A mescla entre o real e o ficcional na novela filosófica de Kundera
Débora P. Finamore
Resenha do livro A lentidão, de Milan Kundera. Tradução de Maria Luiza Newlands da Silveira e Teresa Bulhões Carvalho da Fonseca. São Paulo, Companhia do Bolso, 2011.
Milan Kundera, autor tcheco nascido em 1929, vive na França desde 1975. É conhecido por romances nos quais reflete sobre as decepções das relações humanas. A insustentável leveza do ser (1983), sua obra mais famosa, narra os encontros e desencontros de quatro personagens, durante duas décadas.
Kundera adquiriu a cidadania francesa em 1980, contudo, somente em 1995, escreveu seu primeiro livro em francês. Trata-se de A lentidão (Cia da Letras, 2011), novela composta por 51 capítulos breves, e densos, nos quais um narrador-personagem – que logo revela ser, também, um narrador intruso – relata duas histórias paralelas e faz digressões filosóficas a partir das mesmas.
A primeira se passa no século XX, em um castelo francês, transformado num luxuoso hotel, que, naquele momento, além de receber hóspedes como o narrador (o próprio Kundera) e sua mulher, sedia um congresso de entomologia que nos levará aos outros personagens: um intelectual, um político, um cientista tcheco, uma jornalista, um cameraman, uma recepcionista, entre outros. A segunda se passa no século XVIII, no mesmo castelo francês, quando este era a moradia de Madame de T. e de seu marido. E, trata-se, na verdade, de uma paráfrase do conto de Vivant Denon (1747-1825), Point de lendemain, que conta com apenas mais dois outros personagens: o marquês, amante de Madame de T., e o falso amante desta.
A maestria técnica de Milan Kundera nessa novela filosófica, escrita à moda de Voltaire e de outros iluministas, se revela tanto no conteúdo quanto na forma.
Em termos conteudísticos, afora o enredo das duas tramas em si, chamam a atenção as digressões que pontuam a novela, desde o primeiro capítulo, quando o narrador-personagem, acompanhado por Vera, sua mulher, está dirigindo em uma estrada que os levará ao castelo. Percebendo, atrás deles, um motorista que acelera e parece irritado por não conseguir ultrapassá-los, Vera inicia um diálogo com o marido sobre o comportamento deste tipo de motorista. Esta é a deixa de que o narrador precisa para iniciar as divagações filosóficas sobre lentidão e velocidade que desenvolverá, no decorrer do livro, a fim de compreender como a noção de tempo se transformou na sociedade pós-moderna em que vivemos. Confira:
“A velocidade é a forma de êxtase que a revolução técnica deu de presente ao homem. (…) Curiosa aliança: a fria impessoalidade da técnica e as chamas do êxtase.” (p. 8)
“Há um vínculo secreto entre a lentidão e a memória, entre a velocidade e o esquecimento. (…) o grau de lentidão é diretamente proporcional à intensidade da memória; o grau de velocidade é diretamente proporcional à intensidade do esquecimento.” (p. 30-1)
“(…) nossa época se entrega ao demônio da velocidade e é por essa razão que se esquece tão facilmente de si mesma. Ou prefiro inverter essa afirmação e dizer: nossa época está obcecada pelo desejo do esquecimento e é para saciar esse desejo que se entrega ao demônio da velocidade (…)” (p. 91-2)
Esse narrador intruso vai permear as cenas – cômicas, estapafúrdias, eróticas – de sua novela com reflexões sobre a qualidade das relações humanas estabelecidas pelo ritmo que nos impõe a sociedade midiática em que vivemos. Ora se vale do pensamento de Epicuro para pensar o hedonismo ou do de Sade para tratar de limites, ora se vale de seus personagens para expor a mídia contemporânea como um não-espaço para velhos e como um espaço para crianças e “dançarinos”, os exibicionistas da vida pública. Para fazer essa nova abordagem da sociedade do espetáculo, delineada por Guy Debord, em 1967, Kundera traz o conto de Vivant Denon, a fim de comparar o público do século XVIII – restrito e visível – com o público do século XX – irrestrito e invisível –, bem como para caracterizar o espetáculo exibido a este público: no século XVIII, um espetáculo formal e vagaroso; no século XX, um espetáculo “espontâneo” e fugaz.
Em termos formais, as duas tramas envolvem o leitor no paralelismo estabelecido entre os amores, paradoxalmente satisfeitos e frustrados, dos personagens dos séculos XX e XVIII. O leitor arguto também se deleita com o cumprimento da regra das três unidades aristotélicas: ação, tempo e espaço. Ambas as histórias se passam num único espaço – no castelo francês; no decorrer de um só tempo – um dia apenas; em torno de uma única ação – no século XX, Vincent conhece, ama e perde Julie; e, no século XVIII, Madame de T. seduz, ama e rompe com seu falso amante. Kundera também lança mão de três outros artifícios formais que encantam o leitor: a representação da mescla entre realidade e ficção; a circularidade narrativa; e a interpenetração das tramas. A mescla entre ‘real’ e ficcional se dá no capítulo em que Vera, acorda sobressaltada com o som da Nona Sinfonia de Beethoven que Kundera (narrador, personagem e autor) havia, apenas, imaginado como trilha sonora para uma cena da novela A lentidão. A circularidade ocorre, visto que a história de Kundera e de Denon se iniciam e se findam no mesmo momento narrativo: a chegada e a partida dos amantes do castelo. A interpenetração das tramas se dá no final das narrativas, quando, por um breve momento, Vincent e o falso amante se encontram e, num arremedo de diálogo, falham nos seus desejos de narrar suas experiências amorosas daquela noite – intensas, mas frustradas.
Mesmo em francês, o tcheco Milan Kundera ainda reflete sobre as decepções das relações humanas; das decepções dos seres humanos entre si e das decepções dos seres humanos com seu tempo.
Débora P. Finamore é colaboradora e membro do conselho editorial de PortVitoria.
Nota. A presente resenha publicada originalmente no Caderno de ideias, blog do Instituto Cultural Freud (https://icfcaderno.wordpress.com/category/suplementoliterario/).