Roger Scruton
As universidades existem para fornecer aos alunos o conhecimento, as habilidades e a cultura que os prepararão para a vida, enquanto aumentam o capital intelectual do qual todos nós dependemos. Evidentemente, os dois propósitos são distintos. Um diz respeito ao crescimento do indivíduo; o outro, à nossa necessidade compartilhada de conhecimento. Mas eles também estão entrelaçados, de modo que os danos a um objetivo também são danos ao outro. É isso o que estamos vendo agora, à medida que nossas universidades se voltam cada vez mais contra a cultura que as criou, retendo-a dos jovens.
Os anos passados na universidade pertencem aos ritos de iniciação estudados pelos antropólogos vitorianos, nos quais, os nascidos na tribo assumem o ônus de perpetuá-la. Se nós perdemos isso de vista, parece-me, então corremos o risco de desatrelar a universidade de seu objetivo social e moral, que é entregar um estoque de conhecimento junto com a cultura que dá sentido ao mesmo.
Esse objetivo tem sido central na tradição educacional que criou a civilização ocidental. A paideia[1] grega considerava o cultivo da cidadania como o núcleo do currículo. A prática religiosa e a educação moral continuaram sendo uma parte fundamental dos estudos universitários durante a Idade Média, e o ideal renascentista do indivíduo virtuoso foi a inspiração para o currículo emergente das studia[2] de humanidades. A universidade que emergiu do Iluminismo[3] não relaxou as rédeas morais, mas considerou a aprendizagem como um modo de vida disciplinado, cujas regras e procedimentos a diferenciam dos assuntos cotidianos. No entanto, forneceu aos assuntos cotidianos a perspectiva de longo prazo sem a qual nenhuma atividade humana faz sentido. Até a turbulenta vida estudantil das universidades alemãs durante o século XIX, quando o duelo se tornou parte da cultura universitária, estava contida em códigos formais e uniformes de comportamento, e, na rotina colegial. Além disso, era dedicada a um peculiar amálgama de disciplina moral, conhecimento factual e competência cultural, aquilo que os alemães conhecem como Bildung[4].
No decorrer do século XIX, entretanto, as universidades sofreram uma rápida mudança no seu acolhimento público. O declínio do modo de vida religioso, a ascensão de uma classe média ansiosa por status social e poder político, e as demandas pelo conhecimento e habilidades técnicas exigidas por uma economia industrial, pressionaram as universidades a mudar os seus currículos, o modo de recrutamento de alunos e professores, e, o seu relacionamento com a cultura circundante. Novas universidades foram fundadas na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos da América, como a University College London, datada de 1826, a qual foi dotada de um currículo explicitamente secular, projetado para produzir mentes científicas capazes de varrer as teias de aranha teológicas nas quais todas as disciplinas universitárias encontravam-se envolvidas.
No entanto, apesar dessas mudanças, que forçaram as instituições de ensino superior a uma nova consciência de missão, a universidade manteve o seu status de guardiã da alta cultura. Era um lugar onde o pensamento especulativo, a investigação crítica, e o estudo de livros e idiomas importantes eram mantidos numa atmosfera de isolamento refletivo. Quando o cardeal Newman[5] escreveu The Idea of a University (A ideia da universidade), em 1852, o seu motivo maior foi defender a antiga concepção da universidade, como um lugar à parte, um recinto quase monástico, oposto à mentalidade utilitária da nova sociedade industrial. Para Newman, a universidade existe para moldar o caráter daqueles que a frequentam. Imergir os alunos em um ambiente colegiado e imprimir neles um ideal da mente educada ajuda a transformar seres humanos brutos em gentlemen (cavalheiros)[6]. Essa, sugeriu Newman, é a verdadeira função social da universidade. Dentro do campus, o adolescente recebe uma visão dos fins da vida; e ele tira da universidade a única coisa que o mundo não fornece, que é uma concepção de valor intrínseco. E, é por isso, que a universidade é tão importante na era do comércio e da indústria, quando a tentação utilitarista nos assedia por todos os lados, e quando corremos o risco de tornar todos os propósitos, materiais. Em outras palavras, como Newman via, correndo o risco de permitir que os meios engulam os fins.
Muita coisa mudou desde a época de Newman. Sugerir que as universidades estão envolvidas na produção de ‘cavalheiros’ é mais do que levemente ridículo, em uma época em que a maioria dos estudantes é mulher. A universidade ideal de Newman foi modelada nas atuais universidades de Oxford, Cambridge e no Trinity College, de Dublin, as quais eram mantidas como instituições quase religiosas dentro da alçada da Igreja Anglicana. Na época de Newman, essas universidades admitiam apenas homens, não permitiam que seus acadêmicos residentes se casassem, uma boa parte dos os alunos de graduação eram recrutados nas escolas particulares, e, o seu currículo era solidamente baseado em latim, grego, teologia e matemática. A rotina dos alunos girava em torno dos colleges[7] ou faculdades, onde os dons[8] e os estudantes de graduação tinham seus alojamentos, e onde eles jantavam juntos todas as noites num salão, vestidos com suas becas.
Apenas uma pequena proporção dos que frequentavam as antigas universidades britânicas na época de Newman considerava o estudo como o real objetivo de se destacar na alma mater[9]. Alguns estavam lá para remar ou jogar rugby; alguns estavam em compasso de espera para o título que deveriam herdar; e alguns tumultuavam com os seus companheiros enquanto aguardavam comissões no exército. Quase todos eram membros de uma elite social que havia obtido essa maneira ímpar de se perpetuar, revestindo o seu poder com o verniz da alta cultura. E nesse belo e protegido ambiente, você também poderia levar a cultura a sério. Com dinheiro no banco e tempo nas mãos, não era tão difícil dar as costas aos valores utilitários.
A universidade de hoje difere da do cardeal Newman em quase todos os aspectos. Ela recruta de todas as classes da sociedade, é aberta igualmente para homens e mulheres, e, é frequentemente financiada e aprovisionada pelo Estado. Pouco ou nada resta da rotina colegial equilibrada que moldou o espírito de Newman, e o currículo não se concentra em assuntos sublimes e em matérias sem propósito, como o grego antigo, no qual paira a visão fascinante de uma vida além do comércio; a universidade de hoje é centrada nas ciências, nas disciplinas vocacionais, e os agora onipresentes ‘estudos empresariais’ (business studies) ou, através dos quais os alunos supostamente aprendem os caminhos do mundo.
Além disso, as universidades se expandiram para oferecer os seus serviços a uma proporção cada vez maior da população, e, para absorver uma fatia cada vez maior do orçamento nacional. A receita da indústria do ensino universitário no estado de Massachusetts, nos Estados Unidos, é maior do que a de qualquer outra indústria. Em todas as principais cidades britânicas ou americanas há pelo menos uma universidade, sendo que as universidades estaduais americanas podem ter, a qualquer momento, mais de 50.000 estudantes. O ensino superior é oferecido como um direito a todos os que completaram o baccalauréat francês ou o Feststellungsprüfung alemão, e, os políticos europeus costumam dizer que a tarefa da reforma educacional não estará completa até que todas as crianças possam, no devido tempo, se formar. A universidade não está mais no negócio de criar uma elite social, mas no negócio rival de garantir que as elites sejam uma coisa do passado.
Sob o pretexto de fornecer um ‘propósito para além do objetivo’, os críticos da universidade poderiam dizer que a universidade exaltada por Newman havia sido projetada para proteger os privilégios de uma classe alta existente, e para colocar obstáculos ao avanço de seus concorrentes. A universidade transmitia habilidades fúteis, estimadas precisamente pela sua futilidade, uma vez que isso as tornavam um distintivo de afiliação que poucos podiam adquirir. E, longe de avançar os fundos do conhecimento, existia para salvaguardar mitos sagrados: colocou uma barreira protetora de encantamento em torno da religião, dos valores sociais e da alta cultura do passado, e, fingiu que as habilidades recônditas necessárias para usufruir desse encantamento – o latim e o grego, por exemplo – eram as formas mais altas de conhecimento. Em suma, a universidade newmanita era um instrumento para a perpetuação de uma classe de lazer. A cultura que transmitia não era propriedade de toda a comunidade, mas apenas uma ferramenta ideológica, através da qual os poderes e privilégios da ordem existente eram envoltos em sua aura de legitimidade.
Agora, por outro lado, temos universidades dedicadas ao crescimento do conhecimento, que não são meramente não elitistas, mas antielitistas em sua estrutura social. Elas não fazem discriminação por motivos de religião, sexo, raça ou classe. São locais de mentalidade aberta à pesquisa e ao questionamento, sem compromissos dogmáticos, e cujo objetivo é promover o conhecimento através de um espírito de livre investigação. Esse espírito é transmitido aos seus alunos, que têm a maior variedade possível de opções de currículo, e, adquirem não apenas os conhecimentos firmemente fundamentados, mas também aqueles que são eminentemente úteis em suas vidas futuras, como, por exemplo, a administração de empresas, a administração de hotéis, e estudos de relações internacionais. Em resumo, as universidades evoluíram de clubes socialmente exclusivos voltados ao estudo de futilidades preciosas, para centros de treinamento socialmente inclusivos voltados à propagação das habilidades necessárias. E a cultura que elas transmitem não é a de uma elite privilegiada, mas de uma ‘cultura inclusiva’ que qualquer pessoa pode adquirir e desfrutar.
Dito isto, no entanto, hoje é mais provável que um visitante de uma universidade americana depare com as variedades locais de censura do que com qualquer atmosfera de livre investigação. É verdade que os americanos vivem em uma sociedade tolerante. Mas, eles também criam guardiães vigilantes, determinados a detectar e extirpar os primeiros sinais de ‘preconceito’ entre os jovens. E esses guardiães têm uma tendência inata de gravitar para as universidades, onde a própria liberdade de currículo e a abertura à inovação lhes proporcionam uma oportunidade de exercer as suas paixões censórias. Livros são lançados ou retirados do plano de estudos com base em sua correção política; os códigos de fala e os serviços de aconselhamento oferecidos policiam o idioma e o pensamento de alunos e professores; os cursos são projetados para transmitir conformidade ideológica, e os alunos são frequentemente penalizados por terem tirado alguma conclusão herética sobre as questões principais do dia. Nas áreas sensíveis como raça, sexo, e, a essa coisa misteriosa chamada ‘gênero’, a censura é abertamente direcionada não apenas aos estudantes, mas também a qualquer professor, por mais imparcial e escrupuloso que seja, que chegue a conclusões erradas.
Evidentemente, a cultura do Ocidente continua sendo o principal objeto de estudo nos departamentos de humanidades. No entanto, o objetivo não é instilar essa cultura, mas repudiá-la – examiná-la por todas as maneiras pelas quais ela peca contra a visão de mundo igualitária. A teoria ideológica marxista ou qualquer de seus descendentes feministas, pós-estruturalistas, ou foucaultianos, serão convocados como prova de que as preciosas conquistas de nossa cultura devem o seu status ao poder que fala através delas, e portanto, são desprovidas de valor intrínseco. Em outras palavras: o antigo currículo, que Newman via como um fim em si, foi rebaixado a um meio. Dizem que esse antigo currículo existia com a finalidade de manter as hierarquias e as distinções, formas de exclusão e dominação que mantinham a elite dominante. Os estudos nas humanidades são agora projetados para provar isso – para mostrar como, através de suas imagens, histórias e crença, através de suas obras de arte, sua música e sua linguagem, a cultura do Ocidente não tem um significado mais profundo do que o poder que serviu para perpetuar. Dessa maneira, a ideia da nossa cultura ter sido herdada como uma esfera autônoma do conhecimento moral e que requer aprendizado, reflexão e imersão para aprimorar e reter, é lançada inteiramente ao vento. A universidade, em vez de transmitir cultura, existe para desconstruir a cultura, remover sua ‘aura’ e dar o aluno, após quatro anos de dissipação intelectual, com a visão de que tudo vale e nada importa.
Surge, portanto, a impressão de que, fora das ciências exatas, não existe um corpo de conhecimento recebido, e que não há nada a aprender salvo as atitudes doutrinárias. Em The Closing of the American Mind (O fechamento da mente americana), Allan Bloom lamentou o relativismo lânguido que havia infectado as humanidades – a crença, compartilhada por estudantes e professores, de que não existem valores universais, e, que estudamos apenas por curiosidade os trabalhos que vieram até nós. Se permanecermos indiferentes ao desafio moral com o qual eles nos confrontam, isso é em grande parte devido ao fato de que não acreditamos mais que exista um desafio moral real.
Embora a observação de Bloom seja verdadeira, ela não é toda a verdade. O relativismo moral abre caminho para um novo tipo de absolutismo. O currículo emergente nas ciências humanas é, de fato, muito mais censurador, em questões cruciais, do que aquele que se esforça para substituir. Não é mais permitido acreditar que existam distinções reais e inerentes entre as pessoas. Todas as distinções são ‘culturalmente construídas’ e, portanto, mutáveis. E o objetivo do currículo é desconstruí-las, substituir a distinção pela igualdade em todas as esferas em que a distinção tenha sido um componente da cultura herdada. Os estudantes devem acreditar que, em aspectos cruciais, e em particular nos assuntos relacionados à raça, sexo, classe, papel e refinamento cultural, a civilização ocidental é apenas um dispositivo ideológico arbitrário, e certamente não (como a sua própria imagem sugere) um repositório do conhecimento moral real. Além disso, eles devem aceitar que o objetivo de sua educação não é herdar essa cultura, mas questioná-la, e, se possível, substituí-la por uma nova abordagem ‘multicultural’ que não faça distinção entre as muitas formas de vida pelas quais os estudantes encontram-se cercados.
Duvidar dessas doutrinas é cometer uma profunda heresia e ser uma ameaça para a comunidade da qual a universidade moderna[10] precisa. Pois a universidade moderna tenta atender aos alunos, independentemente de religião, sexo, raça ou formação cultural, e até mesmo da capacidade. É, em grande parte, uma criação do Estado, estando totalmente inscrita na ideia estadista de como uma sociedade deveria ser – a saber, uma sociedade sem distinções. Portanto, a universidade moderna é tão dependente da crença na igualdade quanto a universidade do cardeal Newman dependia da crença em Deus. O seu objetivo é criar um microcosmo da sociedade futura, assim como a faculdade do cardeal Newman era um microcosmo do mundo dos gentlemen. E, como a nossa cultura herdada é um sistema de distinções, opondo-se à igualdade em todas as esferas em que o gosto, o julgamento e o discernimento fazem reivindicações, a universidade moderna não tem escolha a não ser opor-se à cultura ocidental.
Portanto, apesar de sua aspiração inata à afiliação, os jovens são instruídos na universidade que eles vêm do nada e que não pertencem a nada: que todas as formas de afiliação preexistentes são nulas e sem efeito. Eles recebem um rito de passagem para o nada cultural, pois essa é a única maneira de alcançar a meta igualitária. No lugar das antigas crenças de uma civilização baseada na piedade, no discernimento e na distinção, eles recebem as novas crenças de uma sociedade baseada na igualdade e na inclusão; e, são informados de que é um crime julgar outros estilos de vida. Se o objetivo da universidade moderna fosse simplesmente substituir um sistema de crenças por outro, ela seria aberta ao debate racional. Mas o objetivo é substituir uma comunidade por outra.
Qual é a alternativa? Se as universidades não propagam a cultura que lhes foi confiada, aonde mais os jovens podem procurá-la? Algumas reflexões em resposta a essa pergunta foram sugeridas por experiências que começaram para mim em 1979. Os escritos de Foucault, Deleuze e Bourdieu estavam começando a criar ondas na Universidade de Londres, onde eu lecionava. Os meus alunos estavam sendo informados de todos os lados que não existe conhecimento nas humanidades, e, que as universidades existem não para justificar a cultura como uma forma de conhecimento, mas para desmascará-la como uma forma de poder.
Em resposta, me perguntei o que exatamente eu estava tentando ensinar e por quê. Ao apresentar aos alunos as grandes obras de filosofia, literatura e crítica que eu havia absorvido na escola e na universidade, eu senti que estava oferecendo a eles o quadro de referência, o estoque de especulações, os paradigmas de discernimento e alusão, para que, através dos quais, entendessem o seu mundo. Eu estava oferecendo a eles a afiliação à cultura, não como um corpo de doutrina, mas como uma conversa contínua. E isso, eu senti, era uma forma de conhecimento real: não o conhecimento de fatos e teorias, mas conhecimento do que sentir, como se relacionar, e a que pertencer. No entanto, esse corpo de conhecimento, como eu o supunha, estava agora sendo descartado como uma ideologia burguesa, ou – no jargão de Foucault – como o episteme, o saber acumulado, de uma classe dominante.
Um dia, veio-me um convite, de boca, para falar em um seminário clandestino em Praga. Eu aceitei; como resultado, entrei em contato com pessoas para quem a busca pelo conhecimento e pela cultura não era um luxo dispensável, mas uma necessidade. Nada mais poderia lhes proporcionar o que buscavam, que era uma rota de fuga do mundo das mentiras pelas quais estavam cercados. E discutindo a herança cultural ocidental entre si, eles foram marcados como hereges, que arriscavam a detenção e a prisão apenas por se reunir como eles faziam. Ironicamente, talvez a maior conquista intelectual do partido comunista tenha sido convencer as pessoas de que a distinção feita por Platão entre conhecimento e opinião é válida, e, que a opinião ideológica não é meramente distinta do conhecimento, mas inimiga do conhecimento; é uma doença implantada no cérebro humano, que impossibilita distinguir entre as ideias verdadeiras e as ideias falsas. Essa foi a doença espalhada pelo Partido. E foi espalhado por Foucault também. Pois foi Foucault quem ensinou os meus colegas a avaliar toda ideia, todo argumento, toda instituição, convenção ou tradição em termos da ‘dominação’ que mascara. Verdade e falsidade não tinham significado real no mundo de Foucault; tudo o que importava era o poder.
Essas questões foram sublinhadas com intensidade para os tchecos e eslovacos no ensaio de Václav Havel ‘O poder dos impotentes’ (1978), exortando os seus compatriotas a ‘viverem na verdade’. Como eles poderiam fazer isso, se não eram capazes de distinguir o verdadeiro do falso? E como eles poderiam distinguir o verdadeiro do falso sem o benefício da cultura e do conhecimento real? Portanto, a busca por essas coisas se tornou urgente. E o preço dessa busca foi alto – assédio, prisão, privação de direitos e privilégios comuns, e, uma vida à margem da sociedade. Quando algo tem um preço moral alto, apenas as pessoas comprometidas o perseguem. Por isso, encontrei, nos seminários clandestinos, um corpo discente ímpar – pessoas dedicadas ao conhecimento, como eu o entendia, e cientes da facilidade e do perigo de substituir o conhecimento pela mera opinião. Além disso, eles procuravam conhecimento no lugar onde é mais necessário e também mais difícil de encontrar – na filosofia, na história, e na arte e literatura, nos lugares onde o entendimento crítico, e não o método científico, é o nosso único guia. E o mais interessante para mim foi o desejo urgente entre todos os meus novos alunos de receber a herança cultural que lhes era transmitida. Eles haviam sido criados em um mundo onde todas as formas de pertencimento, exceto a submissão ao Partido no poder, haviam sido marginalizadas ou denunciadas como crimes. Eles entenderam instintivamente que uma herança cultural é preciosa, precisamente porque oferece um rito de passagem para o que você realmente é e para a comunidade de sentimentos que é sua.
Havia outra característica interessante dos seminários clandestinos, que é o faro de que os seus recursos intelectuais eram tão escassos. Os acadêmicos do Ocidente são obrigados a publicar artigos e livros para avançar em suas carreiras e, nos anos que se seguiram à Segunda Guerra Mundial, isso levou a uma proliferação de literatura que, se não de secunda categoria, do ponto de vista intelectual, quase sempre não tem mérito literário – é pesada, cheia de notas de rodapé, sem imagens informativas ou eloquência, e, com um conteúdo que é ao mesmo tempo efêmero e impossível de ignorar. O peso dessa pseudo literatura oprime tanto os professores quanto os alunos das humanidades, e agora é praticamente impossível descobrir os clássicos que estão enterrados debaixo dela.
Às vezes eu penso que o maior serviço à nossa cultura foi prestado pela pessoa que incendiou a biblioteca de Alexandria, garantindo assim que nada sobrevivesse àquele volume de literatura além daquelas obras consideradas tão preciosas que toda pessoa educada teria suas próprias cópias. Os comunistas haviam prestado um serviço semelhante à vida intelectual na Tchecoslováquia, impedindo a publicação de qualquer coisa, exceto aquelas obras consideradas tão preciosas que as pessoas estavam preparadas para produzi-las em laboriosas edições samizdat[11]. Estas obras eram passadas de mão em mão e lidas com grande interesse por pessoas para quem o conhecimento, e não o progresso na carreira, era o objetivo. Quão revigorante era isso, depois de uma vida entre revistas acadêmicas e suas notas de rodapé!
Obviamente, as circunstâncias dos seminários clandestinos eram incomuns, e, ninguém iria querer reproduzi-las. No entanto, durante os dez anos em que trabalhei com outras pessoas para transformar esses grupos particulares de leitura em uma universidade estruturada (embora clandestina), aprendi duas verdades muito importantes. A primeira é que uma herança cultural é realmente um corpo de conhecimentos e não um conjunto de opiniões – conhecimento do coração humano, e da visão de longo prazo de uma comunidade humana. A segunda é que esse conhecimento pode ser ensinado e que não é necessário um vasto investimento de dinheiro para isso; e, certamente não os US $ 50.000 por estudante por ano exigidos por uma universidade da Ivy League[12]. Requer um punhado de livros que passaram no teste do tempo e são valorizados por todos que realmente os estudam. Requer professores com conhecimento e alunos ansiosos para adquiri-lo. E isso, por sua vez, requer uma tentativa contínua de expressar o que se aprendeu, em ensaios ou em encontros cara a cara com um crítico. Todo o resto – administração, tecnologia da informação, salas de aula, bibliotecas, recursos extracurriculares – é, em comparação, um luxo insignificante.
Quando as instituições são incuravelmente corrompidas, assim como as universidades foram corrompidas pelo comunismo, nós devemos começar de novo, mesmo que o custo seja tão alto quanto foi na Europa ocupada pelos soviéticos. Para nós, o custo não é tão alto. O presente mais precioso de nossa civilização, e o que estava mais ameaçado durante o século XX, é a liberdade de associação. Como essa liberdade ainda existe, e em nenhum lugar mais do que na América, o fato de não podermos mais confiar nossa alta cultura às universidades importa menos. O destino de Harvard e Yale é inevitavelmente uma preocupação geral; mas também existem instituições de ensino superior como o St. John’s College, em Anápolis, ou o Hillsdale College, no Michigan, onde pessoas que acreditam no currículo antigo estão preparadas para ensiná-lo. Existem grupos privados de leitura, cursos on-line, associações de acadêmicos, grupos de reflexão (think tanks) e programas de palestras públicas. Existem instituições como o Intercollegiate Studies Institute (Instituto de Estudos Intercolegiais), que oferece um serviço de resgate para estudantes que foram vítimas do politicamente correto. Existem periódicos como este, que servem como ponto focal para discussões que, no final das contas, não precisam de uma universidade para ocorrer. Parece-me que nós nos deixamos intimidar pela crença de que, como as universidades têm bibliotecas, laboratórios, professores instruídos e dotações substanciais, elas são também repositórios indispensáveis de conhecimento. Nas ciências, isso é verdade. Mas isso não é mais verdade nas humanidades.
No entanto, o caminho a seguir não é tão claro quanto gostariam os defensores do antigo currículo. Os programas dos ‘grandes livros’ (o cânon literário), as pesquisas sobre a nossa herança cultural, os estudos comparativos da arte, da música e da arquitetura ocidentais – todas essas são escolhas óbvias. Mas por quê? O que distingue esses programas dos cursos de música pop, de desenho em quadrinhos, e dos estudos de gênero, que, tão facilmente, entram para substituí-los? Dizer que o currículo tradicional continha conhecimento real em oposição a distrações efêmeras apenas levanta outra pergunta. Pois nós não sabemos em que consiste realmente o conhecimento. Sentimos isso, é claro, como meus alunos tchecos sentiram. Sentimos o chamado da cultura que é nossa, e queremos dizer que, ao responder a esse chamado, estamos deixando o mundo da opinião e entrando no mundo do conhecimento. Mas por quê?
As respostas até o momento, ou são triviais – como quando Matthew Arnold nos diz, em Culture and Anarchy (Cultura e Anarquia), que uma alta cultura consiste no “melhor que já foi pensado e dito” – ou então, baseadas em alguma versão da visão iluminista de que o conhecimento cultural envolve transcender o particular no universal, substituindo as nossas lealdades constritivas e as comunidades imaginadas por algum ideal cosmopolita. E, há apenas um pequeno passo entre essa posição iluminista e o currículo multicultural e igualitário que adota o universal humano apenas porque toda a singularidade da herança cultural real foi retirada da mesma. Eu suspeito que, até que consigamos chegar a algo melhor do que essas duas abordagens, não conseguiremos escapar das garras das universidades, e tampouco nos sentiremos confiantes o suficiente para começar de novo sem elas.
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Ensaio publicado inicialmente na revista online First Things em abril de 2015. Tradução e notas de rodapé de Joaquina Pires-O’Brien (UK). Sir Roger Scruton (1944-2020), filósofo britânico, é considerado o maior filósofo do conservadorismo desde Edmund Burke (1729-1797).
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[1] Paideia (em grego antigo: παιδεία) é a denominação do sistema de educação e formação ética da Grécia Antiga, que incluía o ensino da Educação Física, Gramática, Retórica, Música, Matemática, Geografia, História Natural e Filosofia. O objetivo da paideia era formar um cidadão perfeito e completo, capaz de liderar e ser liderado e desempenhar um papel positivo na sociedade.
[2] Os Studia (sing. studium) eram um novo tipo de escola que surgiu no século XI na Itália. Inicialmente havia apenas studia de conhecimento específico, mas posteriormente surgiram as studia generalia ou ‘escolas de estudos gerais.’ As primeiras eventualmente passaram a ser conhecidas como ‘faculdades’, do latim facultatem, uma tradução do termo grego ‘dynamis’, que significa ‘ramo de conhecimento’, enquanto que as segundas são reconhecidas como sendo as primeiras universidades.
[3] O Iluminismo, ou siècle des Lumières (literalmente ‘século das Luzes’) no francês, ou Aufklärung em alemão, refere-se ao movimento intelectual na Europa dos séculos XVII e XVIII, durante o qual as ideias sobre Deus, razão, natureza e humanidade foram sintetizadas em uma visão de mundo que obteve ampla aprovação no Ocidente, e, instigou desenvolvimentos revolucionários na arte, na filosofia e na política. O pensamento central do Iluminismo é a celebração da razão e o seu uso para ajudar as pessoas a entender o universo e a melhorar as suas condições.
[4] Bildung. Palavra alemã que designa a tradição alemã do auto cultivo. É sinônimo de educação e formação.
[5] John Henry Newman (1801-1890) foi um influente clérigo e homem de letras do XIX, na Inglaterra. Ele liderou o chamado movimento de Oxford, de 1833, pela reforma da Igreja Anglicana. Em 1843 ele deixou a Igreja Anglicana e se converteu para a Igreja Católica romana, dentro da qual foi ordenado padre e nomeado cardeal. O seu livro The Idea of the University (A Ideia da Universidade; 1852) defende a tradicional união entre o conhecimento e a religião das primeiras universidades, discorrendo sobre a filosofia e a teologia, o humanismo e o cristianismo, a razão e a revelação, a natureza e a Graça Divina, etc. Em 2019 Newman foi canonizado santo pelo Papa Francisco.
[6] Gentlemen. Inglês, plural; singular: gentleman. A palavra gentleman é traduzida para o português como cavalheiro, no sentido de homem educado e dotado de trejeito social e boas maneiras.
[7] Colleges. Inglês, plural; singular: college. No mundo anglófono a palavra college equivale à palavra `faculdade` e seus cognatos, empregados nas línguas latinas. Pode também significar ‘universidade’ ou ‘campus universitário’. Citando como exemplo a Universidade de Oxford, esta consiste de diversos colleges, cada qual com seu próprio caráter e história. Na Universidade de Oxford, a maioria dos colleges oferece refeições, bibliotecas, alojamento, esportes, e os mais variados eventos. Portanto, cada college é uma comunidade de alunos, professores e servidores.
[8] Dons. Inglês. Na Universidade de Oxford, dons são os governantes de cada college. Noutras universidades a palavra don é empregada para designar os professores de modo geral.
[9] Alma mater. Palavra Latina que significa literalmente ‘mãe nutridora da alma’, mas cuja conotação normal é a da universidade ou faculdade onde uma pessoa estudou.
[10] Ao usar a expressão ‘universidade moderna’ o autor não está contrastando o moderno e o pós-moderno mas simplesmente se referindo à universidade dos dias de hoje, isto é, das últimas décadas.
[11] A palavra Samizdat se refere a um sistema na ex-URSS e na Europa Oriental pelo qual livros e revistas proibidos pelo Estado eram impressos ilegalmente por grupos que se opunham ao Estado.
[12] Ivy League. Termo referente a oito universidades de prestígio no nordeste dos Estados Unidos: Harvard, Yale, Pensilvânia, Princeton, Columbia, Brown, Dartmouth e Cornell, assim chamadas devido à hera (ivy) que cresce em seus antigos prédios e muros. Os estudantes dessas universidades são chamados Ivy Leaguers.