As conexões iranianas da Europa
Joaquina Pires-O’Brien
Resenha do livro Towards one world. Ancient Pérsia and the West. (Em direção a um só mundo. A Pérsia antiga e o Oeste), de Warwick Ball. London, East & West Publishing, 2010).
Para Warwick Ball (WB), um arqueólogo australiano especializado em culturas antigas, a contribuição da Pérsia à Europa foi negligenciada, e o seu livro Towards one world objetiva corrigir isso. Para WB, ao singularizar a civilização grega para ser as suas raízes, a Europa gerou a falácia ‘Grego, portanto europeu’, que, por sua vez, originou duas ideias erradas: a máxima de que a cultura do Oeste é inteiramente ocidental e o estereótipo do ‘Oeste versus Leste’.
Um esclarecimento que WB fornece logo no início deste livro é sobre os nomes Pérsia e Irã. Ao contrário do que muita gente pensa, ‘Irã’ não é o nome moderno da ‘Pérsia’ e, sim, o nome mais correto desse país. A explicação é simples. O nome ‘Pérsia’ é uma forma helenizada de Farsi ou Parsi, uma província ao sul do Irã que faz limite com o Golfo Persa, enquanto que o nome ‘Irã’ deriva de ‘Eranshabar’, que significa ‘país do Irã’. O nome ‘Pérsia’ é o empregado neste livro, pois é assim que o Irã era conhecido na Antiguidade.
WB descreve a Pérsia antiga como uma civilização que era não apenas poderosa, como também sábia. A sabedoria da Pérsia antiga está implícita no próprio título desse livro, uma referência à antiga ideia iraniana de um único mundo universal que transcende fronteiras étnicas e políticas. O Oeste apenas desenvolveu uma ideia similar – o ‘universalismo’ –, durante o Iluminismo do século XVIII. Outro ponto que WB sublinha é que, embora a presença persa na Europa tivesse ocorrido nas suas margens e durado apenas 60 anos, o legado da Pérsia à Europa é comparável aos dos fenícios, árabes e turcos, que permaneceram no continente europeu por séculos.
Onde exatamente a Pérsia penetrou na Europa? Qual foi, exatamente, o legado persa à Europa? A presença da Pérsia na Europa foi deveras pequena e breve. Ocorreu quando a colônia grega Jônia e as terras gregas adjacentes à costa oeste da Anatólia (na atual Turquia) se tornaram parte do Império Aquemênida. Este último foi o império criado em torno de 550 AEC por Ciro, o Grande, a partir de uma coalizão de tribos persas sob a casa de Aquemênida, sendo o maior império da Antiguidade Clássica. Durou até 331 AEC quando foi conquistado por Alexandre, o Magno.
A fim de entender onde, na cultura Oeste, as ideias persas podem ser encontradas, é necessário, primeiramente, entender os três principais descritores do Oeste: a tradição religiosa judaico-cristã, a clássica filosofia grega e o conjunto de valores formados em torno da democracia liberal, tais como o conceito de ‘sociedade aberta’. Começando por esse último descritor, se considerarmos que uma sociedade aberta é uma sociedade aberta à influência externa, então a cultura persa antiga era uma. ‘O Império Persa criou um mundo internacional o qual permitia que as pessoas, mercadorias, ideias e a criatividade artística se movessem numa escala muito maior do que a da Rota da Seda’, afirma WB. Durante a sua presença na península da Anatólia, os persas impuseram uma unidade que não só sobreviveu o seu próprio império, mas também preservou a ideia de uma civilização capaz de dar e receber.
No tocante à tradição religiosa judaico-cristã do Oeste, esta absorveu muitos conceitos do zoroastrismo, uma religião persa, que já incluía as ideias de um único criador universal, do juízo final e do paraíso. E, quanto à filosofia clássica grega, o último descritor da cultura Ocidental, esta foi valorizada pelos persas muito antes de o Oeste decidir resgatá-la da lata de lixo da sua própria história. Embora seja comumente sabido que a Europa recuperou a filosofia clássica grega dos árabes muçulmanos durante a Renascença, foi dos persas que estes a adquiriram. Uma narrativa de como isso aconteceu é fornecida nesse livro. Tudo começou em 260 EC, quando o rei Shāpūr I, da dinastia sassânida persa, depois de ter vencido a batalha de Edessa (na atual Urfa, na Turquia), levou muitos prisioneiros romanos, incluindo o Imperador Valeriano, e enviou-os para diversas cidades recém-fundadas da Pérsia, especialmente Gundishapur (ou Jundaisabur), em Susiana. Gundishapur foi, não apenas, o centro de aprendizagem grega que recebeu os professores da Academia de Platão em Atenas, depois que esta fora fechada a mando do papa, como também foi um centro de traduções do grego para o siríaco – uma variação do aramaico e a língua oficial do Império Persa. Por acaso, o siríaco figura entre as primeiras línguas que adotaram o sistema de alfabeto que os fenícios inventaram no fim do segundo milênio AEC Depois que a Pérsia foi islamizada, os muçulmanos falantes de árabe acessaram, dos persas, os textos gregos clássicos que eles haviam preservado.
Outra coisa que percebemos nesse livro é que a arqueologia fez enormes avanços, desde que emergiu da atividade conhecida como ‘antiquariato’. Se, no início, a arqueologia corria atrás da história, hoje, é a história que corre atrás da arqueologia, graças às suas novas técnicas e aos seus novos métodos de estudar as relíquias do passado. No passado, os fortes elementos da arquitetura grega clássica impediram os estudiosos de se dar conta dos outros elementos culturais empregados conjuntamente, diz WB. Embora os persas antigos tenham tomado emprestado a arquitetura grega, eles, frequentemente, juntavam à mesma elementos de outras culturas. Um exemplo citado é o do túmulo de Mausolo (Maussollus) – um sátrapa, ou prefeito, da Anatólia, província do Império Persa, em Halicarnasso (na atual Bodrum, Turquia) –, considerado uma das sete maravilhas do mundo antigo. Durante muitos anos, o seu estilo foi considerado puramente grego; hoje em dia, é reconhecido que também há traços da tradição funerária da Anatólia.
A Pérsia antiga deixou uma influência duradoura não só na Europa, bem como na Ásia. A maior influência da Pérsia em todo o mundo está ligada à sua decisão prática de adotar, em vez da língua persa, o sírio-aramaico – então uma língua global –, como língua oficial do império. Devido a essa decisão, as línguas afins da Ásia Central, tais como o báctrio, o karostianida e o sogdiano, sobreviveram bem até o primeiro milênio da EC. Além disso, no século IX, os uigures adotaram a escrita aramaica-sogdiana para criar a escrita turca. Por último, mas não finalmente, temos o mongol que Gêngis Khan comissionou aos estudiosos uigures e que sobrevive até hoje, embora, durante a década de 1920, o seu alfabeto tenha sido trocado para o cirílico.
Conforme já mencionado, WB é um crítico ferrenho do conceito ‘Oeste versus Leste’ o qual, para ele, é um estereótipo que apenas atrapalha as relações entre os países. Um exemplo disso é o uso da frase ‘Oeste versus Leste’ para explicar o terrorismo praticado sob o manto do jihad islâmico. WB mostra que o Oeste tem uma parte da responsabilidade sobre isso, pois o jihad islâmico foi criado como uma contraofensiva à guerra santa das Cruzadas, uma ideia concebida em 622 por Heráclio, o imperador do Império Romano do Oriente, ou Império Bizantino, (610-641), quando ele introduziu a ideia de que matar era uma ato de piedade sagrada, aprovada pela própria providência divina.
Desde a insurgência do Estado Islâmico (EI ou ISIS) até o programa nuclear do Irã e a enorme onda de refugiados sírios que chega à Europa, muitos dos problemas do século XXI estão ligados ao estereótipo do ‘Oeste versus Leste’. Para WB, pôr de lado tal estereótipo significa dar um passo à frente, a fim de encontrar o melhor curso de ação para lidar com tais problemas, pois isso facilitaria que as partes envolvidas dialogassem entre si.
O livro Towards one world transmite a mensagem de que a cultura persa não só permeou as sociedades helênicas e romanas, como também deixou marcas na sua religião e no seu modelo e organização política. Este livro endireita uma gama de vieses e enganos históricos sobre o relacionamento entre a Pérsia e a Europa.
Embora o primeiro alvo desse livro sejam os europeus, há nele uma delicada sugestão de que também serviria aos iranianos anglófilos, contida nas seguintes afirmações: (i) A Pérsia antiga já foi uma sociedade altamente tolerante e pluralista; (ii) a civilização persa sobreviveu à investidura do Islã; e (iii) a nova Pérsia que emergiu era diferente da antiga.
Uma pergunta que WB deixa subentendida é: quanto dos valores da antiga Pérsia ainda estão latentes nas mentes das pessoas da República Islâmica do Irã que existe desde 1979?
O livro de WB é de nível acadêmico, mas é também acessível ao leitor leigo, o que se deve à clareza das ideias do autor e às belas e didáticas ilustrações oferecidas. As visões de WB são equilibradas e podem ser tomadas como uma contribuição ao processo de encontrar uma solução pacífica para os problemas que afetam tanto o Oeste quanto o Irã. Embora não haja uma resposta simples, esse livro pelo menos aponta a direção certa. Ele termina com um poema escrito no século XIII pelo poeta persa Sadi, gravado no hall de entrada do prédio das Nações Unidas em Nova Iorque:
The sons of Adam are limbs of each other,
Having been created of one essence.
When the calamity of time affects the limb
The other limb cannot remain at rest.
If though hast no sympathy for the troubles of others
Though art unworthy to be called by the name of a human.
Sadi, Gulistan ou ‘O Jardim das Rosas’, Livro I x (ca. 1259)
Versão em português (Wikipedia):
Os seres humanos são parte de um todo,
Na criação de uma essência e alma.
Se um membro sofre dor,
Outros membros permanecerão inquietos.
Se você não tiver simpatia pela dor humana,
Você não pode reter o nome de humano.
Jo Pires-O’Brien é uma brasileira que reside na Inglaterra de onde ela edita a revista eletrônica PortVitoria, sobre a cultura ibérica no mundo.
Abreviaturas
AEC: Antes da Era comum.
EC: Era Comum
Key words: persa, Pérsia, Irã, Anatólia, Império Aquemênida, gregos, Grécia, Ciro, Alexandre, Aristóteles, Sadi, Gulistão, sogdiano, siríaco, aramaico, Mausolo, Halicarnasso, Bódrum, Gundishapur, jihad, Guerra Santa, história, arqueologia
Reconhecimentos
Revisão: Débora Finamore
Citation:
WARWICK BALL. Towards one world. Ancient Pérsia and the West. London, East & West Publishing, 2010. Resenha de: PIRES-O’BRIEN, J. As conexões iranianas da Europa. PortVitoria, UK, v.12, Jan-Jun, 2016. ISSN 2044-8236, https://portvitoria.com