II. London, Penguin Books. Resenha de: MORALES, J. J. (2015). a Espanha como primeiro império global da história