A voz do povo é a voz de Deus?
Joaquina Pires-O’Brien
Oriunda do latim ‘vox populi, vox dei’, a expressão ‘a voz do povo é a voz de Deus’ já era conhecida entre os antigos Gregos e Romanos, sendo citada por Tito Lívio (59 BCE – 17 AD) em sua obra Ab Urb Condita Libri (Livros Desde a Fundação da Cidade de Roma), famosa narrativa nacionalista da história de Roma.
Outro registro antigo da expressão ‘vox populi, vox dei’ aparece numa carta do abade, estudioso e educador inglês Alcuíno de York (730s ou 740s – 804), seguidor do venerável Bede (c. 673-735), endereçada a Carlos Magno, de quem era conselheiro. Nela Alcuíno sugere a Carlos Magno não dar ouvidos aos que afirmam vox populi, vox dei, já que a voz da turba era mais parecida com a voz da loucura do que com a sabedoria divina.
Nicolau Machiavelli (1469-1527), um burocrata e diplomata a serviço da corte de Florença, explorou melhor do que nenhum outro a ideia contida na expressão ‘a voz do povo é a voz de Deus’, em seu livro O Príncipe, publicado postumamente em 1532, contendo conselhos sobre como ganhar e preservar o poder. Nele Machivelli sublinha a importância da relação entre opinião pública e poder, e de manter a aparência de virtuosidade perante o público ignorante. Um dos conselhos de Machiavelli aos que desejam segurar o poder é dar poder ao povo, cuja voz seria mais constante e mais sábia do que a voz dos príncipes.
No seu livro O contrato social (1762), Rousseau, o influenciador da Revolução Francesa, proclamou o direito do povo de se rebelar contra a tirania do monarca atendendo à voz da natureza dentro de cada um de nós. Ao procurar analisar o ‘desejo geral’ a fim de verificar se o mesmo era capaz de direcionar o Estado a buscar o ‘bem comum’, o objeto pelo qual o mesmo foi instituído, Rousseau optou pelo mesmo, apesar de ter reconhecido que o povo podia ser enganado a decidir erradamente contra o bem comum. Para Rousseau tudo o que é decidido pelo desejo comum está correto por tender às vantagens do povo, uma visão bem dentro daquilo que o filósofo inglês Bertrand Russell descreveu como sendo a filosofia política das ditaduras pseudo democráticas.
A Idade Moderna que Rousseau ajudou a deslanchar marcou o começo da era ideológica caracterizada pela massificação das ideias e da indústria de formação de opinião. A história dos séculos dezenove e vinte mostra dezenas de genocídios cometidos com o pleno conhecimento e participação da população. A voz do povo é a voz da turba desvairada e sedenta de sangue. As massas são seduzidas e manipuladas pelo jogo do ‘nós contra eles’, que nada se assemelha à justiça absoluta ou qualquer tipo de justiça que transcende a justiça humana implícita na metáfora do Deus.
A visão de maior profundidade sobre a expressão ‘a voz do povo é a voz de Deus’ é a de Stephen Pinker, psicólogo cognitivo e professor da universidade de Harvard. Ele costuma afirmar que a violência é muito mais do que uma moléstia social e que não dá para ser compreendida pelos ditados populares dos pára-lamas de caminhões. Compreender a violência requer pesquisas científicas sobre todos os contextos conhecidos em que a violência é fermentada tais como o etnocentrismo, o senso de justiça e a honra. Segundo ele, o denominador comum de todo comportamento de violência são as táticas de desumanização feitas para rebaixar o indivíduo de ‘pessoa’ para ‘não-pessoa’. A desumanização torna fácil a tortura e o homicídio, fazendo com que os mesmos se equivalham a jogar uma lagosta viva dentro de um caldeirão de água fervente.
Na sociedade pós-industrial diminuiu o fenômeno da turba enfurecida e aumentou o número de buscadores de poder e peritos em manipular não só o desejo profundo de justiça natural mas também as utopias ao mesmo ligado. Conforme mostrou Pinker, desde a concepção das idéias acerca do Jardim do Éden e do mundo celeste, a história universal já registrou um número incontável de utopias. No mundo de hoje, as utopias prevalentes são o socialismo Marxista e o ambientalismo. Os ‘zelotes’ atuais são mestres no uso de utopias para coagir segmentos do público a atacar indivíduos e organizações fazendo uso de bullying, vitimização, difamação e boicotes.
Na moderna democracia a voz do povo é traduzida pela eleição, na qual ganha poder quem tem o apoio da maioria. O processo da eleição não é infalível, mas mesmo assim serve para legitimar a resolução tomada. A fim de impedir que as democracias modernas se tornem ditaduras da maioria, foram desenvolvidos uma série de mecanismos controladores, como o caráter individual e secreto do voto.
Reconhecer que o comportamento de turba e outros tipos de violência fazem parte da nossa natureza não significa que a sociedade deva aceitá-los. A mesma seleção natural que moldou na nossa mente a capacidade de responder inconscientemente a situações também moldou a capacidade de controlar nosso instinto de agressão sempre que o mesmo vem à tona como uma reação de reflexo instantâneo. Exemplos disso são os casos quando temos pensamentos homicidas, mas não agimos sobre os mesmos. No calor do momento um marido pode desejar que a sua sogra morra sem ter nenhuma concreta intenção de matá-la. O desenvolvimento da capacidade de controlar o instinto inconsciente é a base de um dos princípios mais importantes da civilização Ocidental: a crença de que a razão pode e irá exercer uma pressão seletiva na direção certa.
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Citação
Pires-O’Brien, J. A voz do povo é a voz de Deus? PortVitoria, UK, v. 2, Jan-Jun, 2011. ISSN 2044-8236, https://portvitoria.com