As mãos que balançam o berço

Joaquina Pires-O’Brien

Resenha do Livro Tábula rasa: a negação contemporânea da natureza humana de Steven Pinker. Tradução de Laura Teixeira Motta. Companhia das Letras. 2004. ISBN 85-359-049-8

Título Original: The Blank Slate: The Modern Denial of Human Nature. Copyright © Steven Pinker, 2002. ISBN 13:978-0-140-27605-3. ISBN 10: 0-140-277605-X

A maioria das pessoas certamente já ouviu a frase retirada de uma poesia de William Ross Wallace (1819-1881) convertida em ditado popular: ‘as mãos que balançam o berço dirigem o mundo’. Tal frase reflete a crença de que o adulto é mais um produto da criação do que da natureza. Em outras palavras, são os pais e/ou educadores – os que balançam o berço – quem fazem o adulto. Essa crença, por sua vez, baseia-se na doutrina da tábula rasa, segundo a qual a mente humana no nascimento é completamente destituída de predisposições, daí a responsabilidade dos educadores. A doutrina da tábula rasa (ou da lousa limpa) permaneceu na teoria das ciências sociais associada à ‘condição humana’ defendida por essas últimas, e acabou por gerar a polêmica da natureza versus criação, quando as ciências sociais continuaram a negar a importância da biologia na formação da condição humana, mesmo depois da teoria evolutiva ter sido confirmada pela genética.

A questão da natureza versus criação é o tópico principal do livro de Steven Pinker Tábula rasa: a negação contemporânea da natureza humana, originalmente publicado em 2002. Nesse livro Pinker demole não apenas o mito da tábula rasa, mas também dois outros mitos associados ao mesmo: o do ‘nobre selvagem’ e o do ‘fantasma na máquina’. A ideia da tábula rasa foi acolhida por diversos pensadores do período Romântico incluindo o filósofo francês, nascido na Suíça, Jean Jacques Rousseau (1712-78). Rousseau levou a ideia adiante, ao introduzir o conceito do ‘nobre selvagem’, onde ele contrastou a fidalguia e nobreza do ‘homem no estado da natureza’ com a maldade do ‘homem no estado social’. Como mostra Pinker, o início do desmoronamento das teorias da tábula rasa e do selvagem nobre foi o descobrimento de furos nas pesquisas da antropóloga cultural Margareth Mead (1901-78). Mead havia ficado famosa em todo o mundo na década de trinta, com os seus livros descrevendo os nativos da Nova Guiné como pacíficos, igualitários e materialmente satisfeitos; e os da Samoa Oeste como sendo livres de conflitos sexuais. Entretanto, a sugestão de Mead de que as pessoas deveriam aprender com os nativos da Nova Guiné e da Samoa Oeste não passou de um anseio influenciado pelo seu determinismo cultural.

Quando o antropólogo Derek Freeman revisitou algumas comunidades da Samoa Oeste alguns anos mais tarde, ele ficou sabendo que duas das informantes usadas por Mead haviam pregado uma peça nela, com relação à informação de que tinham uma vida sexual sem problemas. Aquelas confessaram que, na realidade, a verdade era o oposto. Os Samoanos costumavam bater e até matar as filhas se elas não fossem virgens na sua noite de núpcias; e a família de uma adúltera podia agredi-la e até matá-la. Apesar de ter um grande respeito por Mead e de reconhecer a profundidade de suas visões, Freeman decidiu corrigir os erros das suas observações de campo. Outros estudos antropológicos posteriores também mostraram que a violência não era exclusiva das sociedades avançadas e que era corriqueira entre as pré-sociedades indígenas.

O mito da tábula rasa fez com que as pessoas interpretassem as conexões observadas entre o comportamento dos pais e de seus filhos como uma prova do mesmo. Entretanto, uma boa parte das semelhanças entre pais e filhos deve-se aos genes que os mesmos compartilham. Filhos de bons pais às vezes tornam-se maus; e filhos de maus pais, ou crianças que cresceram em famílias que fogem das normas aceitáveis, muitas vezes tornam-se bons adultos.

Se a impressão cultural pressupõe uma tábula rasa a ser impressa pela educação, os conceitos da tábula rasa e do selvagem nobre apontam um terceiro conceito ainda mais poderoso que os dois primeiros: a ideia da existência de um componente imaterial dentro do corpo, descrito como alma, mente ou espírito. Tal componente imaterial encontra-se presente na mitologia de todas as civilizações e foi amplamente discutido pelos filósofos seguidores de Pitágoras e mais tarde por Platão. Durante a fase inicial do Cristianismo, o escolástico católico São Tomás de Aquino tomou emprestado algumas ideias filosóficas de Pitágoras e de Platão, incluindo o dualismo da mente e matéria, traduzido ainda como alma e corpo. A doutrina do dualismo foi elaborada pelo filósofo cristão René Descartes (1596-1650), o qual afirmou que, sem a mente, o corpo não passa de uma máquina. Quando o filósofo inglês Gilbert Ryle (1900-76) revisou o dualismo cartesiano no seu livro The concept of mind (O conceito da mente), publicado em 1949, ele referiu-se ao mesmo com o ‘fantasma na máquina’, uma sátira que desde então vem sendo amplamente citada.

Quando Pinker ainda era um estudante de graduação em Montreal, ele acompanhou a celeuma em torno do livro Sociobiology (Sociobiologia), de Edward Wilson, uma síntese da vasta literatura sobre o comportamento dos animais sociais e cujo derradeiro capítulo é dedicado à espécie humana. Desde então, Pinker passou a acompanhar de perto a pesquisa existente sobre biologia evolutiva, da qual ele extraiu muitas das ideias que ele depois desenvolveu. Mais tarde, quando ele foi para Harvard para fazer o seu PhD, ele conheceu Wilson, então professor daquela universidade. Outro biólogo cujas ideias o impressionaram foi Richard Dawkins, cujo livro The selfish gene (O gene egoísta), publicado em 1976, e tratando da base genética do altruísmo humano, também tinha atraído tanta polêmica quanto o livro de Wilson já mencionado. De alguma forma, Pinker conseguiu expor ideias similares às de Wilson e Dawkins, porém, sem atrair a mesma ira que os outros dois atraíram. Dando mostra de seu grande cavalheirismo, Pinker reconheceu a sua grande sorte pelo fato de não ter sofrido o mesmo tipo de agressão que sofreram os seus predecessores.

Dos três mitos que Pinker erradicou da teoria das ciências sociais, o do ‘fantasma na máquina’ é o que causou a maior polêmica, devido às implicações do mesmo com a fé e a religião. Se a mente e o corpo são a mesma coisa, então não existe a alma independente do corpo, nem a vida depois da morte e tampouco a divindade sobrenatural. Para Pinker, a única fissura dualista que existe é aquela entre objetos físicos, e respectivos conceitos.

Nesse livro Pinker enfrenta cada um dos grandes medos relativos à explicação biológica da condição humana, apontando as falácias que se escondem por detrás dos mesmos. O primeiro grande medo, a imperfectibilidade, tem duas causas: a crença de que a condição humana é inalterável, e a crença que tudo o que é natural é bom. Tal medo tem a ver com a preocupação de que, se a violência, o adultério e o etnocentrismo forem comprovadamente naturais no homem, eles seriam inevitáveis. Entretanto, conforme frisou Pinker, o homem já nasce com um senso de moralidade, o qual inclui a distinção entre o certo e o errado. O segundo grande medo é o determinismo, a noção de que, no fundo, as nossas escolhas são dirigidas pelo destino. Tal medo reside nisso poder significar o fim da responsabilidade pessoal e tornar inútil a busca da melhoria da sociedade. Pinker contra-argumenta que a existência de uma explicação biológica para uma má ação em particular, não significa que tal ação seja desculpável. O terceiro grande medo é o niilismo, a ideia de que, sem um grande propósito de vida eterna, tudo o que nos resta são as tentativas dos nossos genes de se replicarem. Tal medo tem a ver com a percepção comum de que a falta da divindade eterna traria apenas o vazio e a ausência de moral, solidariedade e empatia. Nesse ponto, Pinker faz uso da proposição de Richard Dawkins, segundo a qual, dentro do egoísmo da replicação dos nossos genes existem comportamentos altruísticos genuínos, tais como o amor pelos filhos e a fidelidade nos relacionamentos com nossos cônjuges e amigos. O conhecimento de que a alma não é eterna e que o inferno não existe, não justifica que o homem seja mal e egoísta. Pelo contrário, quando a vida no além for retirada do quadro, as pessoas terão mais tempo para usufruir com os filhos e amigos, enquanto que mais recursos poderão ser disponibilizados para fazerem o bem aqui mesmo na terra.

Embora Pinker se descreva como um psicólogo cognitivo, o peso de sua bagagem coloca-o entre as super-estrelas da ciência contemporânea. Nascido em 1954 numa comunidade de judeus anglófonos de Montreal, no Canadá, ele graduou-se com honras em psicologia na McGill University em 1976, seguido-se um doutorado na Harvard, em 1979, e um pós-doutorado no MIT. Antes de sua nomeação definitiva para lecionar em Harvard em 2003, ele passou vinte anos no MIT, cuja cultura de interdisciplinaridade permitiu que ele interagisse profissionalmente com filósofos, neurobiologistas e linguistas, bem como com pesquisadores interdisciplinares

Tomei conhecimento de Pinker em 1999, quando li o seu livro How the mind works (Como a mente funciona), publicado em 1997, tendo ficado impressionada com a capacidade do mesmo de explicar os mais complexos temas através de trivialidades. Durante uma viagem ao Brasil em 2004, eu encontrei numa livraria a edição em português do livro The blank slate, lançada em 2004 pela Companhia das Letras, e traduzido por Laura Teixeira Motta. Comprei o livro com vista a estudar a tradução, já que nessa altura eu nutria o desejo de traduzir livros de não-ficção. A tradução de Motta é de excelente qualidade, mostrando competência em todos os aspectos necessários, como precisão da terminologia científica, a fluidez do texto e a preservação do estilo original do autor.

Com Tábula rasa, Pinker mais uma vez conseguiu demonstrar não apenas o seu conhecimento do assunto, mas também a facilidade com que ele consegue transitar de uma disciplina científica para outra. Cada grande tema e seus subtemas são abordados com um elevado grau de seriedade e humor. O resultado maior foi extirpar e reduzir à categoria de mitos, três grandes disparates das ciências sociais: a tábula rasa, o nobre selvagem e o dualismo. O único desapontamento que o leitor poderá ter será descobrir que, se a mente ao nascimento não é uma tábula rasa, então as mãos que balançam o berço não são necessariamente as mãos que governarão o mundo futuro. Tirar toda essa pressão dos pais e educadores não é tão ruim como parece. Se nascer numa boa família, receber uma boa educação parental e frequentar boas escolas fossem condições absolutamente necessárias para o sucesso na idade adulta, que esperança haveria para milhões e milhões de jovens de todo o mundo que foram privados de tais condições?
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Citação:

PINKER, S. Tábula rasa: a negação contemporânea da natureza humana. São Paulo, Companhia das Letras, 2004. ISBN 85-359-049-8. Resenha de: PIRES-O’BRIEN, J. (2011). As mãos que balançam o berço. PortVitoria, UK, v. 2, Jan-Jun, 2011. ISSN 2044-8236, https://portvitoria.com