Breve história dos cripto-judeus de descendência espanhola e portuguesa

Ivone Garcia

15_iberiaOs judeus fixaram-se na Península Ibérica – Espanha e Portugal – antes da chegada dos fenícios que se deu por volta de 900 a.C. Os mercadores judeus assentaram-se ao longo da costa da Espanha na época do rei Salomão (970-931 a.C.), quando essa região era chamada Tarsus ou Tarshish. A Ibéria era designada de Sefarad pelos seus habitantes judeus e de Hispania pelos romanos, sendo que o nome Espanha originou-se deste último. Outros judeus imigraram para lá depois da destruição do primeiro Templo de Jerusalém. Quando o rei Nabucodonosor da Babilônia conquistou Jerusalém, já havia grandes colônias de judeus em toda a Ibéria.

A primeira perseguição de judeus registrada na Espanha começou em torno de 489 d.C., quando os judeus foram proibidos de se casar com não judeus e de ocupar cargos no governo, e, qualquer criança que já tivesse nascido de casamentos mistos foi obrigada a ser batizada na Igreja Católica.

Daí para frente os judeus ibéricos foram periodicamente submetidos a perseguições, progressivamente piores, até 653 e 672 d.C., quando foram decapitados, queimados vivos, ou mortos por apedrejamento pelo crime de voltar praticar o judaísmo após forçadas conversões ao catolicismo. Foi durante o período de 489 a 711 d.C., sob os governos dos francos e dos visigodos, que os cripto-judeus (judeus secretos) primeiramente surgiram como um grupo significativo.

Em 711 d.C., os mouros do norte da África conquistaram a região, resultando no período de aproximadamente três séculos que ficou conhecido como ‘A Idade Dourada da Tolerância’, quando os governantes muçulmanos conviveram com os judeus e os cristãos. A população não muçulmana gozava de bastante liberdade, desde que pagasse um imposto especial, com o qual os judeus concordaram de bom grado. A arte, a música, a medicina, a educação e o estudo religioso dos judeus floresceu e a população de judeus cresceu enormemente e prosperou; nesse período, muitos judeus tornaram-se fabulosamente ricos e famosos.

Durante a Idade Dourada, a Espanha tornou-se o centro mundial dos Estudos Talmúdicos, com algumas das mais famosas academias rabínicas. Alguns dos maiores estudiosos judeus viveram na Espanha durante os anos da transição logo após o final desse período. O rabino Abraão ben Meir Ibn Ezra nasceu em Tudela, Espanha, em 1089. Ele foi poeta, matemático, gramático, astrônomo, comentarista do Torá e filósofo. O rabino Moshe ben Maimon, conhecido como ‘O Rambam’ ou ‘Maimonides’, nasceu em Córdoba, Espanha, em 1135, e ganhava a vida como médico. Ele é mais conhecido pela sua codificação da lei judaica, o Torá Mishnáe, e pelo seu tratado filosófico Guia para os Perplexos. O rabino Moshe ben Nachman, conhecido como ‘O Ramban’, nasceu em 1194. Ele, assim como Maimonides, era médico e foi o primeiro estudioso a incorporar a Cabala –̶ o misticismo judaico – aos ensinamentos do Torá; foi, ainda, um forte proponente da ocupação de Israel.

Os judeus e os cripto-judeus floresceram em relativa paz e fartura, aproveitando, na Idade Dourada, a troca livre de ideias, um nível de educação relativamente elevado para o mundo daquela época, e os benefícios de se viver entre os estudiosos talmúdicos e do Torá. Cidades como Lucena, Granada e Tarragona eram habitadas por judeus magnificamente ricos em cultura e em bens materiais.

Entretanto, a assim chamada Idade Dourada na Espanha foi também marcada por ocasionais convulsões violentas que afetaram os judeus e os cripto-judeus, os quais ficaram sujeitos aos caprichos dos governos em frequentes mudanças. Por exemplo, em 1002, houve uma erupção de violência quando dois muçulmanos politicamente poderosos e ricos brigaram pelo governo de Granada; infelizmente os judeus haviam apoiado o perdedor e, daí por diante, sofreram a suspeição muçulmana. Em 1066, um importante ministro judeu de Granada foi crucificado, e sua cricificação foi seguida pelo massacre de mais de 1500 famílias judias. Em 1086, a dinastia mourisca original foi derrubada pelos fanáticos almorávidas, por sua vez derrubados pelos ainda mais fanáticos almôades do Marrocos, em 1112. Por volta de 1149 os almôades haviam invadido toda a península, que havia se fragmentado em cerca de 12 pequenos reinos. A falta de um controle centralizado causou lutas constantes pelo poder entre reinos vizinhos, de forma que os almôades não conseguiram estabelecer-se com firmeza na península.

Embora os judeus houvessem coexistidos relativamente em paz com os muçulmanos, os católicos ressentiram-se amargamente da perda do controle cristão na península a partir de 711. Desde então, perpetraram vários distúrbios e insurreições, até que, em 1212, promoveram uma verdadeira revolta a qual pôs fim ao poderio dos almôades na península. Considerada uma obrigação sagrada, a ‘Reconquista’ da região durou séculos. Ainda que, sob os governos muçulmanos, os judeus tenham desfrutado privilégio e poder, aos olhos dos cristãos os judeus eram, infelizmente, identificados com a morte do seu Cristo.

Também, nessa mesma época, a Peste Negra estava assolando a Europa, quando chegou a matar uma em cada quatro pessoas, embora essa estatística fosse menor para a população de judeus. Uma melhor higiene foi a possível razão pela qual poucos judeus morreram durante a Peste Negra. Os judeus lavavam as mãos antes de comer pão, tomavam banhos semanalmente logo antes do sabá e dos dias santos, lavavam as suas roupas com regularidade, mantinham as suas casas limpas (especialmente a cozinha e os banheiros), consumiam apenas carnes frescas e kosher e de animais saudáveis, eram obrigados a se manter longes de esgotos e outras formas de sujeira ao ler o Torá, e enterravam os seus mortos dentro de 24 horas. Todas essas práticas, combinadas às segregadas vizinhanças judias, conferiram alguma forma de proteção contra a Peste Negra, ainda que a imunidade não fosse total. Os católicos não tinham estilos de vida higiênicos, e, raramente, se lavavam ou tomavam banho. Odiavam os judeus pela sua aparente imunidade à Peste Negra e acreditavam amplamente no falso boato de que os judeus haviam sido os causadores da Peste Negra envenenando os poços.

Os católicos, unidos contra os muçulmanos que estavam absortos na briga entre eles próprios, aos poucos conquistaram a maior parte dos pequenos reinos, um de cada vez. O governo católico não foi bom para os judeus. Os frequentes pogroms ocorridos em 1391 resultaram na matança de 50 mil judeus, dessa forma, temendo pelas suas vidas, dezenas de milhares se converteram ao catolicismo. Essas pessoas eram chamadas ‘conversos’, ‘cristãos-novos’ ou ‘marranos’ (termo pejorativo que significa ‘gente dos porcos’). Em 1412, foram promulgadas as Leis da Catalina, que excluíram os judeus de qualquer transação econômica com os cristãos. Dessa época até o Édito de Expulsão de 1492, os judeus foram firmemente confinados a bairros especiais e eram obrigados a usar proeminentes distintivos nas suas roupas. Assim pressionados, a fim de sobreviver, muitos judeus, chegando talvez a uns 600 mil, converteram-se ao cristianismo no final do século XV. Muitos dos cristãos-novos eram na realidade cripto-judeus, cristãos de fachada, que, em segredo, praticavam tenazmente o judaísmo.

O Édito de Expulsão espanhol de 1492 afirmou que todos os judeus deveriam deixar o país. Os que ficassem iriam enfrentar a Inquisição. Um número pequeno fugiu para a Itália, Amsterdã e as Américas, mas a maioria foi para o país vizinho, Portugal. Quando a Inquisição chegou em Portugal em 1496, os judeus foram forçados a sair do país, converter-se, ou morrer. Dentre os conversos que optaram por não emigrar, muitos, se não a maioria, foram assassinados pela ‘Sagrada’ Inquisição. As estimativas dos que foram forçados a deixar a Península Ibérica por volta de 1500 ficam entre 40 e 200 mil. Os números exatos não estão disponíveis pois os nomes de família (sobrenomes) de muitos cripto-judeus foram mudados após os pogroms do século XIV em antecipação às futuras perseguições.

A Inquisição espanhola e a portuguesa permaneceram atuantes durante 350 anos. Registros acurados dos nomes, números, datas e punições foram mantidos pelos oficiais da Inquisição, e, assim sendo, qualquer um que se importe com a recontagem dos horrores cometidos pode lê-los. Dentre os judeus e cripto-judeus que optaram por não emigrar, ou que não tinham recursos para deixar a Península Ibérica, muitos, mais tarde, compraram suas passagens ou contrataram um navio a velas para levá-los a destinos mais seguros, de preferência tão longe quanto possível do posto inquisitorial mais perto.

Alguns compraram a documentação oficial para viagens de negócio ‘temporárias’ (que, frequentemente, se tornaram permanentes) para a Itália ou a Alemanha, enquanto que as pessoas mais pobres fugiram para o norte através das montanhas e até a França. Comunidades inteiras de ‘cristãos portugueses’ foram documentadas no sul da França, enquanto que outras foram ainda mais ao norte, para Amsterdã, Inglaterra, Escandinávia, e, também, na direção leste para as províncias germânicas: Áustria, Hungria e Polônia. Na maioria desses destinos europeus, esses ‘portugueses cristãos’ eventualmente revelaram a sua verdadeira identidade de judeus, e subsequentemente se misturaram às populações de judeus já estabelecidas; por isso, nós não encontramos longas histórias de cripto-judaísmo em toda a Europa.

Muitos judeus e cripto-judeus imigraram para o Novo Mundo, hoje conhecido como as Américas, ou o Hemisfério Ocidental. As suas escolhas eram limitadas às colônias da Espanha e de Portugal, e assim, quando a Inquisição chegou ao Peru em 1570, ao México em 1571, e a Cartagena em 1610, essas mesmas pessoas foram mais uma vez obrigadas a optar entre converter-se ou morrer. A Inquisição espalhou-se para onde atualmente ficam os Estados Unidos da América, o México, a América Central e do Sul, as ilhas do Caribe e Cuba. Nenhum judeu ou ‘converso’ estava livre da suspeita, acusação e perseguição; assim, o número de cripto-judeus cresceu, abarcando quase todas as pessoas de descendência judia. A experiência dos cripto-judeus no Hemisfério Ocidental foi uma sequência de sofrimentos, medo constante, exclusões sociais, políticas, profissionais e religiosas, e assassínios. A Inquisição finalmente terminou, tão tarde quanto o final da década de 1850, no México, e um pouco antes noutros lugares; entretanto, a discriminação aberta e os incidentes aleatórios de linchamentos e execuções continuaram até bem dentro da década de 1950 onde nós hoje chamamos de ‘América Latina’.

O resultado final de cerca de 1000 anos de perseguições e assassinatos aos judeus portugueses e espanhóis (descontando os 300 anos da ‘Idade Dourada’) obrigou muitas famílias que imigraram para o Novo Mundo a se tornarem cripto-judeus, enquanto viviam suas vidas públicas como católicos. Nas Américas, alguns dos cripto-judeus reverteram e passaram a assumir abertamente a posição de judeus, apenas para descobrir anos mais tarde que a Inquisição os havia seguido até os seus novos países, e eles foram forçados a voltar atrás. Todas essas pessoas, os ‘conversos’ ou ‘cristãos-novos’, foram forçadas a se submeter ao catolicismo, e assim sendo, eles são referidos no hebraico como os ‘anusim’ ou ‘aqueles que foram obrigados.’

Passaram-se aproximadamente 1500 anos desde o surgimento dos cripto-judeus na Península Ibérica, e 500 anos desde que o cripto-judaísmo foi para as Américas. Hoje em dia, há uma grande presença de cripto-judeus no Hemisfério Ocidental. Não é sabido ao certo quantos eles são, entretanto, considerando apenas o Brasil, cuja porcentagem de cripto-judeus é estimada entre 10 e 25% da população, isso se traduz entre 15 e 40 milhões de pessoas.

Conquanto nem todas as pessoas de linhagem cripto-judaica estão dispostas, nesse momento, a aceitar o desafio de voltar integralmente à vida de judeu, milhões de pessoas estão ansiosas para aprender e para se reconectar-se a Deus como judeus.

Referências:

  1. The Tanach, Mesorah Publications, Ltd., N.Y., 1996.
  2. Malka, Edmond S., Sephardi Jews: A Pageant of Spanish-Portuguese and Oriental Judaism Between the Cross and the Crescent, Edmond S. Malka, Trenton, NJ, 1979.
  3. Netanyahu, B., The Origins of the Inquisition in Fifteenth Century Spain, Random House, New York, 1995.
  4. Pereira, Dione, ‘Contemporary B’nai Anusim in the Northeast of Brazil’, Society for Crypto-Judaic Studies, Portland Conference, Portland, Oregon, 2004
  5. Warshawsky, Matthew, PhD., ‘The End of Jewry in Sephard, Land of the Hebrew Golden Age,’ HaLapid, Summer 2004 issue.

__________________________________________________________________________

Nota

Republicado do portal The Association of Crypto Jews of the Americas (ACJA) / La Comunidad Hispana Sefardí de las Americas.

Cortesia de: Rabino Yosef ben Rajman ben Kalev García Cesmedes & Ivone Garcia

Fonte: http://www.cryptojew.org/the_history_of_the_beni_anusim.html

Tradutora: Joaquina Pires-O’Brien (UK)

Revisora: Débora Finamore (Brasil)

Citação

Garcia, I. Breve história dos cripto-judeus de descendência espanhola e portuguesa. PortVitoria, UK, v.11, Jul-Dec, 2015. ISSN 2044-8236, https://portvitoria.com