As visões díspares do século XVI da China e Europa

Juan José Morales

15sergegruzinskiResenha do livro The eagle and the dragon: Globalization and European dreams of conquest in China and America in the sixteenth century (A águia e o dragão: a globalização e os sonhos de conquista na China e na América no século XVI), de Serge Gruzinski. Polity Press, Dezembro 2014.

A primeira embaixada portuguesa à China, encabeçada por Tomé Pires, saiu de Cantão em 1517, chegando à capital Pequim em dezembro de 1520. Embora eles tivessem levado presentes e cartas do rei Dom Manuel, os portugueses não viram o imperador e foram tratados como espiões e presos, e alguns foram executados.

Enquanto isso, em novembro de 1519, uma expedição espanhola liderada por Hernán Cortés entrou em Tenochtitlán, no México, onde foram recebidos com uma pompa espectacular pelo imperador Moctezuma1. Meses depois, em agosto de 1521, a capital asteca seria tomada pelos espanhóis, abrindo, assim, a porta para a conquista de boa parte do continente americano.

Portanto, esses primeiros encontros entre os iberos e as duas civilizações mundiais do México e da China ocorreram em torno da mesma época embora com resultados completamente diferentes. O livro de Serge Gruzinski The eagle and the dragon (A águia e o dragão), cujo título se refere aos icônicos símbolos do México e da China, é um estudo inovador voltado a explicar a cronometragem desses eventos e suas implicações.

Gruzinski é um dos mais destacados historiadores das culturas hispano-americanas. É professor visitante em Princeton, bem como diretor do CNRS (Centre national de la recherche scientifique) e da EHESS (École des hautes études en sciences sociales), dois prestigiados institutos de pesquisa da França. A maior parte dos seus trabalhos é traduzida rapidamente do francês para o espanhol e o português, e muitos foram também traduzidos para o inglês, incluindo esse volume.

Conforme o historiador Peter Burke afirma no prefácio, The eagle and the dragon é um bom exemplo de como aquilo que os franceses chamam de ‘histoire croisée’, literalmente, ‘história entrançada’, a qual visa explicar o passado através do exame de múltiplos caminhos e das conexões entre os mesmos. Na verdade, Gruzinski enfoca não tanto fornecer um novo detalhe histórico, mas elucidar os caminhos paralelos e entrecruzados desses dois eventos, combinados aos seus antecedentes, e, as suas consequências. O resultado é uma façanha da erudição com marcantes interpretações de longo alcance.

A história mundial, Gruzinski argumenta, não deriva da expansão europeia – como sugerido por algumas narrativas – mas de uma globalização de intercâmbios. Nessa luz, ele explora as respostas da China e da América hispânica. A China foi deixada bem sossegada e com uma capacidade de controlar o fluxo dos intercâmbios – o que persiste até hoje – enquanto que a América hispânica emergiu como um novo mundo de ‘métissages’ (miscigenações) – ao mesmo tempo ocidental, indígena americana e mistura global.

A importante mensagem para hoje é que foi com a globalização do século XVI, direcionada pela Ibéria, que a Europa, o Novo Mundo e a China tornaram-se parceiros mundiais. Essa globalização foi mais universal ou multilateral do que aquela que a seguiu, possivelmente mais afinada com os desenvolvimentos atuais, e também menos eurocêntrica. A China e as Américas são hoje os grandes jogadores da globalização graças àquele encontro inicial; os seus destinos tornaram-se inseparáveis.

A missão portuguesa na China e a conquista espanhola do México foram precedidas por eventos simultâneos similares, pois, em 1511, os portugueses conquistaram Málaca e a Cuba espanhola, que serviram como um caminho das pedras para objetivos maiores. Esses e outros acontecimentos derivaram de uma dinâmica comum: não menos importante foi a mordaz competição entre Portugal e Espanha pelas especiarias e riquezas da Ásia e China; a descoberta da América foi um acidente.

The eagle and the dragon revisita o sempre fascinante fermento intelectual do final do século XV e início do século XVI e a rede de informações estabelecida entre Lisboa, Sevilha e Roma, e, portanto, com o resto da Europa. Um exemplo é a famosa carta do astrônomo florentino Toscanelli, homem acostumado a ter audiências particulares com o Papa e com embaixadores, explicando ao cônego de Lisboa, Fernão Martin,s que era possível chegar às Índias cruzando o Atlântico. Outro é a crescente circulação do livro de Marco Polo As viagens, os primeiros mapas que surgiram inspirados nesse livro, e suas novas traduções: para o português em 1502, e, mais importante ainda, a tradução para o espanhol em 1503 por Rodrigo de Santaella, um cônego de Sevilha. Santaella notavelmente rejeitou, no seu prólogo, a ideia de Colombo de que as Antilhas faziam parte da Ásia, e, foi o primeiro a reconhecer que aquelas ilhas Ocidentais ficavam ‘opostas à Índia’, no outro lado do mundo.

Santaella, que ‘tinha ciência dos transtornos causados pelas expedições ibéricas’, também adiantou um outro argumento de consequências mais profundas, o da ‘admirável diversidade da criação divina’, o qual abriu o caminho da cristianização.

Em terra, os portugueses na Ásia labutaram dentro do conhecimento centenário, empregando ‘rotas de comércio e redes de informações que existiam há séculos no Oriente’. Em 1512, antes ainda de os portugueses terem colocado os pé na China, os brocados e os livros chineses já tinham chegado a Lisboa. O rei Dom Manuel ofertou um desses livros ao Papa Leão X, o qual ganhou a admiração do grande humanista Paolo Giovio.

Enquanto esteve em Málaca e na Índia de 1512-1515, Tomé Pires, escreveu uma Suma oriental, o melhor compêndio de conhecimentos sobre a Ásia por mais de cem anos. As expedições espanholas na América, entretanto, eram um salto no vazio, para dentro do desconhecido. Mas, após o desapontamento nas Antilhas, a descoberta das civilizações urbanizadas da mesoamérica significou um passo decisivo na direção da primeira globalização de verdade.

Tanto os espanhóis quanto os portugueses estavam cheios de admiração pelo que haviam encontrado, pois, para eles, as cidades representavam centros de civilização. Fortalecidos pelo prestígio da palavra escrita, os livros chineses e os códices mexicanos eram considerados igualmente como marcas de sofisticação – embora os espanhóis tenham também se incomodado com os sacrifícios humanos no México. No final, os espanhóis conquistaram pela força e resolveram destruir as culturas mesoamericanas. Os portugueses não puderam alcançar o mesmo feito; os produtos culturais da China, por outro lado, tornaram-se uma fonte permanente de mercadorias de luxo para o mundo.

Gruzinski fornece valiosos discernimentos sobre as respectivas reações dos chineses e dos mesoamericanos. Os chineses demonstratam um total desinteresse pelos portugueses e pelo seu país de origem. Eles também mostraram uma remarcada amnésia sobre os seus primeiros encontros como os europeus na época medieval. Os portugueses são designados ‘Fo-lang-ki’, um nome de origem árabe e persa referente ao Ocidente, e apenas vagamente entendido como sendo oriundo de algum lugar na direção de Sumatra.

Essa ‘aversão a estrangeiros’ por parte dos chineses, a sua completa impermeabilidade e intratabilidade – o seu proverbial etnocentrismo – é algo complexo. Para o autor, pode ser atribuído aos conflitos de muitos séculos atrás com os povos da estepe, com quem os chineses se recusaram a comercializar desde o surgimento da dinastia Ming em meados do século XIV. Para os chineses, o estrangeiro era um bárbaro e um bárbaro era uma ameaça.

A natureza limitada da curiosidade oficial foi provavelmente uma consequência do modo como a corte chinesa lidava com estrangeiros e do status que atribuía aos mesmos. Os portugueses tinham vindo de um país desconhecido para os chineses e que não configurava da sua relação de estados tributários. As relações entre a China e o mundo externo eram estritamente codificadas. Mesmo a Suma oriental de Tomé Pires, escrita antes de ele ter posto os pés na China, havia ressaltado isso.

Assim, Gruzinski rejeita a expressão ‘choque de civilizações’ como sendo um constructo moderno. Simplesmente, havia uma incapacidade patente de se engajar em raciocínios novos por parte da administração chinesa e uma imagem idealizada das relações com o mundo externo. Certamente na época ainda não existiam as noções de igualdade e reciprocidade de hoje. ‘Ninguém queria ou cogitava se engajar na etnografia do outro, o que teria sido um total anacronismo.’

Contrariamente, Gruzinski afirma, as sociedades mesoamericanas tinham uma necessidade de entender o agressor…, e tinham um espaço para o outro. (Os indígenas americanos chamaram os iberos pelos seus nomes castelhanos, mas os iberos – contrariamente – chamavam todos os povos que encontravam de ‘índios’.) Essa abertura, dentre outras razões, seria a causa de sua ruína.

O México e a China entraram simultaneamente na consciência mundial, nos mapas e nas ilustrações; estardalhante para o México, não importuno para a China. Ambos entraram para o palco do mundo, criando um imaginário global – uma montagem cultural e filosófica completa.

O fracasso dos portugueses na China criou uma linha divisória entre a Ásia e a América. Num lado ficou o Novo Mundo que daria ao Ocidente a sua razão de ser, e cujas riqueza, população e espaços seriam implacavelmente explorados; no outro lado ficou a China Imperial, que absorveria uma boa parte da prata extraída das minas da América pelos índios derrotados e pelos escravos africanos. O destino desses dois litorais do Pacífico estava agora interligado, à medida que os iberos organizaram suas bases econômicas e políticas para a decantação maciça do precioso metal. A história da colonização do Novo Mundo teria sempre a China no seu fundo, e a América seria uma presença constante na China moderna.

O livro The eagle and the dragon demonstra a premissa de Gruzinski de que ‘a colonização da América e a história da Ásia estão interligadas’. Definitivamente, a China beneficiou-se do arranjo colonial americano: foi devido ao constante fluxo da prata americana e à introdução de novos produtos agrícolas (batata-doce, amendoim, milho), no final do século XVI, que a China experimentou uma prosperidade sem precedentes, condições traduzidas num surto demográfico e no enriquecimento da classe dos mercadores.

O ponto de vista de Gruzinski posiciona-se numa simples questão que merece uma consideração séria: foram os iberos que visitaram a América e a China, e nunca o contrário. Uma outra questão pode ser acrescentada: se esses eventos são de tal importância, se os seus efeitos na história mundial se estendem por diversos séculos a ponto de serem percebidos até hoje, porque é que são menosprezados?

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Juan José Morales escreve na revista espanhola Compromiso Empresarial. Ele já ocupou o cargo de Presidente da Câmara do Comércio da Espanha em Hong Kong, possui um mestrado em Relações Internacionais e Públicas pela Universidade de Hong Kong e também estudou relações internacionais na Universidade de Pequim (Beida).

 

Nota

  1. ‘Moctezuma’ é o termo atualmente empregado no lugar do antigo termo ‘Montezuma’, por ser considerado uma melhor aproximação da designação na língua náhuatl: Mothecuzoma ou algo parecido. O náhuatl é uma língua do México Central que pertence à família linguística asteca-taoana, grupo uto-asteca. Possui vários dialetos como o náhuatl-asteca (400 mil falantes), o guerrero (150 mil falantes), o chichiquila (7 mil falantes) e o pipil, que se fala em El Salvador.

 

Cortesia de:

© The Asian Review of Books. 26 Maio 2015 &

Juan José Morales. Fonte:

http://www.asianreviewofbooks.com/new/?ID=2271#!

Tradução: Joaquina Pires-O’Brien (UK)

Revisão: Débora Finamore (Brasil)

Citação:

GRUZINSKI, S. The eagle and the dragon: Globalization and European dreams of conquest in China and America in the sixteenth century. Polity Press, Dezembro 2014. Resenha de: MORALES, J. J. As visões díspares do século XVI da China e Europa. PortVitoria, UK, v.11, Jul-Dec, 2015. ISSN 2044-8236, https://portvitoria.com