João José Forni
O incêndio no Museu Nacional do Rio de Janeiro é daquelas tragédias que ninguém imagina (nem deseja) que possa ocorrer, mas todo mundo sabia que o risco existia. E que um dia sim, poderia acontecer, principalmente num prédio antigo e mal conservado. Boa parte da estrutura do prédio do Museu Nacional, no Rio de Janeiro, era de madeira, e o acervo tinha muito material inflamável – o que fez o fogo se espalhar rapidamente.
O soco no estômago do País, principalmente naqueles milhares de estudiosos que gostam de História, biblioteconomia, arqueologia e de todas as áreas do conhecimento que têm relação com a História, e nos empregados, o que aconteceu na noite de domingo beira o inacreditável. Mais ou menos como os franceses relaxarem e um dia ficarmos sabendo que uma pequena parte do Museu do Louvre pegou fogo. O que, convenhamos, seria muito pouco provável.
Museu reprovado em gestão de risco
O depoimento de uma funcionária do Museu, no Jornal Nacional, da Rede Globo, “A gente sempre soube que um dia isso ia acontecer, porque faltavam recursos para proteger o nosso palácio… perdemos a arte, a história”, de certa forma sintetiza o que deduzimos no primeiro momento em que vimos as labaredas engolindo o acervo do Museu: uma tragédia anunciada. Na sua dimensão mais perversa. “A gente perdeu a dignidade, já que é isso que a cultura traz, um sentimento de cidadania. Um país sem cultura não existe”, afirmou um estudante durante manifestação no Rio.
“O mais grave na tragédia do Museu Nacional é que o incêndio não foi uma surpresa. “O museu estava jogado, apodrecendo, incluindo a parte elétrica”, disse Walter Neves, professor da Universidade de São Paulo.” Em junho, a imprensa mostrou a existência de goteiras, infiltrações e problemas das instalações elétricas. Não foi a primeira vez que funcionários, pesquisadores se manifestaram pelas condições precárias do prédio. E o que foi feito?
Para o professor José Vagner Alencar, que trabalha há 17 anos na área de geologia do Museu Nacional, em depoimento ao jornal “O Globo”: “A sensação é como se tivesse sido bombardeado. O nosso laboratório fica nos fundos do Museu Nacional e os andares caíram por cima do nosso laboratório. Uma grande parte da história da geologia do Museu Nacional foi perdida”.
É surpreendente, para não dizer irresponsável, a forma como o governo federal, a Universidade Federal do Rio de Janeiro e a diretoria do Museu cuidavam daquele acervo. Os bombeiros chegaram ao local logo depois de iniciado o incêndio, mas, segundo eles, os dois hidrantes próximos ao prédio não tinham pressão suficiente. Precisaram pegar água de um tradicional lago que existe na Quinta da Boa Vista. O comandante-geral do Bombeiros disse que a falta de água atrasou os trabalhos em mais de meia hora. Fatais para um prédio que tinha estrutura antiga e abrigava acervo e produtos altamente inflamáveis. Sabe-se agora que o prédio sequer tinha alvará dos Bombeiros. Como pode um prédio público receber empregados, visitantes e pesquisadores sem alvará? Pelo visto, o risco de uma tragédia ainda maior naquele prédio era iminente.
Salta aos olhos, quando se fala em gestão de risco, é saber que o Museu Nacional não aplicou qualquer valor neste ano na compra de equipamentos ou materiais de segurança. Também não foi feito nenhum pagamento para serviços de manutenção de imóveis ou aquisição de materiais para essa finalidade. Segundo o Portal Uol, levantamento da ONG Contas Abertas mostra ainda que, nos últimos quatro anos, os desembolsos realizados com essas atividades estão bem abaixo do que se imaginaria para um prédio daquela dimensão e, sobretudo, com 200 anos, sem um esquema sistematizado de manutenção preventiva.
Quem não cuidou, agora critica
Políticos e candidatos oportunistas, incluindo os candidatos Dilma, Boulos e Manoela D’Avila, apressaram-se em ir às redes sociais tentar imputar ao atual governo e ao teto de gastos a culpa pelo incêndio, aproveitando a comoção para tirar proveito político. Não demorou para aparecer nas redes documentos e depoimentos mostrando que desde 2004 o Museu solicitava verba para manutenção. Os valores repassados pela UFRJ, que administrava o Museu, mal davam para as despesas de custeio (só a folha salarial consome 87% do orçamento da Universidade). A ironia de tudo isso é que a maior parte da direção da UFRJ, que administra o Museu, é composta por filiados do PSOL, partido de Sr. Boulos. Se o governo federal cortou, competia à UFRJ e à direção do Museu ir atrás de recursos pra amenizar o risco que o prédio e o precioso acervo corriam. O Governo Federal lava as mãos alegando que repassou os recursos totais para a UFRJ, ficando a critério dela fixar o orçamento do Museu.
Até agosto deste ano, os gastos do Museu Nacional chegaram a menos de R$ 100 mil, segundo a ONG Contas Abertas. Para dar uma dimensão dos recursos despendidos pelo museu, o Contas Abertas fez uma comparação entre os valores utilizados no ano passado pelo museu (R$ 665 mil) e os gastos para lavar 83 carros oficiais da Câmara dos Deputados. O custo anual da lavagem foi de R$ 563 mil, 89% dos desembolsos feitos em 2017 pelo museu. O orçamento da UFRJ em 2017, foi de R$ 4 bilhões.
Discussões políticas à parte, para saber de quem é a culpa, na verdade todos os últimos governos são culpados, sem isentar sequer o governo estadual e municipal do Rio de Janeiro. Nem cabem, no momento, tentativas de “terceirizar” a crise. O Museu fica na cidade do Rio de Janeiro, era uma atração turística. Se teve tantos bilhões para executar obras faraônicas para as Olimpíadas, por que não se priorizou recursos para implantar um sistema de alarme e contenção de incêndios no mais importante museu do País? Ou para fiscalizar os hidrantes para ver se estavam funcionando? Até os Bombeiros entram nesse rol de omissão.
A rotina das crises anunciadas
O Museu Nacional havia completado 200 anos. Fundado em 1818, por Dom João VI, o acervo tinha peças compradas, recebidas como presente ou obtidas por Dom Pedro I e, principalmente, por Dom Pedro II. Este tinha particular apreço por bens culturais e iniciou a coleção de múmias que estavam no Museu, peças essas que foram destruídas e jamais serão repostas. O estrago na memória do País e da Humanidade é tão grande que a Unesco chegou a compará-lo à destruição do sítio arqueológico de Palmira, no Iraque, explodido pelos fanáticos do Exército Islâmico.
Lamentavelmente, repete-se uma rotina que o país está cansado de assistir. Falhas graves de gestão de riscos. Isso aconteceu no rompimento da barragem da Mineradora Samarco; nos incêndios do Instituto Butantã e do Edifício Wilton Paes de Almeida, em S. Paulo; em vários naufrágios, no Amazonas, na Bahia; como numa das maiores tragédias ocorridas no País, o incêndio da boate Kiss, em Santa Maria, em 2013, que deixou 242 jovens mortos. A exemplo do que ocorreu nessas crises, no Museu Nacional não havia qualquer processo de gestão de risco sistematizado. Funcionava como tantas outras repartições públicas, onde os funcionários cuidam do dia a dia, batem o ponto, sem levar em conta que eram uma espécie de guardiões do maior acervo histórico da América Latina.
Talvez o governo, o ministério da Cultura, a UFRJ, a própria diretoria do Museu Nacional não atentassem para a importância dessa casa, ao tratá-la como mais uma repartição pública, com orçamento apertado, sucateada, abandonada, preterida em benefício de obras que davam mais visibilidade para os políticos, muitos deles corruptos, que dominaram o Rio de Janeiro nos últimos anos, de que é um triste símbolo o ex-governador Sérgio Cabral, atualmente preso.
Boa pergunta foi feita por um professor carioca nas redes sociais: você, que está lamentando a perda daquele patrimônio histórico, que mora no Rio de Janeiro, ou você turista, por acaso conhecem, foram alguma vez no Museu Nacional? A pergunta tem pertinência, porque se descobriu que ano passado 289 mil brasileiros visitaram o Museu do Louvre, em Paris e 192 mil foram ao Museu Nacional. A Mona Lisa ganhou de goleada da Luzia, pobre Luzia, agora virada pó. Provavelmente muitos cariocas e fluminenses sequer sabiam da existência daqueles tesouros, guardados no velho e mal conservado palácio na Quinta da Boa Vista. Talvez porque nem os governos, nem a prefeitura do Rio, nem a diretoria, geralmente indicação política, desse ao Museu o valor que ele tinha. Ficamos sabendo, após o incêndio, que o último presidente da República que lá esteve foi Juscelino Kubitschek, em 1958. O Museu Nacional só era bastante lembrado pelos cupins e pelas múmias que ali repousavam.
Os governantes e os próprios dirigentes da UFRJ, que reduziram, ano a ano, a verba aplicada no Museu, certamente se espelham na média do brasileiro. Visitar o Louvre é chique. Visitar Museu no Brasil é programa para turista estrangeiro ou, eventualmente, para alguns alunos fazerem trabalhos escolares. Então, deixa pra lá. Nas redes sociais, o incêndio do Museu propiciou as mais disparatadas leituras, como essa da BBC “por qué algunos ven en el devastador incendio “una metáfora” de la situación actual del país sudamericano”. A ironia da BBC faz sentido, porque, na visão dos estrangeiros, o Brasil atravessa uma difícil situação política e econômica, com 13 milhões de desempregados. O índice divulgado ontem do crescimento do PIB no 2 º trimestre foi de apenas 0,4%, quase uma miragem. Mergulhado na recessão pelo menos por dois anos, e capengando no último ano, o país não tem tempo nem dinheiro para museus. A cultura dentro do País é menos importante do que se exibir numa Copa do Mundo ou numa Olimpíada com obras faraônicas, que a economia não tinha condições de suportar.
Outros interpretam o incêndio e suas consequências como o epílogo da falência do Rio de Janeiro. Aquele Museu ardendo na noite, para tornar a visão ainda mais chocante, como também cinematográfica, de certa forma é uma imagem icônica não só do Rio, mas do próprio País. Governantes que estão preocupados mais com os cargos e as benesses que eles trarão para suas carreiras e seus bolsos, e menos no que deveriam fazer para melhorar a vida do cidadão e, no caso, preservar um patrimônio valioso.
Um boa pergunta seria: onde estão os intelectuais que ficaram dois anos gritando “Fora Temer” e nunca fizeram qualquer mobilização pelo Museu Nacional. E a diretoria do Museu que certamente apóia movimentos que reivindicam salários e não mobilizou a classe artística, os políticos do Rio tão ciosos em reclamar do governo, quando acabaram com o ministério da Cultura?
Talvez só agora muitos brasileiros que conhecem o Louvre, o British Museum, o Metropolitan Museum of Art, de Nova Iorque, ficaram sabendo que no Brasil havia essa preciosidade bem ali, a poucos minutos do centro do Rio. Não há desculpas para nenhum político do Rio, inclusive para os atuais candidatos que já passaram por cargos públicos naquela cidade, pela omissão. O incêndio no Museu Nacional foi uma falha grave, inclusive da diretoria, como foi a do Instituto Butantã ou do Museu do Amanhã, em São Paulo. O que aconteceu ali na Quinta da Boa Vista foi um crime e certamente a Polícia Federal precisa apurar quem são os culpados pela tragédia. Essa foi uma crise anunciada.
Tesouro perdido
A pressa agora para angariar recursos para a “reconstrução do Museu”, com planos mirabolantes envolvendo os maiores bancos e estatais, recursos que foram reduzidos ao longo do tempo, principalmente nos últimos de dez anos, é apenas um espasmo político ante a comoção do incêndio. Até porque – vamos encarar o incêndio na sua crua realidade, no seu efeito destruidor, e deixar de tentar mascarar o vexame internacional do Brasil – o Museu Nacional, que lá estava instalado, jamais será reconstruído ou recuperado.
Os valores históricos que lá existiam, salvo talvez algumas peças mais resistentes, foram definitivamente perdidos. A maioria delas, principalmente os objetos colecionados há dois séculos e oriundos de todas as partes do mundo, principalmente da África, eram exemplares exclusivos, que só o Brasil tinha.
O acervo do Museu tinha perfil acadêmico e científico, com coleções focadas em paleontologia, antropologia e etnologia biológica. Fósseis, múmias, peças indígenas e livros raros. Menos de 1% do material estava exposto. Segundo a vice-diretora do Museu Nacional, Cristiana Serejo, 90% do acervo em exposição se perdeu. Certamente trata-se da maior tragédia cultural do Brasil, em dois séculos.
O prédio histórico, que já foi palácio de um senhor de escravos e serviu de residência à família imperial portuguesa, de 1808 a 1821; e abrigou a família imperial brasileira de 1822 a 1889, tendo servido a dois imperadores, D. Pedro I e D. Pedro II, pode até ser reconstruído e restaurado. Mas a riqueza histórica que lá repousava – cerca de 20 milhões de peças – tão ciosamente patrocinadas e colecionadas por Dom Pedro II e outros tantos abnegados, durante 200 anos, viraram cinza. Apenas cinza. É o legado que os governantes e os gestores atuais e que, infelizmente, nós todos deixaremos para as gerações futuras
João José Forni é jornalista, é Consultor de Comunicação e autor do livro Gestão de Crises e Comunicação – O que Gestores e Profissionais de Comunicação Precisam saber para Enfrentar Crises Corporativas.
Nota. Artigo publicado no portal Comunicação & Crise, em 05 de setembro de 2018.
Fonte: https://www.comunicacaoecrise.com/site/index.php/artigos/1067-museu-nacional-uma-crise-prevista-no-limite-da-irresponsabilidade
Email do autor: jforni46@gmail.com