Fernando R.Genovés

  1. Nunca diga ‘sempre’ ou ‘capitalismo’

Até agora, eu tenho usado locuções como ‘dinheiro’ ou ‘fortuna’, quando poderia muito bem ter dito ‘capital’. Mas não farei isso, por não serem sinônimos e porque ‘capital’ está sujeito a um doutrinário político e ideológico bastante particular. No presente ensaio, eu uso certas palavras que, salvo por lapso ou erro, eu não uso, ainda que eu as mencione e cite. Assim como o conceito ‘socialismo’ deriva de ‘social’, ‘capitalismo’ provém de ‘capital’, termo já usado desde o século XII, na atividade comercial.

Tom G. Palmer, na introdução do livro La moralidad del capitalismo; 2013, Chile, Fundación para el Progreso[1], coloca o termo em seu contexto.

A palavra ‘capitalismo’ começou a ser usada no século XIX, geralmente em um sentido depreciativo: por exemplo, quando o socialista francês Louis Blanc definiu o termo como “a apropriação do capital por alguns em detrimento de outros”. Karl Marx usou a frase “modo de produção capitalista”, e, foi o seu fervoroso seguidor, Werner Sombart, que popularizou o termo ‘capitalismo’, em seu influente livro de 1912 Der Moderne Kapitalismus.

Por sua vez, o conceito ‘socialismo’ foi estabelecido em oposição ao ‘capitalismo’, destacando o contraste social versus capital, um como alternativo do outro; um sistema projetado para substituir outro sistema. O lanço tem sido levado muito a sério por parte dos que promovem essa antítese, chegando a afetar dezenas de países, e milhões de pessoas, até os dias de hoje; na maioria dos casos, exceto aos versados ​​no ‘materialismo dialético, sem entender o pano de fundo da suposta contradição. ‘A luta final’ abrange todas as frentes, começando pela linguagem, uma vez que são os inimigos da liberdade que encontraram, empunharam e elevaram esses conceitos, entre outros tantos, que compõem o doutrinário do ‘anticapitalismo’.

Diga-me como você fala e eu direi quem você é. Expresse-se como o camarada X e você acabará parecendo o camarada X, sendo um companheiro de linguagem: o primeiro passo para ingressar no clube dos ‘companheiros de viagem’ (poputchik). Cuidado, portanto, no uso da linguagem que cria dependência e favorece a extensão das crenças associadas a elas. George Orwell apontou com penetrante agudeza que a primeira batalha que o totalitarismo precisa vencer para impor-se no mundo, é a batalha da linguagem.

‘Socialismo’ vem da palavra ‘social’. O que há de mágico e encantador no ‘social’ que deslumbra quase todos igualmente? Para mim, esse ‘social’ não significa, afinal, nada além de ‘caro’, ‘oneroso’ e ‘imposto’, um ‘valor agregado’ que todos os cidadãos acabam pagando.

A exaltação do ‘social’ é, em suma, muito cara. Ele tece (‘tecido social’) uma profunda animosidade e um ressentimento agressivo contra o indivíduo e a liberdade, que acaba por esmagá-los. Sem dúvida, tais sentimentos derivam de um estágio anterior ao político:

O ódio ao liberalismo não vem de outra fonte. Porque o liberalismo, antes de ser uma questão mais ou menos política, é uma ideia radical sobre a vida: é acreditar que cada ser humano deve ser livre para cumprir o seu destino individual e intransferível. José Ortega y Gasset, ‘Socialización del hombre’ .

Com o decorrer do tempo, os sentimentos associados a essas palavras, a conotação que elas carregam, o seu impacto nas pessoas, não mudaram substancialmente. Talvez apenas os povos que experimentaram o sistema ‘socialista’ estejam vacinados contra esse flagelo. Muito embora, não na sua totalidade. Na Rússia atual, para citar um caso, a simpatia pelo sistema comunista e pelo passado da União Soviética continua viva em uma parte significativa da população, tanto nos que o conheceram quanto os que receberam informação sobre o mesmo. Nem mesmo a queda do Muro de Berlim e a revelação dos horrores de um sistema tão criminoso e desumano conseguiram enterrar o ‘socialismo’. Se alguma coisa ocorreu, foi exatamente o oposto.

Logo após o anúncio do ‘fim da história’ (Francis Fukuyama) e o triunfo global do ‘capitalismo’, e, especialmente, após a crise econômica desencadeada no verão de 2007, o ‘socialismo’ ganhou a esfera pública de uma forma notória, renascendo de suas cinzas. Até então disfarçado de ‘social-democracia’ (o social sempre colocado à frente), uma versão abrandada do ‘socialismo’ que não questionava a ordem econômica e social ‘capitalista’, em nossos dias, os partidos e partidários do verdadeiro ‘socialismo’ lançaram-se em uma luta sem território e com o rosto exposto, sem se incomodar em aplicar maquilagem de propaganda e ação, mostrando assim o seu verdadeiro rosto desumano.

 

  1. São só palavras

Os proclamas abertamente revolucionários, a pretensão de derrubar o ‘capitalismo’ e dar o definitivo passo a frente, compõem o discurso dominante em qualquer lugar do planeta. A ideologia ‘socialista’ reina não apenas na mídia, nas escolas e nas universidades – ‘no mundo da cultura’ como um todo – mas em toda parte.

Conforme revelam as pesquisas de opinião, entre a população jovem, o espectro do ‘socialismo’ ganha apego e predileção contra a realidade do ‘capitalismo’. Grupos ‘anticapitalistas’ tornaram-se fortes nas ruas, onde se mobilizam e demonstram descaradamente (embora muitas vezes com os rostos mascarados) pela mínima oportunidade. Contra qual ‘capitalismo’ eles lutam

Cerca de 40% da atividade econômica dos Estados Unidos (EUA) passa pelas mãos e pelo controle do governo, o que tem crescido em poder e influência em uma nação que, desde sua fundação, tem sentido e defendido o valor do privado sobre o público, o valor da liberdade, a sujeição do poder político que emana dos respectivos Estados e, acima de tudo, de Washington, a capital do país,. Os gastos federais per capita aumentaram 191% entre 1960 e 2018, de US $ 4.300 para US $ 12.545. O que aconteceu com o estilo de vida americano?

Graças a uma peculiar combinação de economia ‘capitalista’, sob a liderança do Partido Comunista Chinês, a República Popular da China conseguiu se estabelecer como primeira economia mundial, posto que no século passado era ostentado pelos EUA. Como modelo econômico, social e político, os EUA progressivamente se voltaram para o sistema que domina na Europa. Mas qual deles?  ‘Social-democrata’? ‘Capitalismo de Estado’? ‘Capitalismo social’? Como o da Europa ou como o da China?

No momento presente, é somente a partir da fabricada propaganda inimiga da liberdade, ou do descarado cinismo, ou da pura ignorância, pode-se dizer que o ‘capitalismo’ é o modelo dominante da sociedade no mundo: ‘se por ‘capitalismo’ se entende um sistema competição baseado na livre disposição da propriedade privada” (Friedrich A. Hayek, The Road to Serfdom [O caminho da servidão; 1944]). Ou o que restou da sociedade de mercado livre e aberta, baseada na propriedade privada, na divisão de poderes e no Estado mínimo, onde prevalecem os valores do individualismo, da iniciativa e da responsabilidade pessoal. Em resumo, da sociedade de proprietários.

Aqui está o cerne do problema questão, uma questão que é crucial. Bem, o seu objetivo dificilmente pode ser entendido (independentemente da experiência explicativa e da capacidade de comunicação do autor) – a transição da sociedade de proprietários para a comunidade de gerentes –  usando termos que deturpam e confundem as coisas em vez de elucidá-las, ou que denotam uma realidade inexistente, refletindo uma situação em que palavras e ações não coincidem, e na qual a linguagem não é empregada tanto para se comunicar quanto é para persuadir.

‘Capitalismo’ é um conceito que, por mais virtudes que o seu significado estrito contenha (e que não são poucas) e por mais que se explique seu sentido genuíno, a sua conotação e o seu valor estão inevitavelmente associados a más vibrações e a sentimentos negativos. O ‘socialismo’, ao contrário, soa bem, uma coisa ‘social’. O ‘progressivismo’, por sua vez, evoca um horizonte e um ideal de progresso. Quem é o indivíduo corajoso disposto a condenar ‘o social’ e o ‘progresso’?

Os homens nasceram uns para os outros. Instrua ou apoie-os. Marco Aurélio, Meditações

Tudo bem, mas quem tem paciência para explicar aos outros todas e cada uma das palavras que usam, para não ser mal interpretado, ou para continuar aumentando e reforçando, mais do que a cadeia da linguagem, a linguagem encadeada?

Um dia perguntei a uma pessoa com quem tenho confiança para falar, e, que sabe amarrar cadarços, sobre o motivo de ter votado no Partido Socialista em todas as eleições, e ela me respondeu, seriamente, e sem nenhuma piada, que era porque ela é bastante ‘social’ e ‘sociável’, e  gosta de estar com pessoas e não de ficar sozinha …

E o comunismo? Penso que a única coisa correta no comunismo é o nome, a saber: a recreação perversa de um mundo em que tudo é comum, ou seja, ordinário, público, corriqueiro, vulgar, mísero e miserável, inferior, baixo e ruim. Sim, continuarei usando esse termo a partir de agora. Ele se ajusta à realidade.

Nem ‘capitalismo’ nem ‘socialismo’ ou ‘progressivismo’. Como ficamos, então?

 

  1. Socialistas capitalistas e capitalistas socialistas

Existem ‘socialistas capitalistas’. E também ‘castristas’, ‘chavistas’ e ‘anarcossindicalistas’, o ‘socialismo realmente existente’ e um outro pendente de existir: a revolução pendente, uma expressão cunhada pelos trotskistas, aqueles comunistas que não são ‘socialistas’ e tampouco  estalinistas, e, que não são da Primeira Internacional, mas sim da Quarta. Em outras palavras, é uma confusão total.

Existem ‘liberalismo’ apenas, ‘liberalismo clássico’, neoliberalismo’ e ‘anarcocapitalismo’, ‘capitalismo com rosto humano’ e ‘capitalismo de cara dura’  (‘capitalismo de amigos e cupinchas’), ‘capitalismo de Estado’, ‘capitalismo humanista’, ‘capitalismo social’, ‘capitalismo liberal’, entre muitas outras variedades à escolha em um mercado livre…

E existem, ai!, ‘capitalistas socialistas, com ou sem a carteirinha do partido, quer a nível individual quer corporativo. No momento presente, uma notável quantidade da publicidade[2] comercial e das comunicações corporativas (privadas) tirou o seu discurso da doutrina oficial dos inimigos da liberdade e da propriedade privada. Essa conduta oportunista e mesquinha já perdura há tempos e está aumentando. Estamos em um ponto (sem retorno?) no qual é difícil diferenciar entre reportagens publicitárias e propaganda de conteúdo ideológico. Mais do que ‘politicamente corretas’, elas são corretivas: indústrias de laticínios encorajam o animalismo; agências dependentes de entidades bancárias investem em proclamas sobre revolução, ‘compromisso social’ e pedagogia socializante e inclusiva; produtores de bebidas alcoólicas, dão aula de moral e cívica; empresas de energia seguem a corrente dominante com discursos ecologísticos e feministas; empresas de produtos para barbear insultam os homens, cuspindo em suas caras slogans do tipo ‘masculinidade tóxica’ (tais como deixar crescer bigode, cavanhaque e costeletas).

Tudo isso vem ou não à mente. A revolução e o mundo estão de cabeça para baixo. A publicidade transmite publicamente o que a empresa pretende vender: o ano passado, produtos e serviços;  o ano corrente, e também fórmulas e slogans acompanhados de sinais ideológicos, não neutros, mas ‘anticapitalistas’.

Em 23 de agosto de 2011, a agência de notícias Europa Press divulgou a seguinte matéria:

“Várias das maiores fortunas e principais empresários da França, incluindo a bilionária herdeira da L’ Oreal, Liliane Bettencourt, e diretores executivos de multinacionais como Veolia, Danone, Total ou Société Générale, assinaram uma proposta na qual eles solicitam ao governo que estabeleça uma ‘contribuição excepcional’ que arrecada os rendimentos mais altos e, assim, colabore no ‘esforço solidário’ necessário para respaldar o futuro econômico do país galo.

 “Nós, presidentes e diretores de empresas, homens e mulheres de negócios, agentes financeiros, profissionais ou acionistas, pedimos o estabelecimento de uma contribuição especial que afetará os contribuintes franceses mais favorecidos”, expõe uma carta aberta publicada pelo semanário francês Le Nouvel Observateur.

“Somos cônscios de que temos beneficiado plenamente de um modelo francês e de um ambiente europeu com o qual estamos comprometidos e que queremos ajudar a preservar”, assinala a carta aberta, assinada por dezesseis das maiores fortunas e dos principais empresários do país galo.

“Essa contribuição não é uma solução em si mesma, e portanto deve ser parte de um esforço de reforma mais amplo, tanto em termos de despesas quanto de receita”, reconhecem os promotores da proposta.

“Da mesma forma, os signatários da carta enfatizaram que ‘no momento em que o déficit nas contas públicas e as perspectivas de agravamento da dívida do Estado ameaçam o futuro da França e da Europa, no momento em que o governo pede a todos nós um esforço de solidariedade, nos parece necessário contribuir’.”

O complexo de culpa, a auto-imolação, o açoitamento, o oportunismo, o abandono de si próprio, a renúncia ao que lhe corresponde e é seu, atinge os povos do Ocidente em níveis próximos aos dos maiores delírios. O republicanismo engajado de ricos complexados se manifesta na passarela parisiense, conforme temos visto. Que maneira estranha de contribuir ‘socialmente’, apelando à coerção! Não bastaria criar empregos e riqueza através da atividade empresarial? Que maneira curiosa de fazer publicidade! Assim, é anunciada a moda pós-moderna da Benetton e suas antigas mensagens multicoloridas, demagógicas e multiculturalistas.

No entanto, a questão principal é a seguinte: se esses ‘capitalistas’ e ‘socialistas’ querem contribuir e doar dinheiro à sociedade, por que o entregam ao Estado? Por que não fazem doações voluntárias? Por que eles não promovem a filantropia privada? Por que eles não jejuam e ajudam financeiramente as organizações de caridade? Por que eles não recorrem à livre iniciativa, em vez de exigir que todos sejam forçados a comungar com sua fé republicana socializante e seu forçado desapego? Por que eles não consultam um consultor ou gerente tributário mais honesto ao tomar decisões? Eles vão acreditar que todos os ricos estão em sua condição…

Há muitos indivíduos (a maioria) que fizeram fortuna com boas artes, à base de esforços, assumindo riscos, investindo suas economias, hipotecando suas propriedades, sem lisonjear os poderosos ou os políticos, sem trapacear, sem fraudes ou mentiras, e sem adular os poderosos e os políticos. E sem apelações populistas. Por que os contribuintes, ricos ou pobres, devem pagar para os pregadores republicanos à la Mitterrand ou à la  Robespierre?

Em 25 de junho de 2019, ecoando as notícias que cobrem a Europa e todo o planeta, o jornal El Mundo, publicado na Espanha, publica uma crônica com o título ‘Os bilionários dos EUA pedem por ‘questões de ética’ um imposto sobre a riqueza’. Como entrada: ‘O plano isenta de impostos os primeiros 50 milhões de dólares em ativos, mas prevê um imposto de 2% sobre fortunas de mais de 50 milhões, e aumenta a taxa para 3% para aquelas de mais de 1.000 milhões’. Entre os generosos bilionários, o texto cita Abigail Disney, herdeira do império Disney, e George Soros. O senhor Soros é  um ‘capitalista’ ou um ‘socialista’? E o Michael Bloomberg? E o Bill Gates? E a maior parte do ‘mundo da cultura e do espetáculo’, em Hollywood, Nova Iorque ou Paris?

Assim pois, capitalismo? Sim ou não?

“Sim ao capitalismo, mas limitado ao seu papel. O sistema de valores deve ser deixado em aberto para que ninguém tenha sucesso às custas da derrota do resto”. Pascal Bruckner,  no ensaio Misère de la prosperité: La religión marchande et ses ennemis (A miséria da prosperidade: a religião do mercado e seus inimigos; 2002) quando diz ‘sim ao capitalismo’, um ‘sim’ imediatamente rebaixado por um ‘mas’, está realmente dizendo ‘não’. Ou, o que equivale ao mesmo: sim, porém não… Bruckner é um escritor e filósofo francês, geralmente comedido e perspicaz, mas um intelectual que, malgrè lui, na hora de escolher entre nação (política) e mercado (economia) ele opta pelo ‘sistema de valores’ que a nação política contém, em primazia ao mercado que não tem pátria, e que atende apenas a interesses e responde à chamada do dinheiro: oferece prosperidade em troca de gerar miséria. E assim não pode ser. Bruckner não defende de forma alguma uma solução ‘socialista’ para a situação, mas também não deseja entrar no jogo (mercado de ações, empresas, lucros, dinheiro…) do ‘capitalismo’. Deixe-o correr com a sorte…

Então, ‘socialismo’? Sim ou não?

É provavelmente preferível chamar de ‘coletivismo’ os métodos que podem ser usados ​​para uma ampla variedade de propósitos, e considerar o socialismo como uma espécie desse gênero. Friedrich A. Hayek, O caminho da servidão, 1944.

 

  1. Esse falso glamour

A aversão ao ‘capitalismo’ e a ‘popularidade’ do socialismo são produtos da convicção das pessoas ou o efeito do glamour?

Em um ato público realizado há alguns anos em Madri, em defesa da democratização de Cuba, e com a notável presença  de artistas e intelectuais da ‘esquerda política’ (os incluídos e os inclusivos), o escritor Mário Vargas Llosa, porta-voz da reunião, declarou : “Temos de remover esse falso glamour da ditadura cubana”. Bravo! Embora não se saiba se o escritor espanhol nascido no Peru é ‘capitalista’ ou ‘socialista’.

Acima de qualquer outra reflexão, se alguma coisa explica a subsistência do criminoso regime castrista, é o apoio material e ‘moral’ que este recebe do ‘socialismo de todos os partidos’ (F. A. Hayek) em escala planetária. Em outras palavras, a ajuda e suporte dos que ostentam o vermelho. O mesmo vale para outros bastiões da progressivista ‘consciência infeliz’ (Hegel). Juntamente com Gaza, Venezuela, Coreia do Norte e  mais um pingo de redutos, apesar de bastante emblemáticos da ‘resistência’, a ‘esquerda política’ mantém a sua reserva doutrinária particular em pequenos territórios sacrificados pela ‘Causa’; Os territórios maiores sob o comando comunista, como a China, já estão se defendendo sozinhos. A foto de Che Guevara, a echarpe palestina, ou a foice e martelo, ainda servem de senha e contra-senha para identificar os santos (os justos), e, não são exibidos com discrição nas democracias, mas com orgulho, ostentação e insolência.

Hoje, a suástica nazista é prudentemente ilegal, e a negação do Holocausto é geralmente condenada na esfera pública. O mesmo não acontece com os sinais e os slogans totalitários da ‘esquerda’, assim como com a negação do 11 de setembro.

Todavia, o vermelho está raivoso, mamãe, o que será que o vermelho tem… Tem glamour. Um glamour falso que fascina tanto os que o portam quanto os outros, porque tem uma licença para agir impunemente, e, porque cai bem na vista dos outros. Precisamos perguntar o porquê do proceder desinibido daqueles, e da sensibilidade e complacência destes.

A ‘esquerda política’ há muito abandonou a ‘luta dos trabalhadores’ e a ‘libertação do proletariado’ (de fato, os trabalhadores que não são funcionários públicos, geralmente votam em partidos políticos de centro-direita). Mas, eles não renunciaram à ‘luta de classes’: o que mudou são as classes e o significado da luta.

Consequentemente, a ‘Revolução’ foi reduzida, em primeira instância, à ‘revolução cultural’, um ataque que tem mais contracultura e anti-cultura do que da cultura propriamente dita. A sociedade contemporânea, a ‘sociedade do espetáculo’ (Guy Debord) e do escândalo, alimenta-se da indignação e da representação teatral, do culto à imagem e à pose (postura), do exibicionismo e dos selfies, de cosmética e da maquilagem, do sentimentalismo e da empatia (palavra da moda trapaceira, em oferta especial); da intoxicação (fake news, agitprog, manipulação) e do encantamento. A sociedade, agora globalizada e midiática, tornou-se um tanto idiotizada pela mídia e pela propaganda. Uma sociedade dessas características adquire a aparência de um complexo grupal, mas na realidade é bastante simples, bastante vulnerável e maleável, e fácil de ser dominada, dirigida, e encarrilhada. Tudo o que é preciso é remover as baixas paixões de seus membros, ativar mecanismos básicos de estímulos-respostas, oferecer o que deseja (depois de prescrever os desejos), como lisonjeá-la e entretê-la, para tê-la entregue.

A sociedade, ou a coletividade, não contem ideias próprias, isto é, claras e bem pensadas. Contém apenas tópicos, e existe com base nesses tópicos. Com isso, não quero dizer que sejam ideias falsas, podem ser ideias magníficas [note a ironia do filósofo]; o que digo é que, desde que sejam vigências ou opiniões ou tópicos estabelecidos, as suas possíveis qualidades egrégias não agem; o que age é simplesmente a pressão mecânica sobre todos os indivíduos, a sua desalmada coerção. Não deixa de ter interesse o fato de que, na linguagem mais vulgar, sejam chamadas ‘as opiniões dominantes’. José Ortega e Gasset, El hombre e la gente (1949-50)

Talvez a tarefa de desencantar os encantados não dependa tanto da chamada ‘batalha de ideias’ quanto de remover a cor e a doçura do discurso das ilusões causadoras de encantamento. Remover do discurso a maquilagem é uma maneira eficaz de desarmá-lo.

 

  1. Laboratórios e observatórios em universidades: que lugares!

A guerra mundial que está sendo travada em defesa da liberdade faz parte de uma longa batalha, que nunca acaba. Assim como a riqueza é gerada, a liberdade deve ser conquistada todos os dias. Não se tratando estritamente de guerra ideológica, cheguei à convicção de que não é correto concebê-la, também, em termos de ‘batalha de ideias’, como acreditávamos há algum tempo, a saber: a ativação de um mecanismo de ação e reação, no qual a ação de um lado provoca uma reação do outro lado, num processo que cresce em violência, numa encruzilhada de indignações e embustes, como um duelo de forças. E tudo porque quem não se move não aparece na foto. Eis aqui, precisamente, a mãe de todas as batalhas: a imagem. E geralmente ganha por aquele que bate mais forte, se desgasta menos e domina com mais astúcia os aparatos da inteligência (emocional), da comunicação e da aparência, bem como da publicidade e da propaganda.

Na perspectiva do sociólogo Max Weber, o desenvolvimento da humanidade passou por diferentes fases, nas quais se observa uma direção geral e universal, verificável especialmente na sociedade ocidental, e atendendo a esses dois elementos principais: o crescimento da racionalização, unido ao processo de desencantamento da população; e, a retirada gradual do sagrado e das crenças mágicas na hora de interpretar a realidade e se ajustar à mesma. A derivação disso tudo não é, como poder-se-ia inferir, o triunfo da racionalidade, mas a extensão do niilismo.

Diferentemente daquilo que o Iluminismo do século XVIII e seus herdeiros intelectuais imaginavam, a sociedade de massa contemporânea, não cresceu no pensamento racional e no espírito crítico, em decorrência da universalização do letramento e da educação, da leitura de livros, e de uma maior injeção orçamentária em cultura. Tal mito, tal encantamento, e tal fraude, ainda não foram totalmente desmascarados; mostra momento e validade, mas não a verdade. O oposto aconteceu. O sonho da ‘razão’ levou ao estabelecimento de uma sociedade mórbida e acomodada, amiga do simples, do rápido e do instantâneo, distanciada tanto da convicção quanto da responsabilidade. E isso que eu aponto é dado a aplicar-se indistintamente às massas, às ‘elites’ e aos gestores.

Milhões de diplomados, licenciados e PhDs tem saído das universidades, mas apenas um número seleto deles, relacionado à atividade científica e ao âmbito empresarial, tem produzido conhecimento competente e prático. Foi dentro de seus muros que o portuário básico da Revolução contra a liberdade foi forjado. As universidades continuam a ser incubadoras de gerações de acadêmicos e intelectuais que intentam imitar e substituir os tradicionais templos do mito e do oráculo. Os seus departamentos emitem e disseminam as respostas e as previsões que servem como uma orientação geral básica para a conduta da sociedade, não tanto diretamente mas por meios intermediários, e pelo trabalho midiático e pedagógico de intérpretes e disseminadores. Como um laboratório (estendido ao longo do tempo para todo o sistema educacional), ele experimenta e testa os produtos processados para serem posteriormente propagados em escala geral, através de muitos meios de comunicação e de intermediários. Anteriormente, os governos dos países ‘capitalistas’ eram dominados por advogados; hoje, são dominados pelos professores de universidades e dos high schools.

A ‘batalha de ideias’ ocorre em um ambiente cada vez mais sujeito a um pensamento unificado: progressivismo, feminismo, multiculturalismo, pós-pósmodernismo. E possui o seu espaço natural em uma área liderada por professores e pelos ‘comitês de especialistas’. Transferi-lo para a sociedade é especialmente benéfico para ampliar o efeito do ‘terrorismo dos laboratórios’ (Ortega y Gasset) e a engenharia social incentivada por esses funcionários da intelligentsia, os quais, pelo pouco que se aplicam, construirão seções aqui e acolá, e as mais variadas subseções; esse procedimento também recebe o nome  de ‘extensão universitária’.

A farsa começa a operar no momento em que o mesmo conceito de ‘ideias’ é aplicado para nomear as criações e as recriações que emergem dos tubos de ensaio do campus, quando essas não passam de slogans, dogmas, fantasias, slogans, proclamas e bobagens, que só servem para governar um ‘universo frankensteiniano’. Dos meios de comunicação às editoras, dos produtores de cinema e de teatros às produções operáticas, das livrarias aos espaços públicos, tudo o que diz respeito ao ‘mundo da cultura’ é considerado propriedade do ‘marxismo cultural’; ou quem sabe dos inimigos da propriedade privada (a menos que se trate de propriedade sua, ou da ‘propriedade intelectual’, para enganar e assombrar).

Os objetivos declarados nem sempre objetam na hora de ingressar na lista dos ‘companheiros de viagem’. E aqui está o começo do fim da cultura, em sua acepção clássica e restrita, para transformar-se no apogeu da publicidade, do privilégio, da repetição, da radiodifusão panfletária e de sexto sentido, da divulgação de mensagens transgressoras,  da moda: o reino do glamour.

Na sociedade contemporânea, o fator-chave do retrocesso da sociedade de proprietários e da liberdade não reside, segundo afirmou Ortega y Gasset há um século, no protagonismo, na preponderância e na influência do homem-massa, mas nas chamadas ‘elites’ (termo a ser adicionado à lista daqueles que foram esvaziados de significado e transvalorizados).

 

  1. Livrarias e Jornalismo

Eu poderia pormenorizar vários exemplos do acima apontado. Mas vou me concentrar em dois: livrarias e jornalismo.

Diariamente, milhares de empresas e trabalhadores autônomos são obrigados a encerrar as suas atividades, na maior parte dos casos, devido ao inferno fiscal imposto pelos Governos. Algumas vozes, em baixo volume, mostram contrariedade e desgosto por essa situação. No entanto, eu não tenho ciência de muitos eventos de massa exigindo dar um basta nesse tipo de situação. Por outro lado, o anúncio do fechamento de uma livraria desperta uma imediata e vociferante solidariedade em milhares de pessoas (sejam elas amantes verdadeiros da leitura ou não) e, desta vez, dezenas de lamentações lacrimosas podem ser citadas, apelos públicos incentivando a assinar cartas de protesto, a concentrar-se nas portas da empresa que já deixou de existir, ou a organizar angariações de fundos de auxílio ao livreiro, que por uma questão de ação política, se transforma em uma vítima singular e, ao mesmo tempo, no ‘herói’ daqueles que afirmam ser seus defensores, quando não os seus representantes.

Fiquem de olho, pois aqui existem de sobra, esclarecimentos, justificativas ou sentimentos de cada qual, a propósito dos estabelecimentos cujas paredes estão cobertas por estantes de livros (em papel, exclusivamente; fala-se o livro eletrônico em público apenas para difamá-lo, e não há falta de quem assegure que o eBook e a Amazon!, são, no fundo, o motivo pelo qual tantas livrarias penduram a placa ‘À venda’. Embora esse assunto seja relevante, não é hora de analisar se, entre os paladinos do livro de papel, a primazia é ter livros ou ler livros (quem quer ficar bem na foto, quando esta for aparecer na imprensa, escolhe ficar em frente à uma estante, e não em frente da cristaleira, a vitrine da sala de estar). Em resumo: por que uma livraria, mas não uma chapelaria? Suponho que seja uma consequência da chamada ‘exceção cultural’ ou do glamour. Se as persianas estão permanentemente abaixadas em uma lanchonete, eu não me interesso por descobrir as suas especialidades e variedades, ou se a omelete de batata que serviam tinha cebola ou não. Porque não é essa a questão.

Extra! Extra! Leia tudo sobre isso! O jornalismo. Me comove ouvir um jovem estudante ou trainee (se não for imobilizado pela inspeção do Ministério do Trabalho) que confessa ter vocação profissional para ser um engenheiro industrial, um eletricista ou um alfaiate. No entanto, eu mudo de estação no meu res cogitans quando um rapazola que está terminando o ensino médio proclama que o seu sonho é ser jornalista, para o qual, naturalmente, ele planeja fazer o curso de jornalismo (Faculdade de Comunicação). Existem muitos jornalistas iniciantes cuja maior ilusão é tornar-se em uma espécie de Carl Bernstein ou Bob Woodward[3], ser um repórter provocador e sem fronteiras, fazer parte da redação de um jornal ‘sério e de prestígio’ como o The New York Times, o The Washington Post, o The Guardian, ou O País.

O cinema, a televisão e a própria imprensa tem cimentado narrativas a propósito da profissão do jornalista, descrevendo-a como épica e o lírica, mito e lenda, fabulação e  sonho, o que, por sua vez, tem deslumbrado e encantado milhares de jovens (e alguns que não são tão jovens). Em resumo, porque eu não fui à hemeroteca em busca de mais dados: hoje já não existe a distinção entre a imprensa preto e branca e a imprensa amarela[4]. A imprensa, assim como toda a galáxia de Gutenberg, perdeu uma boa parte do seu sentido com o surgimento do ciberespaço, da produção digital, da internet e das redes sociais. Mas, não perdeu o seu significado e a sua função. As novas tecnologias permitem montar, com poucos meios materiais e capital humano, uma emissora de rádio e até de vídeo-televisão, uma revista, um jornal; permitem ainda que um comunicador freelance com uma conta no Patreon e noutras plataformas de patrocínio, crie um cenário alternativo virtual para a informação e a comunicação. Não nego que haja muitas pessoas bem-intencionadas e sinceras por detrás dessas iniciativas, mas também não ignoro que o objetivo da maioria delas é, em última análise, ser recrutado por um veículo de mídia ‘convencional’. Enquanto isso, eles reproduzem e imitam os caminhos estabelecidos nesse antigo ofício, por motivação própria e por instinto. Assim, é preciso perseguir as notícias, capturá-las, e fazer com que os leitores as acompanhem e acreditem nelas. E por fim, como levar a sério a veracidade e a autenticidade de um trabalho realizado em um ambiente virtual, e que, pela sua natureza própria, refrata a notícia ao invés de reporta-la?

‘Virtual’, de acordo com o RAE[5]:

“Do lat. mediev. virtualis, e este do lat. virtus ‘poder, faculdade’, ‘força’, ‘virtude’.

  1. adj. Que tem virtude para produzir um efeito, embora não o produz no presente, frequentemente em oposição ao real ou atual.
  2. adj. Implícito, tácito.
  3. adj. Phys. Que tem uma existência aparente ao invés de real.”

No momento presente, todos os jornais ficam amarelados mais cedo ou mais tarde: aquelas folhas de papel hiper-reciclado, que impregnam as mãos com tinta e celulose, que criam fungos, chegam a ser perigosas se usadas para embrulhar anchovas. Fico alarmado em ouvir que alguém morre de vontade de pegar um diário vegetal, de devorar um suplemento cultural, ou de inalar intensamente esses cheiros de mofo junto com a essência de lignina. Não importa a justificativa de que essas sejam expressões menos próximas da realidade do que de metáforas.

As faculdades de jornalismo (ou de ‘Comunicação’) licenciam a cada ano centenas de graduados famintos pelo papel que compõe as manchetes e as reportagens rompedoras. A maior parte desses graduados é uma moçada bastante ignorante em ortografia e em redação, mas que adora os adjetivos e a atmosfera de camaradagem da redação de um jornal. Como se isso não bastasse, os seus antigos professores os teriam familiarizado com os textos de Truman Capote e Noam Chomsky, bem como com os shows de televisão da CNN. Eu tampouco duvido que as gerações progressistas que saem do centro educacional com o diploma nas mão não tenham ouvido falar de Azorín[6], de Júlio Camba[7] e de Camilo José Cela[8]; e, se por acaso o nome de Francisco Umbral[9] lhes parece familiar, é porque ele costumava aparecer na televisão para falar do seu último livro.

Por que nos enganar se os jornais de nossos dias trazem mais mentiras e meias-verdades do que verdades contrastadas com atos, e, são marcadamente tendenciosas. O viés da profissão jornalística é estrondosamente ‘esquerdista’ e quase exclusivamente, progressivista inclusivo. Ah, o jornalismo! Não há sonho maior entre os aprendizes de ‘gazetas’  (e também escritores em busca de suplemento!) que escrever para / em algum dos diários fetiche, citados anteriormente. Não há nada comparável a ser visto sentado no café Gijón, em Madri, diante de um café expresso e o jornal aberto de par a ímpar, para sentir-se estupendo, passar por intelectual, e ser observado e admirado. E o que dirá se se trata da varanda (onde você pode fumar, até o momento) do café de Flore em Paris. É puro glamour fou.

 

  1. A ‘batalha de ideias’ e a guerra do glamour

Não nego a necessidade da batalha de ideias na hora de enfrentar, neutralizar e capturar a pressão intelectual e emocional das ‘opiniões dominantes’ na sociedade contemporânea. Eu faço observar que deveriam ficar circunscritas ao local de onde surgiram: universidades, centros culturais e nas outras mais tramas do saber. E isso no mais otimista dos pressupostos, porque, como é do domínio público, a participação de conferencistas e comparecentes relapsos à doutrina oficial não é comumente aceita em eventos ou debates nas faculdades, universidades, ou reuniões de ex-alunos. E assim sendo, com tal unanimidade ao estilo búlgaro[10], pouco debate pode haver. No maior número de casos, os atos que eles assistem são flagrados, boicotados ou simplesmente cancelados por aqueles que se consideram donos absolutos dos templos do saber. Nesta área reservada, a expressão ‘batalha de ideias’ tem um significado literal e restrito. Caso a ação dos manifestantes fosse ‘malvista’, ou repudiada socialmente, eles não a fariam. Pelo contrário, é comum (e eu até diria ser o principal objetivo do número) eles gravarem a indignação com a câmera de vídeo do celular para depois postá-la no YouTube e nas redes sociais.

Enquanto eu argumento que exportar a ‘batalha de ideias’ é inútil e até fútil, de imediato me vem à mente um aforismo cristalino:

Uma afeição não pode ser reprimida ou suprimida, exceto por meio de outra afeição oposta e mais forte do que aquela a ser reprimida. Baruch (Benedito) de Spinoza, Ética, Parte IV. Proposição VII

As paixões não recuam face às razões. Uma condição, como a tristeza, só pode ser combatida no momento em que a alegria cresce em um indivíduo, com o resultado de que esta desloca aquela. É uma crença vã (e com aparência de tautologia) que uma pessoa chegue à razão pela força de razões, quando está possuída, intoxicada ou sob o efeito de um encantamento, do qual, comumente, não está ciente, ou quando a esperança e o medo a dominam… Ou, quando é proveitoso viver na ilusão.

Sugiro, em vez disso, libertar o indivíduo dos porta-bandeiras, dos hábitos viciantes, das confianças adquiridas, das obediências cegas ou impostas; forneça-lhe um antídoto que limpe a sua mente de conteúdos tóxicos, a sua boca de palavras impuras, e o seu comportamento das más ações. Em resumo, que ele tome gosto pela liberdade e não pela submissão, que substitua o ‘princípio do prazer’ e o merengue do glamour pelo ‘princípio da realidade’ (Sigmund Freud), pelo senso de responsabilidade e pela decência. Se é que o indivíduo os aceita e se lhe convém…

Sob o manto do politicamente correto e da doutrina oficial, o indivíduo sente-se protegido contra contradições, mudanças de opinião e de governo, birras, e mudanças nas modas culturais. Fora dessas, certamente faz muito frio e vive-se na intempérie. Lá dentro cheira a uma manjedoura, mas se está agasalhado e aquecido. Pois é…

Um bocejo ventilado e uma lufada de ar fresco podem ser mais curativos para um asmático ou alguém sufocado por slogans do que uma estatística reveladora ou um argumento trabalhado com convicção e bom senso. Conseguir que um indivíduo intoxicado de manifestos, agindo de acordo com um roteiro preestabelecido, experimente perturbação ou vergonha quando pego em flagrante é mais eficaz do que zombar do bandido (que, por despeito, reforçará a sua conduta tola). Eu garanto que é mais importante parar de divulgar (ou retuitar) as tolices do outro e os desabafos pessoais do que ficar atrelado à zanga do colega ao rufião; a mesma coisa vale para os sermões dos influencers youtubers, os paladinos e generais de divisão na ‘batalha de ideias’.

Considerar que o comportamento servil, de seguir a corrente e ser o porta-voz do seu mestre, não faz dele um herói mas uma carne de rebanho, é mais provável que seja irritante e embaraçoso para o indivíduo tocado pelo encantamento, do que por meio de múltiplas  recomendações e reconvenções sobre o seu estado delirante. Ver crescer a autoestima e a força da dignidade, penso eu,  faz mais bem a alguém do que ver alguém suar enquanto justifica o mal.

Quem apenas segue o glamour tem cara de sobra, mas isso é porque o glamour tem abundantes perfis.

 

  1. Sobre a leveza do ser e o parecer ‘progressista’

Eu não trago para estas páginas uma poção mágica ou um bálsamo que cura tudo, porque eu não sou nem mágico nem alquimista, e tampouco um médico de cabeceira. Entretanto, a moléstia que eu aponto é profunda.

Acontece que uma notória maioria dos cidadãos se colocaram tacitamente na margem esquerda da política; isto quer dizer: antepõe-se a igualdade à liberdade; o público ao privado; o coletivismo ao individualismo; a solidariedade emocional ao egoísmo racional; a redistribuição de riqueza ao enriquecimento pessoal; a ação do governo à iniciativa privada; eles queixam dos impostos mas não acreditam que o objetivo de eliminá-los seja justo; consideram mais do que aceitáveis a previdência social supremacista e o ruinoso sistema piramidal de aposentadorias ​​(a maior parte dos espanhóis o coloca entre os melhores do mundo), sem sequer conhecer e muito menos se interessar pelos fundos de capitalização pessoal (contas em fundos de pensões; a chamada mochila austríaca), como uma alternativa mais viável e justa.

Na realidade, o interesse e a preocupação pela aparência física e para parecer legal faz com que as crenças e os postulados comprometidos evoluam na cidadania em um nível semelhante ao dos estabelecimentos dedicados à beleza e ao fitness, tais como nail bars,  academias que oferecem aulas de Pilates, ioga, e dança (zumba, salsa, reggaeton), clínicas de tatuagens, e as diversas intervenções das redes sociais. Poderíamos dizer que essas compartilham uma tendência semelhante. A opinião pública se move irremediavelmente para o ritmo dos modismos e das forças coletivas, mas causa consternação ver a facilidade e a velocidade com que os fundamentos básicos (tradicionais) da sociedade são abalados, o que mostra que eles não estavam seguros e tampouco eram verdadeiramente assumidos.

A respeito das Eleições Gerais realizadas na Espanha em 2019, a maioria dos espanhóis votou nas candidaturas da ‘esquerda política’, vários milhões ao agrupamento comunista Unidas-Podemos, com laços ideológicos e financeiros que o vinculam à Venezuela chavista e ao Irã islamista. Como resultado, surgiu um governo de coalizão ‘social-comunista’, que ameaça (e já está a trabalhar nisso) desmantelar a sociedade de proprietários. Entretanto, a partir desses dados, não se deve concluir que na Espanha, aqueles que votaram e trouxeram tal Executivo ao poder são todos comunistas.

Independentemente da ação do governo em diferentes gabinetes socialistas, o Partido Socialista dos Trabalhadores Espanhóis (PSOE) mantém, em todo o território nacional, um terreno eleitoral que não cai abaixo dos 25% dos eleitores. Não parece tampouco razoável deduzir desses números que a grande maioria dos espanhóis deseja para a Espanha um modelo de vida como o dos soviéticos ou o da Cuba castrista.

Movem-se numa tendência política como quem está apaixonado pela moda jovem, sem perceber que existem ‘roteiros de viagens’ e viagens de aventuras que não são necessariamente de ida e volta. O retorno à sanidade e a uma sociedade bem ordenada será lento, caro e bastante doloroso.

 

  1. Quando a publicidade é uma pechincha

Diz-se que a populosa e desnorteada massa social forma esse magma disforme chamado ‘maioria silenciosa’. Estritamente falando, mais do que ‘silenciosa’, caberia qualificá-la de ventríloqua, pois apesar de que fale (ou aparente falar), ela diz muito pouco; ela tagarela e balbucia, visceralmente, em falsete, ou através da boca dos outros. Apenas uma pequena proporção dessa população estrategicamente localizada, agita e faz barulho, o suficiente para marcar a pauta e o território, para apontar os ritos e as rotas que os demais se limitam a seguir. É um absurdo, insisto eu, inferir de tudo isso que milhões de espanhóis seguem os preceitos ‘comunistas’ e os protocolos ‘progressistas’ com conhecimento de causa, com convicção e por princípios, por lealdade ao legado marxista-leninista. O que eles fazem é seguir a corrente.

Muito mais do que ser ‘de esquerda’, as pessoas desejam evitar, acima de tudo e a qualquer custo, aparecer em público como sendo ‘de direita’, e serem rotuladas como ‘ultra’ ou ‘fascista’. Devido a essa evitação, elas são capazes de seguir alguém, fechar a boca e ser depenadas, em troca de não se sentirem excluídas do grupo e segregadas. A sensação de estar agasalhado e socializado, em companhia, entre ‘amigos’ e ‘seguidores’, de ser bem-visto, antepõe-se ao agir livremente, trabalhar e ganhar dinheiro. Porque as pessoas percebem, com medo e tremor, que é pior ficar sozinho do que mal acompanhado, e que o orgulho do pobre é melhor do que a solidão e o penar de um Sr. Scrooge.

É dito e repetido sem cessar que a ‘esquerda política’ goza de uma ‘superioridade moral’ que a torna blindada e intocável em todas as frentes. A fama lhe sai, de fato, grátis, já que geralmente são os seus oponentes na arena política que ficam repetindo essa mantra, a ponto de acabar acreditando nela; em boa medida, isso é uma desculpa ou uma evasiva culpabilização disfarçada de lamento; explica porque é tão difícil refutar e interromper a presumida ‘hegemonia’ cultural e receptividade social.

França, no rebuliço da década de 1960. O filósofo existencialista Jean-Paul Sartre inspira e assina o ‘Manifesto dos 121 contra a Guerra na Argélia’, dirigido à opinião pública (e, em particular, ao exército), pedindo a insubordinação e a deserção das tropas. O governo do general De Gaulle avalia a possibilidade de prender o filósofo insurgente. A dúvida, no entanto, é resolvida logo após com esta frase: ‘Não se coloca Voltaire na cadeia’.

Da margem direita frequentemente ouvimos que a ‘esquerda política’ é uma mestra na arte da publicidade. Dito isto, um já se coloca, de imediato e por iniciativa própria, no papel de aluno, de ouvinte ou de estagiário. E com a intenção de reforçar tão ousada revelação, frequentemente acrescenta-se que na primeira metade do desventurado século XX, a publicidade serviu de base e de inspiração ao aparato propagandista de Goebbels e dos nazistas (quando, na realidade, esse foi uma réplica do que foi anteriormente empregado pelo KGB soviético). Aqui temos um novo ato fracassado: o sensível e meticuloso comentarista  acaba de reconhecer que, implicitamente, a referência comunista não ofende ou assusta da mesma forma que a referência nazista. Com atitudes como essas, as salvaguardas e as armaduras saem baratas para os meios de comunicação comunistas e o apparatchik da propaganda.

                                                                                                                                  

O presente artigo foi extraído do livro Dinero S.L De la sociedad de proprietaries  la comunidad de gestores (Dinheiro S.A. Da sociedade de proprietário à comunidade de gestores; 2020) de Fernando R. Genovés. Kindle Edition. Tradução para o português e notas de rodapé de JPO.

Fernando R. Genovés (Valência, 1955) é escritor, ensaísta, crítico literário e de cinema. Doutor em Filosofia pela Universidade de Valência, Espanha, em 1999 ele recebeu o Prêmio Juan Gil-Albert de ensaios. É autor de inúmeros artigos em jornais e revistas especializadas, como Libertad Digital, Las Provincias, ABC Cultural, Claves de Razón Prática, Debats, Revista de Occidente, e El Catoblepas. Além do livro acima referido, o seu último, ele publicou: Marco Aurelio. Una vida contenida (2012), La ilusión de la empatía (2013), Dos veces bueno. Breviario de aforismos y apuntamientos (2014), El alma de las ciudades. Relatos de viajes y estancias (2015), La riqueza de la libertad. Librepensamientos (2016), Aforo ilimitado. Asientos libres y otras liberalidades (2017), La hora moral. Para una ética del presente (2019).

 

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Notas do editor

[1] Palmer, Tom G., editor. The morality of capitalism: what your professors won’t tell you. © 2011, Students For Liberty y Atlas Economic Research Foundation. Jameson Books, Inc.

[2] O emprego das palavras ‘publicidade’ e ‘propaganda’ como sinônimos uma da outra é semanticamente incorreto. Embora a publicidade e a propaganda tenham um denominador comum na divulgação, a publicidade é um tipo de divulgação caracterizada por ser politicamente neutra, enquanto que a propaganda é um tipo de divulgação carregada de sinais ideológicos.

[3] Dois jovens repórteres que, em 1972, revelaram o escândalo de Watergate.

[4] O termo imprensa amarela foi empregado nos Estados Unidos para designar os  jornais que tinham uma linha editorial baseada no sensacionalismo e abusavam de manchetes em letras garrafais, grandes ilustrações e exploração de dramas pessoais. No português brasileiro, assim como no francês, o termo equivalente é ‘imprensa marrom’.

[5] Dicionário de espanhol da Real Academia Espanhola.

[6] Pseudônimo de José Martínez Ruiz, (1873-1967), foi um escritor espanhol pertencente à geração de 98, que cultivava todos os gêneros literários: o romance, o ensaio, crônica jornalística e crítica literária e, em menor grau, teatro.

[7] Pseudônimo de Villanueva de Arosa (1882 – 1962), foi um escritor e jornalista espanhol que durante a Guerra Civil expressou suas simpatia pelo grupo franquista.

[8] Nome completo, Camilo José Cela Trulock (1916 –  2002, foi um escritor espanhol que notabilizou-se pelas narrativas do período logo após a Guerra Civil.

[9] Pseudônimo de Francisco Alejandro Pérez Martínez, (1932 – 2007) foi um poeta, jornalista, romancista, biógrafo e ensaísta espanhol.

[10] O autor refere-se ao fechamento, em 2018, da Universidade Centro-Europeia (CEU) fundada em Budapeste em 1991 pelo financista George Soros, com o propósito de ajudar os países da Europa Central e Leste na transição do comunismo de sociedades fechadas para a democracia de sociedades abertas, e inspirada naquela do filósofo Karl Popper (1902-1994), a quem Soros conheceu quando era aluno da London School of Economics (LSE). A CEU é reconhecida nos Estados Unidos e as suas aulas são ministradas em inglês. Por essas e outras razões, atraía alunos dos mais diversos países da Europa e do resto do mundo, embora também irritasse os grupos nacionalistas de direita da Bulgária. Durante muito tempo a CEU sobreviveu às críticas do grupo de mídia de Delyan Peevski, que domina a cerca de 80 por cento da imprensa naquele país, o qual é conhecido pelos seus ataques a organizações cívicas e indivíduos que defendem os valores liberais. A decisão do governo da Bulgária de não mais reconhecer os diplomas da CEU foi a causa do encerramento de suas atividades em Budapeste. Em 2019, a CEU iniciou o processo de transferir-se para deu novo campus em Viena. Em Janeiro de 2020, George Soros anunciou no Fórum Econômico Mundial, em Davos, que irá criar uma rede mundial de universidades a partir do modelo da CEU, e com o mesmo objetivo desta, de incentivar o combate ao autoritarismo.

Fernando R. Genovés

  1. Never say ‘always’ or ‘capitalism’

So far, I have used phrases like ‘money’ or ‘fortune’, when I might as well have said ‘capital’. But I will not do that, because they are not synonymous and ‘capital’ is subject to a very particular political and ideological doctrinaire. In this essay, I use certain words that, save for lapse or error, I do not use, even though I mention and quote them. Just as the concept ‘socialism’ derives from the voice ‘social’, ‘capitalism’ comes from ‘capital’, a term already used since the 12th century, in commercial activity.

Tom G. Palmer, in the introduction to the book The morality of capitalism: what your professors won’t tell you (© 2011, Students For Liberty y Atlas Economic Research Foundation. Jameson Books, Inc.; La moralidad del capitalismo, 2013, Chile, Fundación para el Progreso), puts the term in its context.

The word ‘capitalism’ started to be used in the 19th century, generally in a derogatory sense: for example, when the French socialist Louis Blanc defined the term as “the appropriation of capital by some to the detriment of others”. Karl Marx used the phrase “capitalist mode of production”, and it was his fervent follower, Werner Sombart, who popularized the term ‘capitalism’ in his influential 1912 book Der Moderne Kapitalismus.

In turn, the concept of ‘socialism’ was established in opposition to that of ‘capitalism’, highlighting the social versus the capital, one as an alternative to the other; a system designed to replace another system. The haul has been taken very seriously by those who promote this antithesis, even affecting dozens of countries, and millions of people, until today; in most cases, except those versed in the dialectical materialism, without understanding the background of the alleged contradiction. ‘The final struggle’ covers all fronts, starting with language, since the enemies of freedom are the ones who find, wield and elevate these concepts, among many others, that make up the doctrine of ‘anti-capitalism’.

Tell me how you speak and I will tell you who you are. Express yourself as Comrade X and you will end up looking like Comrade X, being a companion of language: the first step to joining the club of ‘fellow travellers’ (poputchik). Be careful, therefore, in the use of language that creates dependency and favours the extension of the beliefs associated with them. George Orwell pointed out with penetrating acumen that the first battle that totalitarianism must win in order to impose itself on the world, is the battle of language.

‘Socialism’ comes from the word ‘social’. What is magical and enchanting about ‘social’ that dazzles almost everyone equally? For me, this ‘social’ means, after all, nothing but ‘expensive’, ‘onerous’ and ‘tax’, an ‘added value that all citizens end up paying.

The exaltation of ‘social’ is, in short, very expensive. It weaves (‘social fabric’) a profound animosity and an aggressive resentment against the individual and liberty which ends up crushing them. Such sentiments undoubtedly stem from a stage that is earlier than the political one:

The hatred of liberalism does not come from any other source. Because liberalism, before being a more or less political issue, is a radical idea about life: it is to believe that each human being must be free to fulfil his individual and non-transferable destiny. José Ortega y Gasset, ‘Socialización del hombre’.

Over time, the feelings associated with those words, the connotation they carry, their impact on people, have not changed substantially. Perhaps only people who have experienced the ‘socialist’ system are vaccinated against this scourge. Although not in its entirety. In today’s Russia, to cite a case, sympathy for the communist system and the Soviet Union’s past remains alive in a significant part of the population, from those who knew it and those who received information about it. Not even the fall of the Berlin Wall and the revelation of the horrors of such a criminal and inhuman system failed to bury ‘socialism’. If anything, it was just the opposite.

Shortly after the announcement of the ‘end of history’(Francis Fukuyama) and the global triumph of ‘capitalism’, and, especially, after the economic crisis unleashed in the summer of 2007, ‘socialism’ gained a public notoriety, rising from its ashes. Disguised as ‘social democracy’ (the social always placed at the forefront) until then, a softened version of ‘socialism’ that did not question the ‘capitalist’ economic and social order, in our day, the parties and supporters of true ‘socialism’ launched themselves into a struggle without territory and with their faces exposed, without bothering to put on the makeup of propaganda and action, thus showing their true inhuman face.

 

  1. It’s only words

Openly revolutionary proclamations, the plea to overthrow ‘capitalism’ and to take the definitive step forward, make up the dominant discourse anywhere on the planet. The ‘socialist’ ideology reigns not only in the media, in schools and universities – ‘the world of culture’ as a whole –  but everywhere.

As opinion polls reveal, among the young population, the spectrum of ‘socialism’ gains attachment and predilection against the reality of ‘capitalism’. ‘Anti-capitalist’ groups have become strong on the streets, where they mobilize and demonstrate shamelessly (though often with masked faces) at the slightest opportunity. Against which ‘capitalism’ do they fight…?

About 40% of the economic activity in the United States of America (USA) passes through the hands and the control of the government, which has grown in power and influence in a nation that, since its foundation, has understood and defended the value of the private over the public, the value of freedom, the subjection of political power emanating from the respective states and, above all, from Washington, the country’s capital. Federal spending per capita increased 191% between 1960 and 2018, from $ 4,300 to $ 12,545. What happened to the American way of life?

The People’s Republic of China, thanks to a peculiar combination, in practice, of a ‘capitalist’ economy, under the leadership of the Chinese Communist Party, has managed to establish itself as the first world economy, a rank that the USA held until the last century. As an economic, social and political model, the USA has progressively turned to the system that dominates in Europe. But which one?  ‘Social democrat’? ‘State capitalism’? ‘Social capitalism’? Like Europe or like China?

At the present moment, it is only from the false propaganda against freedom, or from a shameless cynicism, or pure ignorance, that one can say that ‘capitalism’ is the dominant model of society in the world: “if by ‘capitalism’ is understood as a system competence based on the free disposition of private property” (Friedrich A. Hayek, The Road to Serfdom, 1944). Or what remains of the free and open market society, supported on private property, the division of powers and the minimum state, where the values ​​of individualism, enterprise and personal responsibility prevail. In short, from the society of owners.

Here is the heart of the matter, a crucial issue. Well, its purpose can hardly be understood (regardless of the author’s ability to communicate and his explaining expertise) – the transition from the society of owners to the community of managers – using terms that distort and confuse things rather than elucidating them, or that denote a non-existent reality, reflecting a situation in which words and actions do not coincide, in which language is not so much used to communicate as to persuade.

‘Capitalism’ is a concept that, no matter how many virtues its strict meaning contains (and which are not few) and how much its genuine meaning is explained, its meaning and value are inevitably associated with bad vibes and negative feelings. ‘Socialism’, on the contrary, sounds good, the ‘social’ thing. ‘Progressivism’, in turn, evokes a horizon and an ideal of progress. Who is the brave individual willing to condemn ‘the social’ and ‘progress’?

All men were made for one another: either then teach them better or bear with them. Marcus Aurellius, Meditations

Okay, but who has the patience to explain to others each and every one of the words they use, in order not to be misinterpreted, or to continue to increase and reinforce, more than the language chain, the chained language?

One day, I asked a person with whom I have the confidence to speak, and who knows how to tie shoelaces, about why she voted for the Socialist Party in all elections, and she answered me, seriously and without a hint of a joke, that it was because she is very ‘social ‘and’ sociable ‘, and enjoys being with people rather than being alone …

And communism? I think that the only correct thing in communism is the name, namely: the perverse recreation of a world in which everything is common, that is, ordinary, public, current, vulgar, miser and miserable, inferior, low and bad. Yes, I will continue to use that term from now on. It adjusts to reality.

Neither ‘capitalism’ nor ‘socialism’ or ‘progressivism’. What are we left with then?

 

  1. Capitalists socialists and socialist capitalists

There are ‘capitalist socialists’. And there are also ‘Castroists’, ‘Chavists’ and ‘Anarco-syndicalists’, a ‘truly existing socialism’ and another pending to exist: the pending revolution, an expression coined by Trotskyists, those communists who are not ‘socialists’ from the First International, but from the Fourth, and rather less, Stalinists. In other words, it’s a helter-skelter.

There is ‘liberalism’ by itself, ‘classic liberalism’, ‘neoliberalism’, and ‘anarcho-capitalism’, ‘capitalism with a human face’ and hard face capitalism (‘capitalism of friends and minions’), ‘state capitalism’, ‘humanist capitalism’, ‘social capitalism’, ‘liberal capitalism’, among many other varieties to choose from in a free market …

And, ouch, there are ‘socialist-capitalists’, with or without the party card, both at individual and corporate levels. At the present time, a notable amount of commercial advertising and corporate (private) communications has made its speech from the official doctrine of the enemies of freedom and private property. This opportunistic and petty conduct has been around for a long time and is increasing. We are at a point (with no return?) when it has become hard to differentiate it from the script of advertising and of propaganda with ideological content. More than ‘politically correct’, they are corrective: dairy industries encourage animalism; organizations which are dependent on banks invest in proclamations about revolution, the ‘social commitment’ and the pedagogy that is socializing and inclusive; manufacturers of alcoholic beverage teach public morality; energy companies follow the mainstream with speeches on ecologism and feminism; companies that sell masculine shaving products insult men by spitting ‘toxic masculinity’ slogans into their faces (such as growing a moustache, a goatee or sideburns).

All of this comes to mind or not. The revolution and the world are upside down. Advertising conveys publicly what the company intends to sell: yesteryear, products and services; the current year, and also, formulas and slogans accompanied by ideological signs, not neutral, but ‘anti-capitalist’.

On August 23, 2011, the Europa Press news agency released the following story:

“Several of France’s biggest fortunes and top entrepreneurs, including L’Oréal’s billionaire heiress Liliane Bettencourt, and CEOs of multinationals like Veolia, Danone, Total or Société Générale, have signed a proposal in which they ask the government to establish an ‘exceptional contribution’ imposed to the highest incomes, as a way to collaborate in the ‘solidarity effort’ necessary to support the economic future of the Gallic country.

”We, presidents and directors of companies, men and women in business, financial agents, professionals or shareholders, call for the establishment of a special contribution that will affect the most favoured French taxpayers”, explains an open letter published by the French weekly Le Nouvel Observateur.

“We are aware that we have fully benefited from a French model and a European environment to which we are committed and want to help to preserve”, points out the open letter, signed by sixteen of the biggest fortunes and the main entrepreneurs in the Gallic country.

“This contribution is not a solution in itself, and therefore must be part of a broader effort of reform, both in terms of expenditure and revenue”, the promoters of the proposal recognize.

Likewise, the signatories of the letter emphasized that “at a time when the deficit in public accounts and the prospects for the worsening of the State’s debt threaten the future of France and Europe, at a time when the government asks us all for a solidarity effort, it seems necessary to contribute”.”

Guilt complex, self-immolation, flogging, opportunism, abandoning oneself, renouncing that which is yours and corresponds to you, reach the peoples of the West at levels close to the greatest of all the delusions. The engaged republicanism of rich people with complexes is manifested on the Parisian catwalk, as we have seen. What a strange way to contribute ‘socially’, this appealing to coercion! Wouldn’t it be enough to create jobs and wealth through business enterprises? What a curious way to generate publicity! Thus, Benetton’s postmodern fashion and its old multi-coloured messages, demagogic and multiculturalist, are announced.

Yet, the main question is: if these ‘capitalists’ and ‘socialists’ want to contribute and donate money to society, why don’t they hand it over to the state? Why don’t they make voluntary donations? Why don’t they promote private philanthropy? Why don’t they help charitable organizations financially? Why don’t they resort to free enterprise instead of demanding that everyone is compelled to partake with their socializing republican faith and their forced detachment? Why don’t they seek a more honest tax consultant or manager when making decisions? Perhaps they believe that all rich people are like them…

There are many individuals (the majority) whose fortune was made through good enterprises, such as industriousness, taking risks, investing their savings, mortgaging their properties, respecting free competition, without cheating, without frauds or lies, and without flattering the powerful and politicians. And without playing to the gallery. Why should the taxpayers, rich or poor, pay for the republican preachers à la Mitterrand or à la Robespierre?

Echoing a piece of news that runs through Europe and the entire planet, on June 25, 2019, the Spanish newspaper El Mundo published an article entitled “US billionaires ask for ‘a tax on wealth’ for ethical reasons”. The entry point: “The plan exempts the first $ 50 million in assets from tax, but provides for a 2% fortune tax of more than 50 million, and raises the rate to 3% for those over 1,000 million”. Among the generous billionaires, the article cites Abigail Disney, heir to the Disney empire, and George Soros. Is Mr. Soros a ‘capitalist’ or a ‘socialist’? And Michael Bloomberg? And Bill Gates? And most of the ‘world of culture and entertainment’ in Hollywood, New York or Paris?

So, ‘capitalism’? Yes or no?

“Yes to capitalism, but limited to its role. It is needed that the value system is kept open so that nobody succeeds at the expense of the defeat of the rest”. Pascal Bruckner, in the essay The misery of prosperity: the religion of the market and its enemies (Misère de la prosperité: La religion marchande et ses ennemis; 2002) states that when one says ‘yes to capitalism’, but a ‘yes’ that is immediately demoted by a ‘but’, what he is really trying to say is ‘no’. Or something that amounts to the same: yes, but no… Bruckner is a French writer and philosopher, who is generally reasonable and perceptive, but an intellectual nevertheless, in spite of himself. When choosing between nation (politics) and market (economy) he opts for the ‘value system’ that the political nation contains, ahead of the market, which has no motherland, and which only serves interests and answers the call of money: it offers prosperity in exchange for generating misery. And that can’t be. Bruckner does not in any way advocate a ‘socialist’ solution to the situation, but neither he wishes to join the game (stock market, companies, profits, money…) of ‘capitalism’. Let it take its course…

So ‘socialism’? Yes or no?

It is probably preferable to call ‘collectivism’ the methods that can be used for a wide variety of purposes and to consider socialism as a species of this genus. Friedrich A. Hayek, The Road to Serfdom, 1944.

 

  1. This false glamour

Is the aversion to ‘capitalism’ and the ‘popularity’ of socialism a product of people’s conviction or the effect of glamour?

In a public act held years in Madrid some ago, in defence of the democratization of Cuba, and with the notable presence of artists and intellectuals from the ‘political left’ (the included and the inclusive), the writer Mario Vargas Llosa, spokesman for the meeting, declared: “We have to remove this false glamour from the Cuban dictatorship”. Bravo! Although it is not known whether the Peruvian-born Spanish writer is a ‘capitalist’ or a ‘socialist’.

If there is anything that explains the survival of the criminal Castroist regime, it is, above any other considerations, the material and ‘moral’ support it receives from ‘socialists of all parties’ (F. A. Hayek) on a planetary scale. In other words, the help and the backing from those who flaunt the red. The same goes for other bastions of the progressivist ‘unhappy consciousness’ (Hegel). Together with Gaza, Venezuela, North Korea and a few other strongholds, although very emblematic of ‘resistance’, the ‘political left’ maintains its particular doctrinal stronghold in small territories sacrificed for the ‘Cause’; the larger territories under the communist rule, such as China, are already defending themselves alone. The Che Guevara photo, the Palestinian scarf, or the sickle and hammer, still serve as signs and countersigns to identify the saint (the righteous); and far from being displayed discretely in democracies, but rather with pride, ostentation and insolence.

Today, the Nazi swastika is prudently illegal, and Holocaust denial is generally condemned in the public sphere. The same is not true of the left-wing totalitarian signs and slogans, as well as the denial of  9/11.

Nevertheless, the red is anger, mummy, what is it that the red has… It has a glamor. A false glamour that fascinates both the ones who wear it and the others, because it has a license to act with impunity and because it is becoming. What about the uninhibited behaviour of the former, and the sensitivity and complacency of the latter, we must ask.

The ‘political left’ has long since abandoned the ‘workers struggle’ and the ‘liberation of the proletariat’ (in fact, workers other than civil servants, generally vote for political parties on the centre-right). But, they did not renounce the ‘class struggle’: what has changed are the classes and the meaning of struggle.

Consequently, the ‘Revolution’ has been reduced, in the first instance, to the ‘cultural revolution’, an attack that has more counterculture and anti-culture than culture itself. Contemporary society, the ‘society of the spectacle’(Guy Débord) and of scandals, feeds on indignation and theatrical representation, poise and the cult of image, exhibitionism and selfies, cosmetics and makeup, sentimentalism and empathy (a cheating buzzword, on special offer); on intoxication (fake news, agitprop, manipulation) and enchantment. Society, now globalized and media-savvy, has become somewhat idiotic by the media and the advertising industry. Such a society acquires the appearance of a complex group, but in reality is very simple, vulnerable, malleable, and easily dominated, driven and controlled. All that is needed is to remove the low passions from its members, by activating simple stimulus-response mechanisms, offering what it wants (after prescribing the wants), with flattery and entertainment.

Society, or collectivity, do not contain ideas as such, that is, those which are clear and well thought out. It contains only platitudes and exists from those platitudes. With this, I do not mean that they are false ideas, they could be magnificent ideas [note the philosopher’s irony]; what I’m saying is that, although the established opinions or topics are valid, such possible distinct qualities do not act; what acts is simply the mechanical pressure exerted over all individuals, their soulless coercion. It is not without interest that, in the most ordinary language, they are called ‘the leading opinions’. José Ortega and Gasset, Man and people (1949-50)

Perhaps the task of breaking the spell of the enchanted ones does not depend as much on the so-called ‘battle of ideas’ as it does on removing the colour and the sweetness from the discourse of enchanting illusions. Removing its makeup is an effective way to disarm it.

 

  1. Laboratories and observatories in universities: what places!

The world war that is being waged in defence of liberty is part of a long fight, one which never ends. Just as wealth needs to be created, liberty must be earned on a daily basis. Since the war in defence of liberty is not, strictly speaking, an ideological war, I came to the conviction that it also would not be correct to conceive it in terms of the ‘battle of ideas’, as we believed for some time, that is: the activation of an action-reaction mechanism in which an action on one side causes a reaction on the other side, in a process that grows in violence, at the crossroads of indignations and trickery, like a duel of forces. All because he who doesn’t move doesn’t appear on the photo. Behold here, precisely, the mother of all battles: the image. It is usually won by the whoever hits harder, wears out less, and dominates with greater cunning the apparatus of (emotional) intelligence, communication and appearance, publicity and propaganda.

In the perspective of the sociologist Max Weber, the development of humanity has gone through different phases, in which a general and universal direction, especially verifiable in Western society, complying with these two main elements: the growth of rationalization, together with the process of disenchantment of population; and the gradual withdrawal of sacred and magical beliefs when interpreting and conforming to reality. The derivation of all this is not, as one could infer, the triumph of rationality, but the extension of nihilism.

Unlike what the 18th century Enlightenment and its intellectual heirs imagined, contemporary mass society, did not grow in rational thought and critical spirit, as a result of the universalization of literacy and education, of reading books and the greater budgetary injection into the culture. Such a myth, such an enchantment, and such a fraud, have not yet been fully unmasked; it shows momentum and validity, but not the truth. The opposite has happened. The dream of ‘Reason’ has led to the establishment of a morbid and accommodating society, friendly to the simple, the fast and the instantaneous, and distanced from both conviction and responsibility. And this which I point out applies to crowds, ‘elites’ and managers, without distinction.

Millions of diploma-holders, graduates, and PhDs have emerged from universities, and only a select number of them, linked to the areas of science and business, have produced knowledge that is authoritative and practical. It was within their walls that the basic outline of the  Revolution against freedom was forged. Universities are still the hotbeds of generations of academics and intellectuals who try to imitate and replace the traditional temples of myths and oracles. Its departments issue and disseminate the responses and forecasts that serve as a basic general guideline for society’s conduct, not so much directly but through an intermediary mechanism involving the pedagogical and the media-driven work of interpreters and disseminators. Like a laboratory (eventually spread to the entire educational system), they experiment and test processed products to be subsequently propagated on a general scale, through a variety of media and intermediaries. Previously, the governments of  ‘capitalist’ countries were dominated by lawyers; today, they are dominated by university and high school teachers.

The ‘battle of ideas’ takes place in an environment that is increasingly subject to a unified thought: progressivism, feminism, multiculturalism, post-postmodernism. And its natural space is an area led by professors and ‘expert committees’. Transferring it to the heart of society is especially beneficial to amplify the effect of ‘laboratory terrorism’(Ortega y Gasset) and the social engineering encouraged by those officials of the intelligentsia, who, for the little they apply themselves, they are able to build sections here and there, and the most varied subsections; this procedure also receives the title of ‘university extension’.

The farce begins to operate at the moment when the same concept of ‘ideas’ is applied to designate the creations and recreations emerged from the campus test tubes, which are nothing more than slogans, dogmas, fantasies, mottos, catchphrase and nonsense, which serves only to govern a ‘Frankenstein universe’. From the media to publishers, from film and theatre producers to operatic productions, from bookstores to public spaces, everything that concerns the ‘world of culture’ is considered the property of ‘cultural Marxism’; or perhaps of the enemies of private property (but not to their own property, or to ‘intellectual property’, to dispel and deceive).

The stated objectives do not always object when it comes to joining the list of ‘travel companions’. And here is the beginning of the end of culture, in its classic and restricted sense, to become the apogee of advertising, privilege, repetition, pamphleteering and sixth-sense broadcasting, the dissemination of transgressive messages, of fashion: the kingdom of glamour.

In contemporary society, the key factor in the fall back of the society of owners and liberty does not consist, as Ortega y Gasset stated a century ago, in the ascendancy, the preponderance and the influence of the mass-man, but in the so-called ‘elites’ (term to be added to the list of emptied of meaning and transvalued).

 

  1. Bookstores & Journalism

I could cite in detail several examples of the above. I will focus on two: bookstores and journalism.

Every day, thousands of business and self-employed workers are forced to close their activities, in most cases due to the fiscal hell imposed by Governments. Some voices, in low volume, show their annoyance and disgust for this situation. However, I am not aware of many crowd gathering events demanding its curbing. The announcement of the closing of a bookstore arouses prompt and vociferous solidarity on thousands of people (whether they are true lovers of reading or not), and, in this instance, one could cite dozens of tearful lamentations, appeals to the public to sign letters of protest, to gather in front of the business that has ceased to exist, or to organize fundraisings in aid of the bookseller, who by the political action, is converted into a singular victim and, at the same time, in the ‘hero’ of those who claim to be his defenders, if not his proxies.

Eyes open, for there are here plenty of clarifications, justifications or feelings from each one, regarding the establishments with wall to wall bookshelves full of books (although paper books only; about the electronic book, one only speaks publically to vilify it, and there is no shortage of people who assure that the eBook and Amazon!, are, ultimately, the reason why now have the ‘For Sale’ is now hung at the doors of so many bookstores). Although this topic is relevant, this is not the place to analyse what comes first to the paladins of the paper book, ‘having’ books’ or ‘reading’ books (it suffices to say that anyone who wishes to look good in a photo for the press, would choose to stand in front of a bookcase, rather than in front of the crystal cabinet, the lounge’s showcase). In short: why a bookshop, and why not a millinery? I suppose that it is a consequence of the so-called ‘cultural exception’ also called the glamour. If the blinds in a café are permanently lowered, I am not compelled to check their specialities and how good they are, for instance, if the potato tortilla they serve has onions or not. For this is not the question.

Extra! Extra! Read all about it! Journalism. I’m touched to hear a young student or an apprentice (if not immobilized by inspection by the Ministry of Labour) who confesses that he has a professional calling to become an industrial engineer, an electrician or a tailor. However, I change stations in my res cogitans when a lad about to finish secondary school states that his dream is to become a journalist, for which, of course, he plans to study journalism (Faculty of Communications; School of Media and Communication, etc.). There are many novice journalists whose biggest illusion is to become another Carl Bernstein or Bob Woodward, or to be an aggressive and borderless reporter, or to be part of the Newsroom of a ‘serious and prestigious’ newspaper such as The New York Times, The Washington Post, The Guardian, or El País.

Cinema, television and the press have crystallized narratives concerning the profession of journalism, describing it as epic and lyric, mythical and legendary, fabulous and fanciful, which, in turn, have dazzled and bewitched thousands of young (and not so young) people. Since I didn’t go to the newspaper archive to look for more data, I’ll put it succinctly: nowadays, the old distinction between the black and white press and the yellow press has disappeared. The surge of cyberspace, digital production, the internet and social networks has caused the press (and the entire galaxy of Gutenberg) to lose a great deal of its sense, although not its significance and function. These new technologies allow one to set up, with little material resources and human capital, a broadcaster for a radio station and even for video-television, a magazine, a newspaper; not to mention the alternative virtual information and communication space that a freelance communicator can achieve with a Patreon account or access to other supporting platforms. I don’t deny that there are many sincere and well-intentioned people behind these initiatives, but I also do not ignore that the purpose of most of them is, in the final analysis, is to be recruited by a ‘conventional’ media vehicle. In the meantime, they reproduce and imitate the pathways established in this ancient craft, by their own motivations and by instinct. Thus, one has to chase the news, capture them, and make the readers follow and believe in them. And finally, how can a work that is carried out in a virtual environment that, by its very own nature, refracts the news rather than reports them, can be taken seriously for its truthfulness and authenticity?

‘Virtual’, according to the RAE (Spanish Royal Academy):

“From Middle Age Latin virtualis, and this from lat. virtus ‘power, faculty’, ‘strength’, ‘virtue’.

  1. adj. That which has virtue to produce an effect, although it does not produce it at present, often in opposition to the real or actual.
  2. adj. Implicit, tacit.
  3. adj. Phys. That has an apparent rather than real existence.”

On the present moment, every newspaper turns yellow sooner or later: those sheets of over-recycled paper, which impregnate the hands with ink and pulp and fosters fungi, and which are dangerous even to be used to wrap anchovies. I am alarmed to hear that someone dies to get a vegetable diary, to devour a cultural supplement or to inhale intensely those musty smells and the essence of lignin. It matters not the justification that these are expressions less close to reality than to metaphors.

Each year, the schools of journalism (or ‘Communication’) license hundreds of graduates who are hungry for paper and for writing striking headlines and reports. Most of these young graduates are quite ignorant in spelling and composition, although they love adjectives and the atmosphere of camaraderie at the newspaper’s newsroom. As if this weren’t enough, their former professors would have familiarized them with the writings of Truman Capote and Noam Chomsky, as well as with the CNN television scripts. I don’t doubt that the progressive generations that have emerged from the educational centres with their diplomas haven’t heard of Azorín, Júlio Camba and Camilo José Cela; and if by chance the name of Francisco Umbral seems familiar to them, it is because he used to appear on television to talk about his latest book.

If today’s newspapers are markedly biased and they print more lies and half-truths than truths that have been fact-checked, why do we deceive ourselves? The bias of the journalistic profession is loudly ‘leftist’, and almost exclusively punctuated with inclusivity progressivism. Ah, journalism! There is no greater dream among trainee journalists (and writers in search of a supplement!) than to write for one of the fetish diaries, above mentioned, or, if that is not possible, to scribble in them. There is nothing comparable to be seen at Café Gijón, in Madrid, in front of an espresso and with newspaper fully opened, to feel awesome, to pass as an intellectual, and to be seen and admired. And what wouldn’t one say about being seen on the veranda (where one can smoke, up to the moment) of Café de Flore in Paris. It’s pure glamour fou.

 

  1. The ‘battle of ideas’ and the war of glamour

I do not deny the need for a battle of ideas at the time one has to confront, neutralize and apprehend the intellectual and emotional pressure of the ‘leading opinions’ in contemporary society. I point out that they should concentrate, if anything, on the place where they came from: universities, cultural centres and other learning meshes. And this is a most optimistic assumption, since it is common knowledge that unorthodox speakers and attendees have been habitually barred from debates or similar events held in universities, colleges, or alumni reunions. And therefore, with such Bulgarian-style unanimity, there can be little debate. The events where the unorthodox are invited to speak are frequently busted, boycotted or simply cancelled by those who consider themselves to be the absolute owners of the temples of knowledge. In this reserved area, the expression ‘battle of ideas’ does have a restricted and literal meaning. If the disrupters actions were socially repudiated or seen as ‘malicious’, they would not do them. But what commonly happens is the opposite (and I would go on to say that causing outrage it is the main purpose of the gathering) for they use their cell phone’s video camera to record their actions so that they can be posted on social media and on YouTube.

I argue that exporting the ‘battle of ideas’ is useless and even futile, and immediately a crystal clear aphorism comes to mind:

Affection cannot be suppressed or suppressed, except by means of an opposite affection and stronger than that to be suppressed. Baruch de Spinoza, Ethics, Part IV. Proposition VII

Passions do not recede in the face of reasons. A condition, such as sadness, can only be counteracted when joy grows in an individual, with the result that the later displaces the former. It is a frivolous belief (and a tautology) that a person comes to reason by virtue of reasons, when he is possessed, intoxicated or under the effect of a bewitchment, of which, he is not normally, aware, or when hope and fear dominate him… Or, when living in an illusion is beneficial.

I suggest that it is better to free the individual from flag-bearers, addictive habits, secured trust, blind or imposed obedience; to provide the individual with an antidote that cleanses his mind of toxic contents, his mouth of impure words, and his behaviour of bad actions. In short, that he develops a taste for freedom rather than submission, that he substitutes the ‘pleasure principle’ and the merengue of glamour for the ‘reality principle’ (Sigmund Freud), the sense of responsibility, and decency. If he can accept these and these suit him…

Under the cloak of the orthodox doctrine and the political correctness, the individual feels protected from contradictions, changes in government and in opinion, in whims, and in cultural fashions. Outside, it is certainly very cold and one would be exposed to the elements. Inside, it smells like a manager, but it’s protected and warm. That’s it then…

Fresh air and a yawn in the wind can be more curative for an asthmatic or someone who happens to be chocked by slogans than a revealing statistic or an argument intertwined with certainty and good sense. To get an individual who is intoxicated with manifestos and who acts according to a pre-established script, to experience embarrassment or shame when caught in the act, is more effective than poking fun of the fool (who would reinforce his foolish conduct out of spite). I guarantee that it is more effective to stop spreading (or retweeting) other people ’s nonsense and personal outbursts than to stay put accompanying the colleague’s anger at the ruffian, as well as the sermons of YouTuber influencers, those knights and major-generals in the ‘battle of ideas’.

Considering that the servile behaviour, the following of the current, and being the spokesman of one’s master, makes the meat of the flock rather than heroes, is more likely to be irritating and embarrassing to the individual touched by the spell, than by way of multiple points and counterpoints regarding his delusional state. I reckon that seeing the growth of self-esteem and dignity does more good to a person than seeing him sweating while justifying evil.

He who just chases of glamour appears so very faced, but that’s because glamour has countless profiles.

 

  1. About the lightness of being and the ‘progressivist’ look

I do not bring to these pages a magic potion or a balm that cures everything, because I am neither a magician nor an alchemist, or even a bedside doctor. Nevertheless, the malady which I identify is insidious.

It turns out that a noted majority of citizens have tacitly placed themselves on the left bank of politics; what this means is: placing equality ahead of freedom; the public ahead of the private; collectivism ahead of individualism; emotional solidarity ahead of rational egoism; the redistribution of wealth ahead of personal enrichment; government action ahead of private initiatives; people complain about taxes, but do not believe to be fair the objective of eliminating them; they consider the [Spanish] supremacist social security and its ruinous pyramidal systems of pension to be more than acceptable (most Spaniards considers them to be among the best in the world), without even knowing or having any interest on personal capitalization funds (Individual Retirement Accounts; the so-called Austrian backpack), which are a fairer and more feasible alternative.

In reality, the interest and the concern for physical appearance and to look cool to others in terms of beliefs and committed postulates, evolve amid the citizenry at the same level as to those establishments dedicated to beauty and wellbeing, such as nail bars, gyms that offer classes in fitness, Pilates, yoga, and dance (Zumba, salsa, and reggaeton), tattoo parlours, and the various social media interventions. We could say that these share a similar trend. Public opinion moves irremediably to the pace of the fads and of the collective forces, but it causes dismay to see the ease and speed with which the basic (traditional) foundations of society are shaken, which shows that they were neither safe nor properly assumed.

Regarding the General Elections that were held in Spain in 2019, the majority of Spaniards voted for the candidacies of the ‘political left’, with several million votes going to the communist group Unidas-Podemos, whose ideological and financial ties connect it to Chavist Venezuela and Islamist Iran. As a result, a ‘social-communist’ coalition government has emerged, which threatens (and it is already working on it) to dismantle the society of owners. From these data, one should not conclude that those who voted and brought such an executive to power in Spain, are all communists.

Regardless of the government’s action in different socialist offices, the Spanish Socialist Party of Workers (PSOE) maintains, throughout the national territory, an electoral terrain that does not drop below 25% of voters. It also doesn’t seem reasonable to deduce from these figures that the vast majority of Spaniards want for Spain a model of life like that of the Soviets or the Castroist Cuba.

People move in a political trend as someone who is passionate about youth fashion, without realizing that the ‘travel guides’ offers certain adventure trips that are one way only. The return to sanity and to a well-ordered society will be slow, expensive and very painful.

 

  1. When propaganda is a bargain

Someone has said that the bewildered social masses form this amorphous magma called ‘the silent majority’. However, strictly speaking, rather ‘silent’, one could describe it as a ventriloquist, for the simple fact that it speaks (or pretends to speak) but says very little; it chatters and babbles, viscerally, in falsetto, or through the mouth of others. It is only a small proportion of this population, strategically positioned, that agitates and makes noise, although sufficiently enough to mark the agenda and the territory, to point out the rites and the routes which the others simply follow. It is an absurd thing, I insist, to infer from it all that millions of Spaniards follow the ‘communist’ precepts and the ‘progressivist’ protocols knowingly, and with conviction and principles, out of loyalty to the Marxist-Leninist legacy. What they do is to follow the current.

More than being ‘left-wing’, people want to avoid, above all and at all costs, appearing in public as being ‘right-wing’, or being labelled an ‘ultra’ or a ‘fascist’. This avoidance makes them amenable to follow anyone, to shut their mouths and be plucked, in exchange for not feeling excluded from the group, segregated. The sensation of being bundle up and socialized, accompanied, among ‘friends’ and ‘followers’, and being well-regarded, is placed ahead of acting freely, working and earning money. For they realize, with fear and trembling, that it is worse to be alone than unaccompanied, and that the pride of the poor is better than the loneliness and grief of a Mr Scrooge.

It is said and repeated over and over, that the ‘political left’ enjoys a ‘moral superiority’ that makes it secure and impervious on all fronts. Fame comes, in fact, free of charge to the ‘political left’, since it is usually their very opponents in the political arena the ones who repeat this mantra in unison, to the point that they end up believing in it; in good measure, this is an excuse or a pang of evasive guilt disguised as a lament; it explains why it is so difficult to challenge the ‘political left’ and to stop its presumed cultural ‘hegemony’ and social receptivity.

France, in the rustle and bustle of the 1960s. The existentialist philosopher Jean-Paul Sartre inspires and signs the ‘Manifesto of the 121 against the Algerian War’, aimed at influencing the public opinion (and the army, in particular), calling for the troops insubordination and defection. The government of General de Gaulle is considering whether or not to arrest the insurgent philosopher. The doubt, however, is soon resolved with this sentence: “One does not put Voltaire in jail”.

We often hear from the right margin that the ‘political left’ is a master in the art of publicity. Such a statement immediately places people, by their personal initiative, in the roles of pupil, listener or trainee. And with the intent of reinforcing such a bold revelation, it is usually added that this art of publicity inspired and served the propaganda machine of Goebbels and the Nazis, in the first half of the unfortunate 20th century (even though, on reality, it was a replica of the methodology previously employed by the Soviet KGB). Here we have a new failed act: the sensitive and fastidious commentator has only just recognized, implicitly, that the communist reference does not offend or scare off in the same way that the Nazi one does. With attitudes as these, the safeguarding and the shielding come cheap for the communist communication and propaganda apparatchik.

                                                                                                                                   

This article was extracted from the book Dinero S.L De la sociedad de proprietaries a la comunidad de gestores (Money Inc. From the society of owners to the community of managers; 2020) by Fernando R. Genovés. Kindle Edition. Translated by JPO.

Fernando R. Genovés (Valencia,  Spain, 1955) is a writer, essayist, literary and film critic. With a PhD in Philosophy from the University of Valencia, Spain, in 1999 he received the Juan Gil-Albert Essay Award. He is the author of numerous articles in magazines such as Libertad Digital, Las Provincias, ABC Cultural, Claves de Razón Práctica, Debats, Revista de Occidente, and El Catoblepas. Dinero S.L De la sociedad de proprietaries a la comunidad de gestores is his latest book. His other books are: Marco Aurelio. Una vida contenida (2012), La ilusión de la empatía (2013), Dos veces bueno. Breviario de aforismos y apuntamientos (2014), El alma de las ciudades. Relatos de viajes y estancias (2015), La riqueza de la libertad. Librepensamientos (2016), Aforo ilimitado. Asientos libres y otras liberalidades (2017), La hora moral. Para una ética del presente (2019).

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Human character is ambivalent by nature and by nurture, and this ambivalence is reflected in almost everything that man does. Nietzsche identified this ambivalence in art, through the concepts of Appolonian and Dyonisian art, the first appealing to logic, prudence and purity, and the second to emotions and instincts. Psychologists recognize that people often fall in one of the two clusters of values. One very common representation of human ambivalence is the different judgements of historical persons, while the capacity to judge oneself is another. This edition of PortVitoria has essays on three historical individuals who were judged incorrectly by public opinion: Sigmund Freud (1856-1939), Louis Agassiz (1807-1873) and the Marquis of Pombal (1699-1782). As Wilfried McClay suggests in his article on Freud, he was vilified for about forty years, but that a fresh look into his legacy revealed him as an endowed and original social philosopher. In my essay on the Marquis of Pombal, I try to show that for over a century he was reputed as a power craze tyrant, until a fresh look on his life revealed his great intelligence and statesmanship in guiding Portugal in the aftermath of the Lisbon earthquake of 1755. Michelle Raji’s article on Agassiz, a Swiss biologist and geologist who in 1832 became a university professor first at Neuchâtel, Switzerland, and in 1847 of Harvard, when he gained notoriety for his method of observing and analysing fishes, deals specifically with an expedition he made to Brazil from 1865 to 1868. As Raji points out, Agassiz was a ‘sensational figure in his day’, loved by many of his colleagues, although one of the students who accompanied him to Brazil spotted his biases and was disgusted by them. The student in question was no other than William James (1842-1910), the future founder of pragmatism. A fourth character in this edition is the Mexican poet, thinker and a polymath Octavio Paz (1914-1998), a man I consider the most brilliant mind that came of Latin America, but who is sadly underappreciated among the speakers of Spanish and Portuguese.

It is easy to make mistakes in judging the character of other people; it is easy to ignore the deserving and to put the undeserving on pedestals. However, the problems that arise from our mistakes in judging others are now much greater, since the advent of the digital age and the availability of social media make everyone a potential judge of character, deeds and reputations. As early as 2013 Bruce Schneider, a technologist in safety, raised the alarm regarding the recrudescence of the court of public opinion since the advent of social media, in an article published in Wired,  here republished in Portuguese. To Schneider, the court of public opinion is about reputational justice, when the arguments of each party are measured in relation to reputation, and the end result is not justice but the loss of reputation. Reputation is also an important theme in the essay by Fernando Genovés, which is an excerpt from his latest book Dinero S.L De la sociedad de proprietaries a la comunidad de gestores, or Money Inc. (From the society of owners to the community of managers, Kindle edition. 2020). In this book, Genovés shows that in the existing conflict between the left and the right, the left wins not because it is the better alternative but because it has a kind of glamour that attracts people to it. As he points out, people don’t go for substance but for images, which is why it makes no difference that the glamour they fall for is false. Reading Genovés book reminded me how universities have become cohortative to the cult of image and false glamour. It inspired me to write an essay on the history of teaching and the universities, which I hope will serve as food for thought on the future of middle and higher education, especially in my native Brazil.

On a final note, when I created PortVitoria as the magazine of the Iberian culture, back in 2010, what I had in mind was well-informed scholarly articles that could incentivize reflection and discussion. This is obviously a disadvantage in a world that highly addicted to soundbites and images. The reader of PortVitoria is an individual who is well-educated but never takes his education for granted, habitually reflects about things that matter, and enjoys face to face conversation with others.  If this is you, and you would like PortVitoria to continue, you can help by putting a link to it in your site, or by simply spreading the word of mouth about it.

Joaquina Pires-O’Brien

July 2020

Joaquina Pires-O’Brien

O ensino formal do Ocidente tem suas raízes na ‘paideia’ (tradução literal: ‘educação da criança’), o sistema de educação e formação ética que surgiu na antiguidade clássica da Grécia, e que se espalhou para o mundo helênico[i], e deste, para o mundo romano. O objetivo da paideia era formar um cidadão[ii] perfeito e completo, capaz de liderar e ser liderado e desempenhar um papel positivo na sociedade. As meninas gregas eram excluídas da paideia, pois, embora também fossem consideradas  cidadãs, a sua cidadania era incompleta, visto que não tinham o direito de votar, e consequentemente, participar diretamente na polis. Os professores, chamados ‘paidagōgos’, ensinavam a leitura e a escrita, atletismo, música, e boas maneiras.

Em Roma, a educação era feita através do ensino em casa por tutores contratados, o que era comum nas famílias mais abastadas, assim como através de escolas básicas, as Ludi (de ludus literarius), para meninos de 7 a 14 anos de idade. Os Ludi eram bastante simples, e, no geral, consistiam em salas de aula improvisadas atrás de lojas, comumente separadas por uma simples cortina. O período de estudo era de um dia inteiro, com uma pausa para o almoço. As crianças trabalhavam no ábaco para aprender matemática básica, e aprendiam o latim através de ditados. Os alunos escreviam em tábulas de madeiras revestidas de cera. Estiletes com uma extremidade afiada e outra arredondada eram usados para escrever e apagar. Havia aulas todos os dias exceto nos dias de mercado e nos feriados religiosos, que eram muitos. Os alunos não precisavam saber por que algo estava certo, mas apenas que estava certo. O professor, conhecido como litterator, ensinava aos alunos o que era considerado certo mas não necessariamente o porquê das coisas. Tinha o direito de aplicar correção física nos alunos pelas mínimas ofensas, batendo neles com uma vara ou com um chicote. Os romanos das classes mais abastadas, e que tinham o costume de contratar tutores para os seus filhos,  também se preocupavam com a educação de suas filhas, conforme evidenciado pelas cartas enviadas por mulheres romanas a seus maridos que serviam nas diversas províncias.

Os romanos também reconheciam a importância de uma educação mais avançada para preparar os jovens que aspiravam entrar na política. Eles tomaram emprestado a organização disciplinar da Academia de Platão, em Atenas, introduzindo um sistema educacional baseado nas sete artes liberais. A gramática, a lógica e a retórica formavam o curriculum do trivium, enquanto que a aritmética, a geometria, a música, e a astronomia formavam o curriculum do quadrivium. Entretanto, o ensino do trivium e do quadrivium era particular, e os professores eram tutores contratados.

A educação pública envolvendo o ensino do trivium e do quadrivium é um dos legados de Carlos Magno (742-814 EC), o rei dos francos que em 800 foi coroado ‘Sacro Imperador do Oeste’ (i.e., do Império Romano do Ocidente), pelo Papa Leão III. A estreita relação entre Carlos Magno e a Igreja Católica Romana explica o seu interesse pela educação pública. Primeiro, Carlos Magno criou seminários voltados a formar clérigos bem preparados e dotados de um elevado padrão moral, e, em seguida, criou escolas paroquiais, onde os clérigos atuavam como professores. A chamada ‘renascença carolíngia’ tem a ver com os esforços de resgatar a educação do mundo clássico. A renascença própria, definida pela busca e valorização da arte clássica, incluindo a literatura e a filosofia, somente teve início a partir do século XIV.

 A academia de Platão

Em 387 AEC Platão retornou a Atenas após um exílio autoimposto em decorrente da morte de Sócrates (c. 469-399 AEC) e logo começou a trabalhar na construção de uma escola de preparação de jovens promissores para o exercício de cargos públicos. O local da escola era em um sítio chamado Akádemeia (Academia), que significa, ‘bosque de Akademos’, herói mítico de Ática, o país do qual Atenas era a capital, localizado fora dos muros da cidade. O nome Akádemeia, por fim,  passou a ser o nome da escola de Platão.

Há poucas referências documentais acerca da escola de Platão, cujo objetivo era permitir que os alunos, os quais eram selecionados pela aptidão, apreendessem a realidade e os seus aspectos mais relevantes ao bem, à justiça e à sabedoria.  A aptidão requerida para a admissão à escola de Platão incluía a veneração às musas da literatura, da ciência e das artes da mitologia grega[iii], indicativa do desejo de aprender, bem como conhecimentos de geometria. Sobre as disciplinas ensinadas, a academia oferecia matemática, dialética, música, ciências naturais e esportes. Sobre o modelo de administração da escola de Platão, há uma referência de que esta era uma entidade corporativa com um diretor vitalício, eleito pela maioria dos seus membros. A partir dos próprios textos platônicos, os eruditos fizeram algumas inferências sobre como a escola de Platão funcionava.

A leitura mais comum dos textos de Platão é de que o filósofo favorecia a aristocracia à democracia, sendo que a aristocracia de Platão referia-se ao governo do rei filósofo, isto é, de ‘guardiães’ especiais, tanto por serem as pessoas mais capazes quanto por serem livres das tentações da riqueza – eles eram proibidos de acumular propriedade. Entretanto, há uma leitura alternativa dos textos de Platão a qual afirma que a apologia de Platão à aristocracia – o governo do rei filósofo, tem mais a ver com o regime da sua academia, na qual os alunos  eram obrigados a deixar suas famílias para viver no espaço da escola, junto com os seus colegas e professores. Exatamente como ocorre nas universidades mais tradicionais do Ocidente.

Depois da morte de Platão em 348 AEC, o seu sobrinho Espeusipo (?- c. 338) foi eleito para sucedê-lo. É razoável presumir que a Academia de Platão tenha sido fechada e reaberta diversas vezes. Não obstante, os historiadores reconhecem três fases, uma mais antiga, uma média e outra mais nova. A fase mais antiga vai de Platão aos seus sucessores conservadores como Espeusipo, Xenócrates, Polemon e Crates, indo até o ano 265 AEC. A fase média inclui diversas academias que apareceram e fecharam, como a quarta academia fundada por Fílon de Larissa, na Tessália, que terminou com a morte deste em 83 EC. Três anos depois, em 86 EC, os romanos, sob o comando do general Sulla, saquearam Atenas e destruíram a academia e a sua biblioteca. A fase mais nova descreve o período, já na Idade Média, quando surgiu uma escola neoplatônica que funcionou de 410 EC a 529 EC, quando o imperador bizantino Justiniano I, motivado pelo desejo de criar uma ortodoxia católica, mandou fechá-la.

 O liceu de Aristóteles em Atenas. A Escola Peripatética

Aristóteles (c. 384-322 AEC) nasceu em Estagira, no norte da Grécia, sendo filho de um médico da corte da Macedônia. Em 367 AEC, quando tinha 17 anos de idade, ele entrou para a Academia de Platão, e lá permaneceu até a morte de Platão em 348 AEC. Nesse mesmo ano, Aristóteles deixou Atenas e foi morar em Assos, Mísia, onde conheceu sua primeira esposa, Pítia, com quem teve uma filha também chamada Pítia. Em 333 AEC Aristóteles foi chamado para a corte da Macedônia, em Pela, onde o seu pai havia servido como médico da corte. Aristóteles trabalhou três anos como professor de Alexandre, filho de Felipe II e sua esposa Olímpia, e de outros nobres.

Em 335 AEC, Aristóteles retornou a Atenas e fundou o Liceu, na parte leste da cidade e fora dos seus muros, o qual dispunha de uma vasta biblioteca e de um museu. O estilo de ensino do Liceu de Aristóteles era mais formal do que aquele adotado pela Academia de Platão. Há estudiosos que consideram o Liceu de Aristóteles o verdadeiro precursor não só das universidades do Oeste mas também das instituições de pesquisa como os museus. Aristóteles fundou o seu Liceu (Lykeion ou Lyceum) em 335 AEC. O Liceu de Aristóteles é também conhecido como ‘Escola Peripatética’ devido ao fato de que muitas aulas eram dadas enquanto os alunos e os professores caminhavam através de um bosque ou alameda, que em grego era denominada ‘peripeto’. Por essa mesma razão, os alunos e seguidores de Aristóteles eram conhecidos como ‘peripatéticos’. A Escola de Aristóteles e dos peripatéticos ensina que a essência das coisas que nós experimentamos é eterna e imutável, e por essa razão, podemos descobrir a verdade, o propósito e a virtude de cada coisa através de uma cuidadosa combinação de observação e análise.

Durante o período que passou na Macedônia, Felipe II conquistou a Grécia. Portanto, em 335 AEC, o ano em que o Liceu de Aristóteles começou a funcionar, a Grécia já se encontrava há três anos sob o domínio da Macedônia. No ano anterior, Filipe II da Macedônia foi assassinado, sendo sucedido pelo seu filho Alexandre III, que partiu com o seu exército para invadir a Pérsia. Na qualidade de ex-professor de Alexandre, Aristóteles tinha uma posição de prestígio em Atenas. Entretanto, isso mudou depois da morte prematura de Alexandre em 323 AEC[iv], quando surgiu em Atenas uma onda de perseguição aos amigos dos macedônios. Aristóteles foi acusado de impiedade, o mesmo crime pelo qual Sócrates havia sido condenado. Percebendo que sua vida estava em perigo, Aristóteles entregou o Liceu e a sua obra ao seu ex-aluno Teofrasto (c. 372- c. 287), e fugiu para Cálcis, na Ilha de Eubeia, onde faleceu em 322 AEC, aos 62 anos de idade. O próprio Teofrasto foi acusado do mesmo crime por ter denunciado a prática de sacrifícios de animais, mas escapou de ser condenado.

As escolas filosóficas da cultura grega

A Academia de Platão e o Liceu de Aristóteles não foram as primeiras escolas da Grécia, mas as primeiras a funcionar como corporação. É que o conceito de escola também se aplica a linha de pensamento ou de doutrinas criada por um mestre e seus seguidores. Nesse sentido, Sócrates teve uma escola de filosofia, assim como os pensadores conhecidos como pré-socráticos. Havia ainda a escola de retórica de um grupo de professores itinerantes conhecidos como sofistas. A retórica ensinada pelos sofistas empregava táticas baseadas na emoção, que tanto Platão quanto Aristóteles condenavam como sendo desonestas. A retórica que Platão e Aristóteles ensinaram era baseada no logos, e portanto, na educação liberal.

Depois do desaparecimento das escolas peripatéticas, surgiu na Grécia, ou melhor, no mundo helênico, uma série de escolas filosóficas, como as dos Céticos, dos Epicuristas, e a dos Estoicos.

O Neoplatonismo, um sistema filosófico e religioso desenvolvido por Plotino no século III EC em torno de Platão e seu interesse pelo místico, foi muito bem exemplificado pela  conexão do amor à ‘beleza eterna’. Plotino derivou daí a frase “o ser é um traço do Uno”, que atraiu pensadores tanto cristãos, como Santo Agostinho de Hipona, quanto islâmicos, como Al-Farabi e Avicena. Uma das falhas do Neoplatonismo foi exagerar o misticismo de Platão, o qual também se interessou pelo estudo da natureza em si, através da observação. O discípulo principal de Plotino e continuador de sua filosofia foi Porfírio (c.233-305 EC), o qual dedicou-se também a Aristóteles e outros pensadores, e procurou um sistema filosófico capaz de resistir aos ataques dos teólogos cristãos. Por fim, diversos pensadores cristãos abraçaram o Neoplatonismo, sendo o mais notório desses, Santo Agostinho de Hipona (354-430 EC).

 O ‘Mouseion’ ou Biblioteca Real de Alexandria

Dentre os importantes legados de educação e pesquisa do período helenístico, o mais notável de todos é o ‘Mouseion’ ou Templo das Musas, a Biblioteca Real de Alexandria, a maior do mundo antigo.

O Mouseion foi planejado por Alexandre o Grande (356-323 AEC), na ocasião em que havia conquistado o Egito. Alexandre imaginou uma cidade do conhecimento que fosse uma nova Atenas, na belíssima ilha de Faros, a oeste do delta do rio Nilo. A cidade teria uma biblioteca capaz de abrigar toda a literatura e todo o conhecimento existente no mundo, e espaço de trabalho para os estudiosos. E, como símbolo do conhecimento, a cidade teria também um enorme farol, construído no topo de um penedo.  Alexandre não pôde levar adiante os seus planos pois morreu na Babilônia, no local da atual Bagdá, em maio de 323 AEC, com apenas 33 anos de idade[iv]. Um de seus generais, Ptolomeu I (366-285/283 AEC) assumiu o governo do Egito, e, decidiu levar adiante a construção da cidade de Alexandria, incluindo a gigantesca biblioteca real e um magnífico farol.

Ptolomeu I iniciou o seu governo trabalhando na restauração da ordem no Egito, adiando a construção da cidade de Alexandria para depois que tivesse a adesão dos egípcios. Ele conseguiu ganhar a afeição dos egípcios, que lhe atribuíram o título de ‘Soter’, ou ‘Salvador’. Logo que tomou as rédeas do Egito, Ptolomeu I decidiu trazer o corpo de Alexandre para ser sepultado na nova cidade que levaria o seu nome. Ele conseguiu interceptar a caravana, vinda da Babilônia, que levava o corpo de Alexandre para a Macedônia, e desviá-la para Mênfis. Ptolomeu I, o Salvador, conseguiu dar início às obras da nova cidade de Alexandria, e quando ele morreu em 282 AEC, a cidade ainda era um enorme canteiro de obras, repleto de trabalhadores de todas as nacionalidades. Ele foi substituído pelo seu filho Ptolomeu II (283-246 AEC), designado ‘Philadelphus’ – ‘Amor de Irmão’, o qual terminou a construção da grande biblioteca real, por volta do ano 270 AEC.

A descrição da biblioteca real de Alexandria que chegou até nós é aquela feita pelo geógrafo Estrabão (c.64 AEC – 14 EC). A descrição que Estrabão deu da biblioteca da Alexandria, no Egito, é de uma biblioteca-escola, pois dispunha de alojamentos, áreas para palestras, jardins e um zoológico. Era melhor conhecida como ‘Mouseion’, ou ‘morada das musas’, devido às suas estátuas das nove musas das artes e da ciência da mitologia grega. Essa biblioteca não deve ser confundida com uma segunda biblioteca construída posteriormente no Templo de Serapis, conhecida como Serapium.

Segundo Estrabão, o Mouseion ficava na zona dedicada à realeza greco-macedônica, chamada Bruchium, onde também ficava o Mausoléu de Alexandre e o teatro. Ptolomeu II também conseguiu terminar o grande farol, considerado uma das sete maravilhas do mundo antigo. As palavras ‘museu’ e ‘farol’ são derivadas de ‘Mouseion’ e ‘Faros’, respectivamente.

A dinastia dos Ptolomeus, que terminou com Cleópatra VII (c.70/69 –  30 AEC), zelou pela manutenção do Mouseion e de suas atividades culturais. Estima-se que a biblioteca tenha chegado a ter entre 500.000 e 700.000 rolos de pergaminhos e manuscritos de todas as partes do mundo, incluindo a Grécia, a Pérsia a Assíria e a Índia.

Durante o seu apogeu, a Alexandria foi uma das mais importantes cidades do mundo antigo, além de ser também um dos maiores centros culturais do mundo civilizado. Era uma cidade altamente cosmopolita, onde diversas culturas conviviam pacificamente, incluindo uma extensiva comunidade de judeus. O Mouseion tornou-se um respeitado centro de estudos que atraía estudiosos das mais diversas nacionalidades. Dentre os seus famosos pesquisadores estão Euclides, Erastóstenes e Aristarco de Samos. Lá ocorreu ainda a mistura do patrimônio cultural egípcio, helênico e judaico, que por sua vez influenciou os primeiros textos do cristianismo.

Há diversas narrativas históricas que afirmam que a biblioteca real (Mouseion) foi destruída acidentalmente no ano 48 AEC por um incêndio causado por Júlio César, e que a biblioteca Serapium tomou o lugar da primeira até ser ela própria destruída no ano 391 durante a guerra civil que ocorreu no reinado do imperador Aureliano. Tais narrativas já foram descartadas como sendo erradas, conforme apontou Theodore Vretos no seu interessante livro Alexandria, City of Western Mind (Alexandria, cidade da mente ocidental). Nesse livro, Vretos descreve a Alexandria como um farol que guiava as mentes mais criativas do dia. Cientistas, filósofos, teólogos e artistas vieram de todo o mundo ocidental para estudar em sua imensa biblioteca e universidade, onde fizeram extraordinárias descobertas. Thales, Euclides e Apolônio inventaram a prova matemática. Aristarco foi a primeira pessoa a colocar o sol no centro do nosso sistema solar. Eratóstenes calculou a circunferência da Terra, e Herófilo inventou a anatomia. Foi também ali que Clemente (c. 150 – c. 215 EC) fundou a primeira escola de filosofia helênica-cristã, em cujos trabalhos ele se referiu a Jesus como o ‘tutor’ ou ‘pedagogo’ da humanidade, e, que também serviu de base para a escola neoplatônica.

 As escolas do Oriente Médio

O Mouseion ou Biblioteca da Alexandria foi o maior centro de conhecimentos do mundo antigo, mas não foi o único do mundo helênico. Havia ainda a Academia de Gundishapur (ou Jundishapur), na antiga Pérsia, criada em 271 AEC onde já havia uma escola de medicina. A Academia de Gundishapur era um centro de estudos e de traduções, cuja biblioteca tinha cerca de 400 mil livros. Consta que Gundishapur recebeu muitos dos professores da antiga Escola de Atenas, depois que esta foi fechada a mando do imperador Justiniano em 529 EC.

No século IV, a Síria ganhou duas escolas importantes, a Escola de Teologia da Antioquia, e a Escola de Direito Romano de Berytus (a atual Beirute).

A Escola de Pandidakterion, em Constantinopla, foi fundada em 425 EC por Teodósio II, Imperador do Império Romano do Oriente. Considerada uma das primeiras universidades do mundo, a Escola de Pandidakterion tinha autonomia e oferecia um amplo leque de disciplinas.

Na Mesopotâmia, a Universidade Beit al Hima (ou Casa da Sabedoria), de Bagdá, Iraque, foi fundada por al-Ma’mun (reinou de 813 a 833 EC), filho do califa Harun al-Rashid (reinou de 786 a 809 EC), a partir da biblioteca criada pelo seu pai. Essa Casa da Sabedoria de Bagdá atraiu tanto os estudiosos muçulmanos quanto os judeus e cristãos. Lá trabalharam estudiosos poliglotas que ensinaram astronomia, física, matemática, medicina, química e geografia. Foi destruída pela invasão mongol de 1258. Outra importante instituição do Iraque foi a Universidade (Nezamiyeh) al-Nizamiyya, fundada em 1065. Na Idade Média era considerada a maior universidade do mundo, chegando a ter 3 mil alunos. Também foi destruída pela invasão mongol de 1258.

No mundo árabe islamizado, surgiram as universidades de al-Karaouine, no Marrocos, fundada em 859 EC, e a Universidade al-Azhar (Jamiat al-Azhar em árabe), no Cairo, fundada em 970-972.

A Universidade de al-Karaouine (ou Al Qarawiyyin), localizada em Fez, no Marrocos, e associada à uma mesquita de mesmo nome, foi criada em 859 por uma mulher rica e bem educada, chamada Fatima Fihriyya. Essa universidade foi a principal instituição educacional do mundo muçulmano, e perdurou por mais de mil anos. Outro dado interessante sobre essa universidade é o fato de ter sido recentemente reconstruída.

No Cairo, no Egito, a Universidade al-Azhar (ou Jāmiʿat al-Azhar) foi um grande centro de cultura islâmica e árabe, fundada em 970 EC pelos seguidores da dinastia Fatimida, isto é, da filha do Profeta Maomé, chamada ‘al-Zahra’, isto é, ‘a luminosa’. No início de sua existência era uma instituição relativamente informal, sem currículos formais ou diplomas. A Universidade al-Azhar começou a decair na segunda metade do século XII, após a conquista de Saladin, o fundador da dinastia Suni Ayyūbid. Foi reconstruída depois de ter sido parcialmente destruída pelo terremoto do início do século XIV. Sobreviveu às mais diversas situações políticas, incluindo a invasão napoleônica do início do século XVIII, e ainda hoje é a principal universidade do Cairo.

Conforme visto acima, o Oriente Médio antecedeu à Europa em muitos séculos no tocante a academias de estudos. As primeiras academias do Oriente Médio tinham origens helênicas, bizantinas, árabes e islâmicas. Foi graças a essas academias que a Europa recuperou o conhecimento da cultura clássica.

 A escola de Plínio, o Velho (23-79 EC)

Plínio, o Antigo, em latim Gaius Plinius Secundus, nascido na Gália em 23 da Era Comum, foi um sábio romano e autor da célebre História Natural, um trabalho enciclopédico de precisão desigual que foi tido como uma autoridade em assuntos científicos até a Idade Média. Oriundo de uma família próspera, Plínio, o Antigo, aproveitou todas oportunidades que teve para estudar matemática e história natural, mas também serviu ao exército romano, foi advogado, e administrador do império. O legado de Plínio, o Velho, foi preservado e disseminado pelo seu sobrinho e filho adotivo, Plínio, o Jovem (61-113 EC), o qual foi criado por ele. A História Natural é considerada como sendo uma primeira enciclopédia, pois consiste em uma gigantesca compilação que abarca cerca de 20 mil tópicos organizados em 36 livros. Podemos dizer que Plínio, o Velho, fez escola pelo fato de que a sua obra serviu de base para os estudiosos que viveram depois dele.

As primeiras escolas da Europa

As primeiras escolas da Europa foram as escolas monásticas ou escolas catedrais, as quais proliferaram no Império Carolíngio fundado por Carlos (Karl) Magno (742-814 EC), rei dos francos[v], que foi o primeiro monarca europeu a acumular uma função religiosa junto com a secular, quando, no ano 800 EC, foi coroado Sacro Imperador do Oeste, pelo papa Leão III. Carlos Magno ordenou o estabelecimento de seminários e conventos voltados à educação do clero, e que conventos, mosteiros e igrejas, construissem escolas para leigos. As escolas monásticas ou catedrais ofereciam uma ‘educação liberal’[vi], pelo fato de ensinarem as ‘artes liberais’[vii] da antiguidade grega[viii], embora também ensinassem a religião cristã.

O período Carolíngio valorizou a cultura clássica grega e latina e promoveu os centros de estudos que eram conhecidos como ‘scriptoria’, voltados a copiar os códices clássicos de história, literatura e filosofia, e retraduzir certas obras do grego para o latim. Um desses centros era o de Aix-la-Chapelle (Aachen) em Compiègne, local da residência preferida de Carlos Magno, onde este mandou construir uma grande catedral inspirada no estilo da Basílica de San Vitale em Ravena. Situada a 5 km da junção das fronteiras com a Alemanha, Países Baixos e Bélgica, a catedral de Aix-la-Chapelle só foi terminada depois a morte de Carlos Magno, sendo o local da coroação do seu filho Luís, o Pio (814-840)[ix].

O surgimento de novas ordens religiosas baseadas inteiramente na vida contemplativa foi também o início do fim das escolas monásticas ou catedrais. No lugar dessas últimas surgiram as escolas citadinas, que, apesar de laicas, eram também religiosas. Depois do ano 1000, as antigas escolas monásticas ou escolas catedrais ressurgiram como faculdades, acompanhando as radicais transformações na vida política, na arte, na economia e na tecnologia, e no espaço de um século, transformaram-se nas primeiras universidades da Europa.

A escola de tradução de Toledo. Gerard de Cremona (1114-1187 EC)

No início do século XII, a ciência europeia ficou para trás da ciência árabe.  Isso é muito bem demonstrado através da obra do filósofo islâmico árabe Abu Nasr Al-Farabi (870-950 EC), que não apenas escreveu nos campos da filosofia política, metafísica, ética e lógica, mas foi também cientista, cosmólogo, matemático e estudioso de música. A sua obra mostra como a ciência árabe se beneficiou do estudo de textos gregos que eles encontraram quando conquistaram Damasco e outras cidades no Egito, Síria e Iraque. Entre esses textos estavam trabalhos científicos de Ptolomeu e obras filosóficas de Aristóteles, Platão, e obras de geometria de Euclides e de medicina de Galeno. A ciência árabe também se beneficiou de seu estreito contato e intercâmbio com o Império Bizantino e com cientistas e matemáticos da Índia e da Pérsia. O desaparecimento das obras em grego de Aristóteles e de outros filósofos gregos é outra mostra do atraso intelectual da Europa no primeiro milênio da era cristã. Uma das explicações mais plausíveis para esse desaparecimento é a rejeição dos primeiros teólogos cristãos, ao perceberem que Aristóteles desprezava as noções da criação, da alma imortal, e do Deus pessoal.

O conhecimento filosófico e científico do mundo árabe foi levado para a Península Ibérica pelos mouros que construíram a Andaluzia. Ali, o médico, astrônomo, filósofo, e poeta persa Avicena (Ibn Sina; 980-1037 EC)  seguidor da filosofia do Neoplatonismo, escreveu o seu Cânon de Medicina (Al-Qanun fi’l-tibb), em 14 volumes, completado em 1025 EC, em persa e em árabe, um apanhado dos conhecimentos de medicina no mundo islâmico, o qual incluiu as tradições médicas de Galeno e, portanto, de Hipócrates, assim como vários ensinamentos de Aristóteles. Outro sábio mouro da Andaluzia foi Averróis (Ibn Rushd; 1126-1198 EC), nascido em Córdoba, o qual examinou criticamente a suposta tensão entre filosofia e religião no seu Tratado Decisivo, desafiou os sentimentos antifilosóficos dentro da tradição sunita, e desencadeou um reexame semelhante dentro da tradição cristã, influenciando uma linha de estudiosos que viriam a ser identificados como os ‘averroístas’.

Um dos primeiros ‘averroístas’ foi o estudioso lombardo Gerard de Cremona (1114-1187), o qual decidiu mudar-se para Toledo, agora no reino de Castela[x], com a intenção de estudar o árabe e trabalhar na tradução das obras de Aristóteles e outros filósofos para o latim. Lá ele tomou conhecimento do Almagest, a obra de matemática e astronomia de Ptolomeu (c. 100 – c. 170 EC), datada do segundo século da era comum. O Almagest foi o seu mais importante trabalho de tradução, concluído 1175. Dentre os outros autores gregos que ele traduziu a partir de versões em árabe estão Aristóteles, Euclides, e Galeno. O interesse de Cremona não se limitou ao  pensamento grego, pois ele também estudou o acima mencionado filósofo árabe Al-Farabi. Embora ele também seja creditado com a tradução do Cânon de Medicina de Avicena, há indicações de que um outro tradutor de nome bem parecido, Gerard de Sabbioneta, um astrônomo do século XIII, tenha sido o verdadeiro tradutor dessa obra para o latim, já que era especializado na tradução de tratados de medicina. Além disso, é preciso ressalvar a possibilidade de uma mesma obra ser traduzida mais de uma vez por tradutores diferentes.

Gerard de Cremona deixou, como legado intelectual à cidade de Toledo, o interesse pela tradução. Em meados do século XII , a Escola de Tradução de Toledo foi criada, e seu impacto ajudou a alavancar o conhecimento na baixa Idade Média. Por ter sido criada no reinado do rei Afonso X, o Sábio (1221-1284), é também conhecida como Escola de Tradução Afonsina. Os textos ali traduzidos incluíram tanto obras de não ficção quanto de ficção, principalmente do árabe, do grego e do hebraico para o latim e o castelhano.

 O treinamento nas ‘guildas’

Durante a Idade Média, o treinamento da mão de obra nos diversos ofícios era feito nas ‘guildas’ (do inglês guild), associações de trabalhadores autônomos. As guildas controlavam a entrada de novos profissionais no mercado. Os mestres de cada ofício treinavam os aspirantes, cujo  treinamento incluía um período como aprendiz e outro como empregado. São exemplos de ofícios comuns da Idade Média:  pedreiros (stone masons), tecelões (weavers), tingidores (dyers), ourives (goldsmith), boticários (chemists), armistas (coat of arms makers), fabricante de armas (armorers), pergaminheiros (parchment makers), encadernadores (bookbinders), pintores (painters), padeiros (bakers), curtidores de couro (leatherworkers), bordadeiros (embroiderers), sapateiros (cobblers), galocheiros (pattenmakers), fabricantes de sapatos (shoemakers), cirieiros (candlemakers), fabricantes de autômatos (automaton makers), etc.

Havia também guildas de profissões, como as ligas de mercadores, e as associações de advogados e de profissionais da medicina. As ligas de mercadores, designadas ‘hanses’ (do alemão hanse, que significa comboio), foram criadas para facilitar o comércio internacional[xi]. Um exemplo era a liga hanseática de Bergen (Noruega), especializada no comércio da pesca, principalmente do bacalhau, com representações em diversas cidades da Europa, quase sempre nas cidades-porto. As ligas de mercadores originaram as primeiras escolas de contabilidade comercial e bancária, e as primeiras faculdades de direito e de medicina também surgiram das respectivas guildas.

Embora as guildas fossem independentes da Igreja Católica, elas tinham um caráter religioso, marcado pelo santo patrono das profissões. Esse caráter religioso das guildas foi transferido para as primeiras faculdades e universidades. Apenas no século XVIII é que as universidades começaram a emancipar-se da influência da Igreja (veja abaixo Universidades e religião. Uma relação incestuosa).

 Ensino superior. Escolas, studia e universitas

Podemos considerar que o ensino superior começou com escolas informais, como as escolas filosóficas do mundo grego, o Mouseion ou Templo das Musas, de Alexandria, e os centros de tradução como o de Toledo na Espanha, e outros espalhados pelo Império Bizantino. Em 1077, em Salerno, no sudoeste de Nápoles, Itália, no local de um mosteiro beneditino, surgiu uma schola de medicina, que ganhou fama devido a ter no seu quadro de professores o médico tunisiano, nascido em Cartago, Constantino Africano (1015-1087), que traduziu para o latim os textos clássicos da medicina disponíveis em árabe.  A escola de Salerno atraiu alunos não só da Europa mas também da Ásia e da África. Em 1221, Frederico II (1194-1250), Sacro Imperador Romano[xii], mesmo sem dar a Salerno o direito de emitir diplomas, decretou que nenhum médico poderia praticar medicina sem ser examinado e aprovado pelo seu corpo docente.

Os Studia (sing. studium) eram um novo tipo de escola que também surgiu na Itália.  Inicialmente havia apenas studia de conhecimento específico. Muitos studia cresceram e viraram facultatem, termo traduzido do termo grego ‘dynamis’, que significa ‘ramo de conhecimento’. Na língua inglesa o termo equivalente é ‘college’. Em seguida surgiram os studia generalia, ou escolas de conhecimentos gerais, cujos ensinamentos não eram restritos a uma única área do conhecimento.

Os studia generalia deram origem às primeiras universidades –  universitas, termo que evoluiu para acompanhar o desenvolvimento do ensino superior na Europa. O termo universitas designava, inicialmente, as corporações escolásticas de alunos e docentes, que existiam dentro do studium, mas posteriormente passou a significar as universitas magistrorum, universitas scholarium, ou universitas magistrorum et scholariu. As universidades, como nós as conhecemos, instituições de ensino superior independentes, que atuam em múltiplas áreas de conhecimento, com a autoridade para conferir títulos e diplomas, e, sancionadas pelas autoridades civis ou eclesiásticas, surgiram apenas no final do século XIV.

Conforme mostrado na Tabela 1, as primeiras universidades da Europa somente surgiram na Idade Média, definidas pela estrutura organizacional constituída por comunidades de professores e de alunos. Essas primeiras universidades eram, na verdade, faculdades, visando o ensino de disciplinas bastante específicas como direito (civil e canônico), medicina e teologia. Com a descoberta do Novo Mundo no final do século XV, as Américas foram colonizadas e a cultura europeia transportada para as mesmas pelos colonizadores, o que incluiu o estabelecimento de universidades (Tabela 2).

A primeira universidade da Europa é a de Bolonha, fundada em torno de 1088 EC, e que abarcava tanto uma faculdade de medicina quanto uma faculdade de direito especializada na lei civil e na lei canônica. Bolonha, assim como a maior parte das primeiras universidades, não oferecia alojamentos para os alunos.  Em Bolonha, os alunos se organizavam os seus próprios alojamentos, conforme as suas nacionalidades. A primeira escola a oferecer alojamentos para professores e alunos foi a de Paris, considerada a segunda universidade da Europa, especializada em teologia. A terceira universidade mais antiga é a de Oxford, criada nos moldes da Universidade de Paris. A quarta foi a Universidade de Cambridge, que começa em 1209 a partir da chegada de alunos e professores de Oxford. Poucos anos depois, Cambridge recebeu outra leva de alunos e professores que saíram da Universidade de Paris.  Essas primeiras universidades não tinham prédios permanentes e a sua propriedade corporativa era bastante limitada, razão pela qual estavam sempre sujeitas à debandada de alunos e professores insatisfeitos.

Uma outra boa parte das primeiras universidades europeias por fim passou para o controle de governos ou das autoridades religiosas, ou, das duas. É que, na Idade Média, o poder temporal dos monarcas ainda encontrava-se ligado ao poder espiritual representado pelo papa. A ligação entre o poder temporal e o religioso era representada pelo Sacro Império Romano, instituído no ano de 800 EC pelo papa. O Imperador do Sacro Império Romano era uma autoridade concessora de Cartas de Reconhecimento para essas universidades. A primeira a receber tal carta de reconhecimento foi a Universidade de Toulouse, do Papa Gregório IX (1229). Em 1224, a Universidade de Nápoles ganhou a sua Carta de Reconhecimento de Frederico II (1194-1250), Imperador do Sacro Império Romano. Também, Charles IV (1316-78), Sacro Imperador Romano e rei da Boêmia, reconheceu as universidades de Praga (Boêmia), Pecs (Hungria) e Pávia (Itália). Outra mostra da estreita ligação entre as universidades e a Igreja é o fato de as universidades terem tanto um reitor quanto um chanceler ou delegado da autoridade eclesiástica, isto é, do bispo local. A primeira universidade que se rebelou contra essa ligação foi a de Paris, que, em 1229 fez uma série de greves, e no final conseguiu transferir o poder do chanceler para os docentes.

O ‘saber europeu’ concentrado nas faculdades e universidades disseminou-se com a migração dos eruditos e dos estudantes, levando a radicais transformações sociais na Europa, como a expansão das cidades e do comércio, e o aperfeiçoamento das leis e das normas burocráticas.

Tabela 1. As primeiras instituições de ensino superior do Ocidente

Nome Ano de fundação da escola inicial e/ou universidade Status político e outros dados
Bolonha 1088 Principado de Bolonha, na Emília Romana; então sob o domínio feudal do papa. Começou como uma faculdade de direito, seguida por outra medicina.
Paris, ou Sorbonne

 

Primeiras escolas: 1150 e 1170.

Universidade: 1200

França, sob a dinastia Capetiana, aliada ao papado romano. Começou com uma escola de teologia ligada à catedral de Notre Dame, ganhando em seguida outras escolas. Entre 1240 e 1260, as escolas viraram faculdades, destacando-se o Collège de Sorbon, em torno do qual surgiu a Universidade de Paris. A partir de 1970, a U. de Paris foi reorganizada em 12 universidades autômatas (Universidade de Paris I-XIII).i
Oxford c. 1167 e 1201 Inglaterra, sob Henrique II, da dinastia Plantageneta, que controlava ainda: Normandia, Anjou, Maine, Touraine e Aquitaine. A data da criação da U. de Oxford, 1167, é a data em que Henrique II proibiu ingleses de frequentar a U. de Paris. Em 1201, a universidade era dirigida por um magister scolarum Oxonie, ao qual foi dado o título de Chanceler (Reitor) em 1214.
Salerno 1077 Principado de Salerno, Lombardia, então sob o domínio feudal de Roger I da Sicília. Inicialmente era um studium de medicina, mais tarde passou a oferecer cursos de filosofia, teologia e direito, sendo eventualmente transformada em universidade.
Cambridge 1209 Reino da Inglaterra, sob João I, considerado um monarca controverso, conhecido por ter assinado a Magna Carta em 1215 e pelas disputas com o papa, cujas políticas também eram controversas. A criação da U. de Cambridge deve-se à um grupo de descontentes da U. de Oxford, que resolveram criar outra universidade.
Salamanca 1218 e 1254

 

Reino de Leão, sob Afonso IX. Suas primeiras faculdades eram: direito (civil e canônico), teologia, medicina e Artes & Filosofia.
Montpellier Primeiras escolas: 1220

Universidade: 1289

Montpellier, região de Languedoc-Roussilon, sob o lorde feudal Guilherme VIII (1157-1202). Começou com uma escola de medicina criada no molde da Salerno, a qual atraiu estudiosos árabes-islâmicos e judeus.
Pádua 1222 Pádua, região de Veneto. A U. de Pádua foi criada a partir de dissidentes da U. de Bolonha. Iniciou como uma escola de medicina, mas, por fim, tornou-se um importante centro de cultura humanista. É creditada por ter o primeiro jardim botânico.
Arezzo 1222 Arezzo, região da Toscana. Importante escola de letras, que se tornou um centro de cultura humanista.
Nápoles 1224 Nápoles, então parte do Reino da Sicília. Criada por Frederico II (1194-1250), da dinastia Hohenstaufen, rei da Sicília e Sacro Imperador Romano. Os primeiros professores eram empregados do imperador.
Toulouse 1229 Toulouse, capital da província francesa de Occitana. Começou com escolas de direito (civil e canônico), teologia, e artes e humanidades. Foi fechada em 1793, devido à Revolução Francesa.
Siena 1240 República de Siena, Toscana. A U. de Siena foi criada a partir de dissidentes da U. de Bolonha. Inicialmente era uma escola de estudos gerais e de medicina.
Lisboa, depois Coimbra 1290 Lisboa e Coimbra, Portugal. Criada pelo rei D. Dinis como uma escola de estudos gerais, funcionando inicialmente no palácio real em Lisboa, tendo depois se expandido para Coimbra, que tornou-se a sede definitiva em 1537.
Macerata 1290 e 1540 Província de Macerata, das propriedades papais na Itália.
Alcalá de Henares ou Complutense 1293 e 1504 Madrid, Reino de Castela. Iniciou como escola de estudos gerais. Mais tarde virou universidade, por intermédio do Cardeal Francisco Cisneros (1436-1517), confessor da rainha Isabel, a Católica (1451-1504).
Lleida 1300 Lleida, Catalunha, Reino de Aragão, Reinado de Jaime II de Aragão e Sicília (1264-1327). Iniciou como escola de estudos gerais.
La Sapienza de Roma 1303 Roma. Iniciou como escola de estudos gerais, criada pelo papa Bonifácio VIII (1235-1303).
Perugia 1308 Perugia. Iniciou como um studium, uma universidade especial, cujos diplomas só eram reconhecidos localmente. O ano 1308 marca o seu reconhecimento pelo imperador e pelo papa.
Florença 1321 e 1364 República de Florença, Itália. Iniciou como escola de estudos gerais, que ora funcionava em Florença ora em Pisa, em função da morada da família Médici. Passou a  universidade em 1364.
Camerino 1336 e 1727 Camerino, Itália. Começou com faculdades de direito (civil e canônico) e medicina. Foi transformada em universidade em 1727.
Pisa 1343 República de Pisa, Itália. Começou onde já havia outras escolas. Foi reconhecida como universidade pelo Papa Clemente VI (1291-1352). Em 1473, ganhou um importante prédio de Lourenço de Medici (1449-1492).
Praga 1348 Reino da Boêmia, atual República Checa. Era chamada Universidade Charles, em homenagem a Charles IV (1316-78), Sacro Imperador Romano e rei da Boêmia.
Pavia 1361 Pávia, Itália. Começou como faculdade de direito e escola de estudos gerais. Foi reconhecida em 1361 pelo Sacro Imperador Romano Charles IV (1316-78).
Cracóvia (atualmente chamada U. Jagiellonia) 1364 Cracóvia, Reino da Polônia. Iniciou como uma escola de estudos gerais, fundada pelo rei Casimiro o Grande (1310-70), oferecendo cursos de artes liberais, medicina e direito. Foi extinta e depois recriada pelo rei Vladislau Jagiello em 1400.
Viena 1365 Viena, Áustria. Foi fundada pelo duque Rodolfo IV (1339-1365) junto com seus dois irmãos, no modelo da U. de Paris.
Pecs 1367 Pecs, Hungria. Foi fundada por Charles IV (1316-78).
Heidelberg 1386 Heidelberg, Alemanha. Anteriormente conhecida como Ruperto Corola, é a universidade mais antiga da Alemanha. No século XVI tornou-se num centro de humanismo. Após a Reforma Protestante tornou-se num centro calvinista.
Ferrara 1391 Ferrara, Emília Romana, Itália. Começou como uma escola de estudos gerais, fundada em 1391 pelo Marquês Alberto V D’Este (1347-1393, com a permissão do papa Bonifácio IX (1356-1404).
Würzburg 1402 Würzburg, Alemanha.
Leipzig 1409 Leipzig, Alemanha.
Aix-en-Provence 1409 Aix-en-Provence,
Saint Andrews 1411 Saint Andrews, Escócia.
Rostock 1419 Rostock, Alemanha.
Louvain/Leuven 1425 Leuven, Bélgica
Catania 1434 Catania, Reino da Sicília, Itália.
Poitiers 1431 Poitiers, França.
Barcelona 1450 Barcelona, Reino de Aragão, Espanha.
Glasgow 1451 Glasgow, Escócia.
Valencia 1454 Valência, Espanha.
Greifswald 1456 Greifswald, Alemanha.
Friburgo 1457 Friburgo, Alemanha. Transferida temporariamente para Constance em duas ocasiões.
Basileia 1460 Basileia, Suíça.
Nantes 1460 Nantes, França.
Bourges 1463 Bourges, Bélgica.
Munique 1472 Munique, Alemanha. Fundada em Ingolstadt em 1459, transferida para Landshut em 1800, e para Munique em 1826.
Bordeaux 1472 Bordeaux, França.
Trier ou Treves 1473 Trier, Alemanha.
Uppsala 1477 Uppsala, Reino da Suécia.
Tübingen 1477 Tübingen, Alemanha.
Copenhagen 1479 Copenhagen, Dinamarca.
Gênova 1481 República de Gênova, Itália.
Aberdeen 1494 Aberdeen, Escócia. Resultou da fusão entre a King’s College, fundada por uma bula papal em 1495. e Marischal College em 1593.
Santiago de Compostela 1495 Santiago de Compostela, Galícia, Reino de Castela, Espanha.
Valencia 1499 Valencia, Reino de Aragão, Espanha.
Halle-Wittenberg 1502 Halle-Wittenberg, Alemanha.

 

Tabela 2. As primeiras faculdades e universidades das Américas.

Nome Ano de Fundação Outros Dados
U. do México 1551 Cidade do México. Foi inspirada na Universidade de Salamanca.
U. São Tomás de Aquino 1580 Bogotá, Colômbia.
U. de Córdoba 1613 Córdoba, Argentina.
Real Pontifícia São Francisco Xavier 1624 Chuquisaca, Bolívia.
Harvard 1636 Boston, Massachussets.
Laval 1663 Québec, Canada.
Yale 1701 Yale, Connecticut
Princeton 1746 Princeton, Nova Jersey
Pensilvânia 1749 Filadélfia, Pensilvânia.
Columbia (King’s College) 1754 Nova Iorque, Nova Iorque.
New Brunswick 1785 New Brunswick, Canadá.
King’s College 1789 Ontário, Canadá.
Cornell University 1800 Ithaca, Nova Iorque.
University of Michigan (Detroit; Ann Arbor) 1817 Detroit, Michigan. Em 1837 foi transferida para Ann Arbor.
Washington University 1853 St. Louis, Missouri.
Stanford University 1891 Stanford, California.

As universidades se desenvolveram durante um longo período, mas, em decorrência de conflitos de interesse e abusos de poder, estão permanentemente sujeitas a retrocessos. A partir do final do século XX,  diversos críticos têm apontado a profunda decadência do ensino superior do Ocidente.

 As academias ou sociedades científicas

No final do século XVI surgiram as primeiras academias, sociedades científicas voltadas a atender as necessidades da nova época, como a liberdade de expressão e de pensamento pela qual muitos eruditos ansiavam. O filósofo, político e polímata inglês Francis Bacon (1561-1626) é considerado o grande precursor desse anseio, e, foi também um crítico contundente dos erros de raciocínio  dos escolásticos de sua época. O que fez de Bacon uma espécie de divisor de águas é o fato de que ele escrevia para o público, sem dar a menor importância à recomendação da lei canônica de que os livros deveriam ser submetidos à autoridade eclesiástica antes de serem publicados, cuja autorização era designada pela palavra latina Imprimatur (Imprima-se). O seu livro Novum Organum, escrito em latim e publicado em 1620, é uma referência ao livro Organon  de Aristóteles, que era seu tratado sobre lógica e silogismo. Nele, Bacon faz críticas severas a Aristóteles, e introduz um novo sistema de raciocínio, a indução, que ele apresentou como sendo superior ao silogismo, para o desenvolvimento da ciência. Nesse livro, Bacon classificou as falácias intelectuais de seu tempo em quatro títulos que ele chamou de ídolos. Ele os distinguiu como ídolos da tribo, ídolos da caverna, ídolos do mercado e ídolos do teatro. Os ídolos da tribo, representados pelos os erros e incoerências causados pelas falhas da compreensão humana, resultam da tendência natural de buscar evidência para aquilo que já acreditamos ser a verdade. Os ídolos da caverna (uma alusão à caverna de Platão) são representados pelos preconceitos e os pré-condicionamentos naturais das pessoas. Os ídolos do mercado são representados pelos preconceitos e os pré-condicionamentos derivados dos meios de comunicação formais e informais. Os ídolos do teatro, representados pelos dogmatismos e preconceitos que são repassados através dos sofismas embutidos nos sistemas de conhecimentos tradicionais, embora os mesmos nunca tenham passado por testes científicos de verificação. É pertinente registrar que as críticas de Bacon a Aristóteles foram mais tarde revisitadas, quando ficou demonstrado que os problemas que Bacon apontava eram da escolástica (ou escolasticismo), a doutrina que tentou reconciliar a filosofia de Aristóteles à doutrina cristã, ou seja, a epistemologia à axiologia. Outra revisitação desse tópico foi o debate entre o racionalismo e o empirismo, que resultou no reconhecimento de que ambos eram necessários à ciência.

Não se sabe se a Royal Society de Londres foi a primeira academia ou sociedade científica, mas certamente foi a primeira dentre as principais que surgiram na Europa. Ela começou a funcionar em 1660, quando um grupo de cientistas e amigos da ciência (Isaac Newton, Robert Hooke, Hans Sloane, Robert Boyle, etc) começaram a promover encontros de discussão. Em 1662, recebeu o selo real do rei Charles II, ganhando o nome formal de The Royal Society of London for Improving Natural Knowledge. Outra importante academia de ciências é a de Paris – a Académie des Sciences, fundada por Lu[is XIV em 1666 por sugestão de Jean-Baptiste Colbert. A terceira academia de que se tem conhecimento é Academia Real de Ciências da Prússia, fundada em 1700 por Frederick III, o Príncipe-eleitor de Brandenburg. Afora essas, surgiram muitas outras, conforme mostra a Tabela 3.

As Academias sempre foram instituições de prestígio, com um número limitado de membros, escolhidos por quando da morte de um associado. O polímata francês Voltaire (1694-1778), dramaturgo, homem de ciência, horologista, ensaísta, novelista, e poeta, foi candidato diversas vezes à Academie des Sciences, mas sem sucesso. Segundo o astrônomo Jérome Lalande, o motivo da ‘bola preta’ é o fato de que ao ser perguntado sobre o que o atraía acerca de Versalhes, ele teria respondido: “não é o mestre da casa”, uma referência ao rei Luís XV. Entretanto, em 1741 Voltaire foi eleito fellow da Royal Society, e finalmente foi votado membro da a Académie em 1746. Voltaire defendia a independência das academias, quer do poder secular quer do poder da autoridade religiosa.

Tabela 3. Importantes academias da Europa.

Nome Ano de Fundação Outros Dados
Royal Society 1662 London. Seus membros eram seguidores de Francis Bacon, introdutor do método indutivo e crítico da Escolástica.
Royal Academie des Sciences

 

1666 Paris. Descartes, Pascal, Gassendi, Fermat,etc.
Academia Real de Ciências da Prússia

Königlich-Preußische Akademie der Wissenschaften

 

1700 Berlim. Leibniz.
Academia dei Lincei 1603-30 Lincei, Roma. Fundada por Federico Cesi, lidava tanto com ciência quanto com filosofia. Um de seus membros foi Galileu Galilei.
Academia Físico-Matemática 1677-98 Roma.
Academia del Cimento 1657-1667 Florença. Seue membros eram considerados seguidores de Galileu, como Viviani e Torricelli.

 

Academia egli Investiganti 1663-1670 Nápolis.
Accademia dela Traccia 1666- c. 1678 Bolonha.
Accademia degli Inquieti 1690-1714 Bolonha.
Accademia degli Argonauti 1684-1718 Veneza.
Academia de São Petersburgo 1724 São Petersburgo.

As Academias de ciência deixavam transparecer a liberdade de pensar e agir que é essencial para a atividade científica. Por acaso essa liberdade não existia nas universidades? Procurarei examinar essa pergunta no título a seguir.

Universidades e religião. Uma relação incestuosa

O surgimento das universidades mostra uma abertura ao conhecimento que até então não existia na Europa. Entretanto, tal abertura ao conhecimento era condicionada à ordem eclesiástica existente. Assim sendo, havia uma relação incestuosa entre as primeiras universidades europeias e o catolicismo romano, a qual impedia o pensamento independente e a inclusão das mulheres. A ordem eclesiástica era a grande defensora do patriarquismo (o machismo associado ao enorme poder do pater familias), conforme muito bem evidenciado na seguinte citação de São Paulo: “Calem-se as mulheres nas assembleias, pois não lhes é permitido falar.” (I Cor 14, 34). As mulheres eram excluídas das escolas monásticas e das escolas citadinas, e continuaram a ser excluídas das faculdades e universidades.

A Reforma Protestante iniciada em 1517 por Martinho Lutero (1483-1546) levou à criação de diversas denominações cristãs, que, assim como a Igreja Católica  Romana, também se preocuparam com a educação, muito embora sem encorajar o pensamento independente, e sem reconhecer a igualdade das mulheres. Algumas dessas denominações cristãs beiravam o fanatismo. Os séculos XVI e XVII foram palcos de diversas seitas de protestantes fanáticos, como o puritanismo da Grã Bretanha e da Nova Inglaterra, que enfatizava o Velho Testamento da Bíblia sobre o Novo Testamento, e pregava a sua literalidade. Outro problema das universidades medievais era a priorização da teologia em relação a todas as outras disciplinas do conhecimento.

As primeiras universidades do Ocidente foram verdadeiros presentes com strings attached, isto é, com condições. Tais condições eram geralmente contrárias ao livre pensar e ao desenvolvimento do conhecimento. Uma das principais justificativas para a criação das primeiras universidades foi a ideia de que a busca da verdade acerca do mundo era uma forma de descobrir o Deus criador. Entretanto, assim como aconteceu nos primeiros anos do cristianismo, as autoridades da Igreja suspeitavam que os textos dos eruditos gregos e árabes-islâmicos eram uma ameaça à ortodoxia cristã. Do outro lado dessa guerra cultural estavam os teólogos filósofos que buscaram conciliar a erudição pagã ao cristianismo, ou reja, a razão metodológica à fé cristã, dando origem ao método escolástico. O fundador da Escolástica latina que procurou reformar a enciclopédia árabe aristotélica do conhecimento foi Santo Alberto Magno (1200-1280), mas foi um aluno dele, São Tomás de Aquino (c.1225-1274), quem elevou e firmous a escolástica. No seu livro Summa Theologica, escrito de 1265 a 1274, ele procura mostrar as ligações entre a ciência, razão, filosofia, fé e teologia. Outro erudito que seguiu a linha escolástica foi o inglês Roger Bacon (c. 1220-1292). Ele procurou mostrar às autoridades eclesiásticas que não precisavam se preocupar com os estudos que não viessem da revelação divina, como a filosofia de Aristóteles, argumentando que a verdade era uma só e vinha de Deus. Entretanto, conforme veremos abaixo, Bacon chegou a abandonar a universidade a fim de poder se dedicar ao estudo de Aristóteles e Avicena e escrever, mas os colegas da ordem franciscana lhe puxaram o tapete.

Santo Alberto Magno (canonizado em 1931) era um frei dominicano nascido na Suábia, atual Alemanha. Foi professor de Tomás de Aquino, e, um notável proponente da escolástica ou escolasticismo, doutrina caracterizada pela busca da harmonização entre os ensinamentos de Aristóteles e outros filósofos da antiguidade e os da Igreja Católica. Depois de ter estudado artes liberais em Pádua, Bolonha e na Alemanha, passou a ensinar teologia em diversos conventos da Alemanha. Por fim, ele foi transferido para o convento de Saint Jaques, que fazia parte da Universidade de Paris, onde teve contato com os textos de, ou sobre, Aristóteles e outros eruditos gregos e islâmicos. Deixou uma obra de metafísica cristianizada, baseada na sua interpretação das quatro causas de Aristóteles.

São Tomás de Aquino nasceu na vila de Roccasecca, próxima de Aquino, na Sicília. Entrou para o mosteiro de Monte Cassino como noviço e posteriormente foi estudar na recém-fundada Universidade de Nápoles, criada pelo Imperador Frederico II. Em Nápoles, ele tomou conhecimento das obras de ciência e filosofia grega que estavam sendo traduzidas do grego e do árabe. Em seguida, ele se afiliou à ordem dominicana com o propósito de ter mais liberdade para meditar. Quando se encontrava no convento de Saint Jaques, em Paris, que era o centro de estudos universitários dos dominicanos, ele estudou com o pensador alemão Alberto Magno. A teoria filosófica de Tomás de Aquino é inspirada na teoria do corpo e da alma de Aristóteles, que afirma a existência de uma ‘alma’ responsável por dar vida ao corpo, quer do homem quer dos outros animais. A fim de criar a sua própria tese filosófica, ele tomou a ideia de Aristóteles que afirmava que a alma humana era diferente da dos outros animais, não só porque é capaz de entender as coisas e de agir por si própria, como também porque não deixa de existir depois da morte do indivíduo, acrescentando que, por fim, voltará a se reunir com o corpo como consequência do juízo final. Reconhecendo que tal não podia ser provado pela razão, Aquino afirmou que se trata de um ‘mistério da fé’. A ‘filosofia teológica’ de Aquino foi aceita pelas autoridades católicas, que lhe conferiram o título de ‘doutor angélico da Igreja’, e em 1323, canonizou-o.

Roger Bacon, pensador inglês nascido em Ilchester, Somerset, estudou matemática, astronomia, ótica, alquimia, e línguas. Tornou-se docente das Universidades de Paris e de Oxford onde ficou conhecido como ‘Professor Prodígio’. Assim como Tomas de Aquino, Bacon encantou-se em descobrir o pensamento de Aristóteles e de Avicena (980-1037 EC) ao ponto de largar a academia e se juntar à ordem dos franciscanos a fim de poder dedicar-se mais ao estudo. Grande estudioso da filosofia, Bacon afirmou a importância do método empírico e da prova matemática, e fez diversas especulações científicas futuristas como máquinas voadoras mais leves que o ar, o transporte mecânico por terra e por mar, a circum-navegação do globo e a construção de microscópios e telescópios. Bacon também escreveu sobre a ética e apontou como principais causas da ignorância humana, a autoridade indigna, o mau hábito, os preconceitos da cultura popular e a presunção infundada. Entre 1266 e 1267, Francis Bacon trabalhou na sua Opus majus (Obra maior), onde reuniu todos os seus estudos, críticas filosóficas e especulações. Em seguida ele começou a trabalhar numa enciclopédia de ciência e filosofia, embora apenas fragmentos desta tenham sido publicados. Escreveu ainda Opus minus (Obra menor) e Opus tertium (Terceira obra). Bacon escrevia num estilo altamente deferente ao papa e ao cristianismo mas mesmo assim os seus colegas de ordem indignaram-se com seus escritos e o denunciaram ao Papa Clemente IV. Os próprios franciscanos prenderam Bacon entre 1277 e 1279 por ‘novidades suspeitosas’ nos seus ensinamentos.

Os quatro exemplos acima foram os primeiros a mostrar a estreita ligação que havia entre as universidades e a Igreja e como essa ligação cerceava o pensamento dos acadêmicos. A peste negra que assolou a Europa de 1348 a 1350 fez com que as autoridades católicas desconfiassem de tal catástrofe teria sido uma punição divina pelas ideias contrárias aos textos da Bíblia. Pensadores, tanto das universidades quanto fora dela, passaram a viver sob a ameaça de serem presos e até mortos na fogueira por suas teses heréticas. Essa é uma razão pela qual os pensadores só discutiam com os seus pares e não tinham o hábito de escrever para a população leiga. Nicolau Copérnico (1473-1543), o autor do livro Das revoluções dos corpos celestes (em inglês: On the revolutions of heavenly bodies) acerca da sua tese heliocêntrica, era extremamente cuidadoso em escolher com quem discutir suas ideias, e adiou a publicação desse livro até bem perto de sua morte. Em 1616, o mesmo foi listado no Índice de Livros Proibidos. Em 1669 um professor de filosofia da Universidade de Cambridge, na Inglaterra, Daniel Scargill (1647-c.1690), foi demitido simplesmente por ter apoiado o filósofo Thomas Hobbes (1588-1679), um ateísta declarado. O próprio Hobbes foi escorraçado da sociedade, impedido de publicar novos livros, e até acusado de ter atraído, pelo seu ateísmo, a ira da Divina Providência, causadora do grande incêndio de Londres de 1666. Em 1616, o físico e matemático Galileu Galilei (1564-1642) chegou a ser condenado por de heresia pelo tribunal da Inquisição[xiii], após ser denunciado pelos próprios colegas da Universidade de Pisa.

Uma das regras douradas da civilização é graduar a responsabilidade das pessoas ao seu nível educacional. Portanto, é natural presumir que entre os professores das universidades a virtude sempre supera o vício. É dessa pressuposição que surgiu a metáfora da torre de marfim aplicada ao mundo acadêmico. Entretanto, os acadêmicos não apenas possuem vícios e virtudes na mesma medida que o resto da população, como também possuem vícios próprios, como a arrogância decorrente da pressuposição de certeza.

 Do secularismo iluminado às universidades modernas

O Iluminismo ou o Século das Luzes é o divisor d’águas da libertação da mente do indivíduo dos grilhões da religião e do Estado, marcando a emergência do secularismo. Dois pensadores que se destacaram na campanha pelo secularismo foram o já anteriormente mencionado Voltaire (1694-1778), e o escritor, jornalista e inventor inglês naturalizado americano Thomas Paine (1737-1809). Paine escreveu um livro intitulado ‘The Age of Reason (A idade da razão), argumentando que a Bíblia era mitológica, embora tivesse um valor literário, e discutindo o lugar da religião na sociedade. O Iluminismo do século XVIII estendeu o conhecimento erudito e científico a toda a população leiga, através de livros, jornais e revistas, assim como da Enciclopaedia editada por Dennis Diderot (1713-1784) e Jean le Rond d’Alembert (1717-1783).

Apesar da luta dos pensadores iluministas pela liberdade de estudar e publicar os frutos de seus estudos, pelo menos uma parte da produção acadêmica continuava cerceada pelas autoridades religiosas. A Universidade de Saint Andrews, na Escócia, originalmente católica, mas depois tornada protestante, rejeitou o filósofo David Hume (1711-76) para um posto acadêmico devido aos rumores de que ele era ateu. Em 1798, o filósofo Immanuel Kant (1724-1804), professor da Universidade de Könisberg, na antiga Prússia, recebeu uma reprimenda oficial por ter contrariado a ortodoxia teológica, após uma denúncia de colegas da própria universidade.

A Península Ibérica, onde as ideias iluministas do naturalismo, do secularismo, e da educação universal, só se assentaram no século XIX, assistiu à ascensão do anticlericalismo, que visava tirar da Igreja o monopólio do ensino primário e livrar as universidades do cerceamento religioso. Entretanto, em diversas partes da Europa pipocavam movimentos contrários às ideias iluministas. Felizmente, a opinião pública bem informada não desapareceu de todo, e onde havia esta, havia também universidades inteiramente seculares.

Foi, no século XVIII, na Alemanha, que as universidades foram reformadas dentro das ideias iluministas[xix] do século XVIII, como a independência de pensamento. Tal reforma provou ser um sucesso em termos de produção acadêmica original. As universidades alemãs reformadas eram autônomas, tinham currículos modernos, que abrangiam desde as inovações da ciência às profundas incursões da filosofia, da sociologia e da história.  A Alemanha foi o primeiro país a desenvolver a educação científica (wissenschaftliche Bildung). A influência das universidades alemãs logo se espalhou para os demais países de língua germânica, principalmente para a Universidade de Viena, na Áustria, que no início do século XX passou a ser um importante núcleo da inteligência ocidental.  O modelo alemão de ensino superior foi transplantado para diversas universidades dos Estados Unidos, em especial para aquelas que fazem parte da Ivy League.

Dois pensadores analisam o papel da universidade: Max Weber e Karl Jaspers

Max Weber (1864-1920) e Karl Kaspers (1883-1969) foram dois grandes pensadores do início do século XX que se preocuparam em avaliar o papel da universidade. Os dois eram amigos e isso fez com que trocassem ideias. Weber e Jaspers foram os mais capazes peritos acerca do ensino superior e da universidade.

Weber era um sociólogo, filósofo, jurista e economista político alemão. Ele iniciou seus estudos na Universidade de Heidelberg em 1882, mas teve que trancar matrícula depois de dois anos para se alistar no serviço militar. Finda a guerra, ele se matriculou na universidade de Berlim para concluir seus estudos e depois na universidade de Göttingen. Seu trabalho mais conhecido é A ética protestante e o espírito do capitalismo (1930), (Die protestantische Ethik und der Geist des Kapitalismus 1904–05), mostrando a correlação estatística entre o sucesso em empreendimentos capitalistas e a mentalidade protestante, pelo menos em sua terra natal, a Alemanha. Weber é também é conhecido por sua profunda compreensão da história e de outras ciências e por sua profunda compreensão da natureza humana. A vida e a carreira de Weber foram interrompidas pela Primeira Guerra Mundial. Em 1918, ele aceitou a cadeira de sociologia da Universidade de Viena, onde morreu dois anos depois, aos 56 anos. Durante seu breve período como acadêmico, ele se dedicou ao tema de educação, especialmente do ensino superior, e apontou que os sistemas educacionais, por estarem embebidos noutras instituições sociais, políticas, econômicas, religiosas e legais, careciam de avaliação crítica.

Jaspers foi um pensador polímata que se destacou na psiquiatria, na filosofia e na educação superior. Na psiquiatria, ele foi pioneiro no sistema de classificação de tipos básicos de personalidade. Na filosofia, ele publicou Philosophie (1932), uma importante  obra em três volumes. Na educação superior, ele foi um dos principais líderes do projeto de reconstrução das universidades alemãs depois da Primeira Guerra mundial. Jaspers entendia a universidade como sendo “uma comunidade livre, de acadêmicos e estudantes, envolvidos na tarefa de buscar a verdade”  e colocou essa ideia no ensaio de 1923 intitulado  ‘A ideia da universidade’. Neste ensaio, Jaspers levanta diversas perguntas relevantes acerca do sistema da universidade. Quais são as ferramentas chaves da universidade?  Qual é a relação entre a universidade e o Estado? Quais são as justificativas para a manutenção da universidade? Infelizmente, a carreira acadêmica de Jaspers foi paralisada pelo nazismo alemão em desforra por suas frequentes críticas ao partido de Hitler. Não contentes com o essa punição, em 1938, os nazistas proibiram Jaspers de publicar e começaram a ameaçá-lo por causa de sua esposa judia. Apesar de tudo, Jaspers e sua esposa decidiram permanecer na Alemanha. O casal já havia sido agendado para deportação para um campo de concentração quando o exército dos EUA entrou em Heidelberg em abril de 1945. Em 1946, Jaspers publicou uma nova e aumentada edição do ensaio de 1923 sobre a universidade, no qual ele aponta o papel da universidade na reabilitação da Europa após a Segunda Guerra mundial, bem como no resgate das mais nobres ideias do Iluminismo. Escreveu ele:

A universidade cumpre as suas tarefas – pesquisa, instrução, treinamento, comunicação – dentro de uma estrutura institucional. Requer edifícios, materiais, livros e institutos de sua administração ordenada. Privilégios e deveres devem ser distribuídos entre seus membros. A universidade representa um todo corporativo independente com sua própria constituição.

A universidade existe apenas na medida em que é institucionalizada. A ideia se concretiza na instituição. A extensão em que faz isso determina a qualidade da diversidade. Despojada de seu ideal, a universidade perde todo o valor. No entanto, “instituição” implica necessariamente compromisso. A ideia nunca é perfeitamente realizada. Por esse motivo, existe na universidade um permanente estado de tensão entre a ideia e as deficiências da realidade institucional e corporativa.

Até as melhores instituições da universidade tendem a se deteriorar e a se distorcer. Assim, a própria tradução do pensamento para a forma ensinável tende a empobrecer sua vitalidade intelectual. Uma vez que as conquistas intelectuais são admitidas no corpo do aprendizado aceito, essas realizações tendem a assumir um ar de finalidade. Portanto, é apenas uma questão de convenção em que ponto um assunto termina e o outro começa. Além disso, é possível que um excelente estudioso não consiga encontrar um lugar para si nas divisões departamentais estabelecidas. Um estudioso medíocre pode ser preferido a ele simplesmente porque seu trabalho se encaixa no esquema tradicional. Qualquer instituição tende a se considerar um fim em si mesma. (Cap. 6.)

Em 1948, já com 65 anos de idade, Jaspers aceitou o convite para lecionar na universidade de Basileia, na Suíça, e decidiu por recomeçar a vida acadêmica naquele país.

A morada dos sábios

Existe algumas pressuposições sobre a universidade que advém do histórico do sucesso da universidade no projeto civilizatório das sociedades, como a noção de que é a morada das melhores mentes ou a mais importante alavanca do avanço tecnológico e científico. Essas pressuposições não apenas são erradas mas também contribuem para a falta de avaliação crítica da universidade.

O simples exame da relação de autores canônicos refuta a ideia de que as universidades são a morada das melhores mentes. Considerando-se apenas a era moderna, a maior parte dos pensadores do Iluminismo, incluindo o editor e os principais colaboradores da primeira Enciclopédia, não tinha vínculos com universidades. Os grandes pensadores e cientistas dos séculos XIX e XX eram independentes ou tiveram apenas curtas passagens por universidades, como: Arthur Schopenhauer (1788-1860), John Stuart Mill (1806-73), Charles Darwin (1809-82), Gregor Mendel (1822-84) e Friedrich Nietzsche (1844-1900). Os exemplos do século XX incluem: George Santayana (1863-1952), Bertand Russell (1872-1970), José de Ortega y Gasset (1883-1955), Ludwig Wittgenstein (1889-1951), Jean Paul Sartre (1905-80) e Simone du Beauvoir (1908-86). Outro exemplo notório é Albert Einstein (1879-1955), que escreveu as suas duas teorias de relatividade quando trabalhava num escritório de patentes, e só posteriormente virou professor universitário.

A ideia de que as universidades são os conduítes por excelência do conhecimento é também falsa. Os brilhantes criadores das startups da tecnologia da informação, que deram origem à a Apple e a Microsoft, não trabalharam em universidades mas em suas casas e garagens. O cientista Greig Venter, (1946-), que, em 2001, publicou a sequência completa dos genes humanos, também não tinha ligações com nenhuma universidade. Ele fez esse trabalho na empresa Celera Genomics, que ele próprio fundou, em 1988, com o objetivo de sequenciar e analisar genomas.

Embora o conhecimento seja um único conjunto de entendimentos, a hiperespecialização resultante do aprofundamento do conhecimento gerou uma multiplicidade de departamentos nas universidades, sendo que muitos dos quais passaram a funcionar como feudos. Um fato bastante observado nesses feudos é a blindagem da disciplina do chefe de departamento contra a contratação de professores de capacitação maior. Na melhor das hipóteses, os novos mestres ou doutores tem oportunidades de lecionar numa universidade em áreas secundárias ou terciárias às de suas especializações. Assim, um jovem gênio da área de cálculo diferencial acaba por lecionar não no departamento de matemática, mas no departamento de economia.

Ultimamente tem surgido muitas críticas às universidades do Ocidente, em especial àquelas que dependem da contribuição financeira do Estado. Como exemplos de críticos da universidade eu gostaria de citar Roger Scruton (1944-2020), David Horowitz (1939-), Camile Paglia ( 1947-), Stephen Hicks (1960-) e Jordan Peterson (1962-). Todos esses concordam que a universidade ocidental está decadente, e apontam a narrativa coletivista[xv] que nelas se aninhou a partir da década de 1960, como sendo a maior causa dessa decadência. O mais contundente desses críticos é Scruton, falecido em janeiro deste ano, que escreveu: “Não podermos mais confiar a nossa alta cultura às universidades.” E ainda: “Quando as instituições são incuravelmente corrompidas, assim como as universidades foram corrompidas pelo comunismo, nós devemos começar de novo, mesmo que o custo seja tão alto quanto foi na Europa ocupada pelos soviéticos”.

 Conclusão

É difícil encontrar uma pessoa sensata que negue a importância do ensino ou que não considere a universidade como o seu pináculo. Entretanto, o ensino e a universidade também têm faltas e fraquezas. Os sinais dessas estão na cegueira deliberada acerca de abusos de poder, ineficiências e nepotismos. Sobre os nepotismos, esses apenas aparecem em boatos, e a questão é quase sempre varrida para debaixo do tapete.[xvi]. Conforme escreveu David Hume, “a corrupção das melhores coisas resulta na geração das piores”. Encarar de frente os problemas das universidades é uma condição necessária para assegurar que sobrevivam e continuem cumprindo seus objetivos de ensino e pesquisa.

Referências

Cronck, Nicholas. Voltaire: A Very Short Introduction. Oxford University Press. 2017.

Davies, Norman. Vanished Kingdoms: The History of Half Forgotten Europe. 2011.

Greenblatt, Stephen. The Swerve: How the World Became Modern. Norton, 2011.

Jaspers. K. The Idea of the University. Edited by Karl W. Deutsch. Preface by Robert Ulich. Boston, Bacon Press, 1959.

Scruton, R. The end of the university. First Things, April 2015. (Disponível em português em PortVitoria, 20, 2020).

Vretos, Theodore. Alexandria, City of Western Mind (Alexandria, cidade da mente ocidental). 2001.

Wiesehöfer, Joseph. Ancient Persia from 550 BC to 650 AD. Translated by Azizeh Azodi. L. B. Tauris Publishers, London. 1996. Kindle edition.

Williams, Hywel. Emperor of the West. Charlemagne and the Carolingian Empire. Quercus, 2010.

Outras (Consultar JPO)

                       

Joaquina Pires-O’Brien, uma brasileira residente no Reino Unido,  é fundadora e editora de PortVitoria.

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Notas

[i] O termo ‘mundo helênico’ refere-se à cultura grega do mundo mediterrâneo durante os três séculos após Alexandre, o Grande, que morreu em 323 EC.

[ii] A cidadania grega era entendida como a afiliação formal à polis, que dava direitos como votar em questões do governo, ser votado para cargos no governo, e, possuir terras. Devido a esse objetivo, é mister entender o sistema grego de cidadania. Havia uma regra de que apenas aqueles residentes livres e que podiam rastrear sua ascendência a um famoso pioneiro da cidade eram considerados cidadãos. Essa regra abria exceções para a pessoas de fora dotadas de grande riqueza ou de habilidades valiosas. A noção de cidadania da Roma antiga era parecida com a dos gregos em termos de responsabilidades e privilégios, Embora os romanos fossem bem mais abertos do que os gregos na concessão da cidadania, Roma instituiu duas categorias de cidadania, com e sem o direito ao voto.

[iii] Na mitologia grega, musas inspiradoras da literatura, da ciência e das artes eram as nove filhas de Zeus e Mnemósine (a personificação da memória). São elas: Calíope (da poesia épica), Clio (da história), Érato (da poesia de amor), Euterpe (da poesia lírica), Melpômene (da tragédia), Polihimnia (da poesia sagrada e da eloquência), Terpsícore (da dança), Tália (da comédia) e Urânia (da astronomia). Dentre as diversas narrativas acerca das musas destaca-se o poema ‘Erga kaí Hemérai’ (lat.: ‘Opera et Dies’; ing.: Works and Days’), de Hesíodo, escrito em torno de 700 AEC.

[iv] Após a morte prematura de Alexandre em 322 AEC, nenhum herdeiro foi inicialmente apontado para o trono e os generais macedônios que acompanharam Alexandre nas suas conquistas, 74 ao todo, tramaram a forma de dividir o império entre si. Dentre esses, Arridaeus era meio-irmão reconhecido de Alexandre, e Ptolomeu um possível meio-irmão. Ptolomeu havia sido o principal guarda-costas de Alexandre, e portanto, tinha uma ascendência sobre os demais. Ele encarregou Arridaeus de trazer o corpo de Alexandre para que fosse sepultado no Egito. Em 321 AEC, os antigos generais de Alexandre fizeram o acordo conhecido Partição de Triparadisus. Através deste, Felipe Arrhidaeus, mais o filho de Alexandre com Roxana, que nasceu após a morte do pai, foram ambos reconhecidos como herdeiros. Em consequência disso, o império macedônico ganhou dois reis, Felipe III, um portador de doença mental, e Alexandre IV, que ficou sob a guarda de Perdica. Tanto Felipe II quanto Alexandre IV foram assassinados, assim como Perdica. Daí pra frente os generais competiram entre si pelos diversos reinos acéfalos. Ptolomeu I Soter (323-283 AEC) virou rei do Egito e fundou a dinastia dos Ptolomeus, que inclui a infame Cleópatra VII. Entre 312 e 302 AEC, Seleuco organizou um exército de mercenários e ficou com a Síria, então um vastíssimo império.

[v] Tribo germânica que ocupava os atuais territórios da Bélgica, França, Luxemburgo, Holanda e oeste da Alemanha.

[vi] A expressão ‘educação liberal’ é assim chamada por ser o tipo de educação que considerada digna do homem livre, em contraposição com a educação de escravos, que era sempre dirigida a algum ofício. As artes liberais da antiguidade grega foram preservadas no ensino da escola helenística, que, por sua vez, influenciou o sistema educacional latino, baseado no trivium (o trívio do ensino básico: gramática, retórica e lógica) e no quadrivium (o quadrívio do ensino mais adiantado: matemática, geometria, astronomia e música).

[vii] A emergência do cristianismo provocou o desmantelamento do sistema de educação liberal oferecida tanto no mundo grego quanto no latino. O primeiro pensador cristão a defender a educação liberal foi Agostinho (354-430), que apontou o valor do saber antigo, inspirando alguns pensadores cristãos a reconsiderar o ensino das artes liberais. No primeiro século após a queda do Império Romano do Ocidente as artes liberais receberam a bipartição em trivium (gramática, retórica e lógica) e quadrivium (matemática, geometria, astronomia e música), após terem sido reabilitadas pelos educadores Boecio (c. 480-c.525 EC) e Cassiodoro (c. 490-c.583 EC).

[viii] O programa educacional introduzido por Carlos Magno foi orientado pelo sábio inglês Alcuíno (Ealhwine, Alhwin ou Alchoin) de Iorque (723-804 EC), clérigo católico, estudioso e professor, nascido na Inglaterra, onde teve como mentor o Venerável Beda (673-735 EC). Durante uma estadia na Itália, Alcuíno conheceu Carlos Magno e tornou-se seu amigo e conselheiro. Sob a orientação de Alcuíno, Carlos Magno ordenou o estabelecimento de escolas episcopais, em conventos, mosteiros e igrejas, voltadas tanto para a formação de padres quanto para a educação da população leiga.

[ix] Luís, o Pio, foi o último monarca do império carolíngio, o qual foi dividido após a sua morte. O Império Carolíngio transformou-se, então, em duas unidades políticas – França Oeste que se tornou o reino da França, e França Leste, a precursora da Áustria e da Alemanha. Embora Carlos Magno tivesse recebido do papa o título de ‘Imperador Romano’, o primeiro a receber o título de ‘Sacro Imperador Romano’ foi o rei alemão Otão I, coroado na catedral de Aix-la-Chapelle em 936.

[x] Toledo foi capturada em 1085 e passou a ser a cidade mais importante da Espanha cristianizada.

[xi] Um grande avanço nessa área ocorreu no século XIII, quando os países da Europa e do Oriente Médio começaram a emitir moedas de ouro. Com isso, o comércio por trocas desapareceu e deu lugar ao sistema monetário, bem como ao sistema de contabilidade baseado em livros-caixa de dupla entrada, introduzidos entre 1050 e 1350. O livro-caixa foi uma inovação altamente relevante pois permitia visualizar a situação do negócio a qualquer momento. A partir daí surgiu o sistema de treinamento de aprendizes de contabilidade e de bancos.

[xii] Frederico II (1194-1250), também chamado Constantino Frederico Roger, era também rei da Sicília, duque da Suábia e rei alemão, e apesar do título de Sacro Imperador Romano, ele defendeu o poder imperial contra o papado.

[xiii] Galileu havia escrito um ensaio resgatando a tese heliocêntrica de Copérnico, depois de ter observado as órbitas dos planetas ao redor do sol com o uso do seu telescópio. Graças às amizade dele com a família Médici, ele foi deixado sem punição até 1632, mas, em 1633, a pena de ser queimado na fogueira foi comutada pela prisão domiciliar, depois que ele admitiu publicamente que a Terra era o centro estacionário do universo. Galileu perdeu o cargo na universidade e passou o resto da vida em Florença, onde morreu aos 77 anos de idade.

[xiv] Muitos autores reconhecem um Iluminismo maior, que inclui tanto Idade da Razão do século XVII quanto o Século das Luzes do século XVIII.

[xv] O filósofo alemão Juhann Gottlieb Fishte (1762-1814) foi um dos primeiros a pregar a ideia da superioridade do coletivismo sobre o individualismo, com sua concepção teológica do ‘eu’. Para Fichte, o indivíduo nada vale sem a sociedade, e deve deixar de existir, a não ser para o grupo – Gattung. O homem isolado contradiz a sua própria natureza. A sociedade é a grande fogueira em torno do qual as pessoas se juntam. Outro filósofo alemão, Georg W. F. Hegel (1770-1831), tomou a ideia de Fichte sobre a primazia do grupo sobre o indivíduo para a sua ideia de um espírito do mundo que dirige o curso da história.

[xvi] Entretanto, um estudo sobre o nepotismo nas universidades da Itália foi publicado como notícia no jornal The Independent, do Reino Unido, de 25 de setembro de 2010: “A revista de investigação L’Espresso e o jornal La Repubblica revelaram o surpreendente grau em que os empregos de professor universitário  são mantidos na família, no esclerótico sistema de ensino superior da Itália. Na Universidade La Sapienza, em Roma, por exemplo, um terço do corpo docente tem membros próximos da família como colegas. No geral, as instituições superiores do país têm 10 vezes mais chances de empregar dois ou mais membros da mesma família que outros locais de trabalho.” E ainda: “Nenhuma instituição italiana aparece no ranking mundial de universidades do Times Higher Education 2010.” Fonte: https://www.independent.co.uk/news/world/europe/family-fiefdoms-blamed-for-tainting-italian-universities-2089120.html

Roger Scruton

As universidades existem para fornecer aos alunos o conhecimento, as habilidades e a cultura que os prepararão para a vida, enquanto aumentam o capital intelectual do qual todos nós dependemos. Evidentemente, os dois propósitos são distintos. Um diz respeito ao crescimento do indivíduo; o outro, à nossa necessidade compartilhada de conhecimento. Mas eles também estão entrelaçados, de modo que os danos a um objetivo também são danos ao outro. É isso o que estamos vendo agora, à medida que nossas universidades se voltam cada vez mais contra a cultura que as criou, retendo-a dos jovens.

Os anos passados ​​na universidade pertencem aos ritos de iniciação estudados pelos antropólogos vitorianos, nos quais, os nascidos na tribo assumem o ônus de perpetuá-la. Se nós perdemos isso de vista, parece-me, então corremos o risco de desatrelar a universidade de seu objetivo social e moral, que é entregar um estoque de conhecimento junto com a cultura que dá sentido ao mesmo.

Esse objetivo tem sido central na tradição educacional que criou a civilização ocidental. A paideia[1] grega considerava o cultivo da cidadania como o núcleo do currículo. A prática religiosa e a educação moral continuaram sendo uma parte fundamental dos estudos universitários durante a Idade Média, e o ideal renascentista do indivíduo virtuoso foi a inspiração para o currículo emergente das studia[2] de humanidades. A universidade que emergiu do Iluminismo[3] não relaxou as rédeas morais, mas considerou a aprendizagem como um modo de vida disciplinado, cujas regras e procedimentos a diferenciam dos assuntos cotidianos. No entanto, forneceu aos assuntos cotidianos a perspectiva de longo prazo sem a qual nenhuma atividade humana faz sentido. Até a turbulenta vida estudantil das universidades alemãs durante o século XIX, quando o duelo se tornou parte da cultura universitária, estava contida em códigos formais e uniformes de comportamento, e, na rotina colegial. Além disso, era dedicada a um peculiar amálgama de disciplina moral, conhecimento factual e competência cultural, aquilo que os alemães conhecem como Bildung[4].

No decorrer do século XIX, entretanto, as universidades sofreram uma rápida mudança no seu acolhimento público. O declínio do modo de vida religioso, a ascensão de uma classe média ansiosa por status social e poder político, e as demandas pelo conhecimento e habilidades técnicas exigidas por uma economia industrial, pressionaram as universidades a mudar os seus currículos, o modo de recrutamento de alunos e professores, e, o seu relacionamento com a cultura circundante. Novas universidades foram fundadas na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos da América, como a University College London, datada de 1826, a qual foi dotada de um currículo explicitamente secular, projetado para produzir mentes científicas capazes de varrer as teias de aranha teológicas nas quais todas as disciplinas universitárias encontravam-se envolvidas.

No entanto, apesar dessas mudanças, que forçaram as instituições de ensino superior a uma nova consciência de missão, a universidade manteve o seu status de guardiã da alta cultura. Era um lugar onde o pensamento especulativo, a investigação crítica, e o estudo de livros e idiomas importantes eram mantidos numa atmosfera de isolamento refletivo. Quando o cardeal Newman[5] escreveu The Idea of ​​a University (A ideia da universidade), em 1852, o seu motivo maior foi defender a antiga concepção da universidade, como um lugar à parte, um recinto quase monástico, oposto à mentalidade utilitária da nova sociedade industrial. Para Newman, a universidade existe para moldar o caráter daqueles que a frequentam. Imergir os alunos em um ambiente colegiado e imprimir neles um ideal da mente educada ajuda a transformar seres humanos brutos em gentlemen (cavalheiros)[6]. Essa, sugeriu Newman, é a verdadeira função social da universidade. Dentro do campus, o adolescente recebe uma visão dos fins da vida; e ele tira da universidade a única coisa que o mundo não fornece, que é uma concepção de valor intrínseco. E, é por isso, que a universidade é tão importante na era do comércio e da indústria, quando a tentação utilitarista nos assedia por todos os lados, e quando corremos o risco de tornar todos os propósitos, materiais. Em outras palavras, como Newman via, correndo o risco de permitir que os meios engulam os fins.

Muita coisa mudou desde a época de Newman. Sugerir que as universidades estão envolvidas na produção de ‘cavalheiros’ é mais do que levemente ridículo, em uma época em que a maioria dos estudantes é mulher. A universidade ideal de Newman foi modelada nas atuais universidades de Oxford, Cambridge e no Trinity College, de Dublin, as quais eram mantidas como instituições quase religiosas dentro da alçada da Igreja Anglicana. Na época de Newman, essas universidades admitiam apenas homens, não permitiam que seus acadêmicos residentes se casassem, uma boa parte dos os alunos de graduação eram recrutados nas escolas particulares, e, o seu currículo era solidamente baseado em latim, grego, teologia e matemática. A rotina dos alunos girava em torno dos colleges[7] ou faculdades, onde os dons[8] e os estudantes de graduação tinham seus alojamentos, e onde eles jantavam juntos todas as noites num salão, vestidos com suas becas.

Apenas uma pequena proporção dos que frequentavam as antigas universidades britânicas na época de Newman considerava o estudo como o real objetivo de se destacar na alma mater[9]. Alguns estavam lá para remar ou jogar rugby; alguns estavam em compasso de espera para o título que deveriam herdar; e alguns tumultuavam com os seus companheiros enquanto aguardavam comissões no exército. Quase todos eram membros de uma elite social que havia obtido essa maneira ímpar de se perpetuar, revestindo o seu poder com o verniz da alta cultura. E nesse belo e protegido ambiente, você também poderia levar a cultura a sério. Com dinheiro no banco e tempo nas mãos, não era tão difícil dar as costas aos valores utilitários.

A universidade de hoje difere da do cardeal Newman em quase todos os aspectos. Ela recruta de todas as classes da sociedade, é aberta igualmente para homens e mulheres, e, é frequentemente financiada e aprovisionada pelo Estado. Pouco ou nada resta da rotina colegial equilibrada que moldou o espírito de Newman, e o currículo não se concentra em assuntos sublimes e em matérias sem propósito, como o grego antigo, no qual paira a visão fascinante de uma vida além do comércio; a universidade de hoje é centrada nas ciências, nas disciplinas vocacionais, e os agora onipresentes ‘estudos empresariais’ (business studies) ou, através dos quais os alunos supostamente aprendem os caminhos do mundo.

Além disso, as universidades se expandiram para oferecer os seus serviços a uma proporção cada vez maior da população, e, para absorver uma fatia cada vez maior do orçamento nacional. A receita da indústria do ensino universitário no estado de Massachusetts, nos Estados Unidos, é maior do que a de qualquer outra indústria. Em todas as principais cidades britânicas ou americanas há pelo menos uma universidade, sendo que as universidades estaduais americanas podem ter, a qualquer momento, mais de 50.000 estudantes. O ensino superior é oferecido como um direito a todos os que completaram o baccalauréat francês ou o Feststellungsprüfung alemão, e, os políticos europeus costumam dizer que a tarefa da reforma educacional não estará completa até que todas as crianças possam, no devido tempo, se formar. A universidade não está mais no negócio de criar uma elite social, mas no negócio rival de garantir que as elites sejam uma coisa do passado.

Sob o pretexto de fornecer um ‘propósito para além do objetivo’, os críticos da universidade poderiam dizer que a universidade exaltada por Newman havia sido projetada para proteger os privilégios de uma classe alta existente, e para colocar obstáculos ao avanço de seus concorrentes. A universidade transmitia habilidades fúteis, estimadas precisamente pela sua futilidade, uma vez que isso as tornavam um distintivo de afiliação que poucos podiam adquirir. E, longe de avançar os fundos do conhecimento, existia para salvaguardar mitos sagrados: colocou uma barreira protetora de encantamento em torno da religião, dos valores sociais e da alta cultura do passado, e, fingiu que as habilidades recônditas necessárias para usufruir desse encantamento –  o latim e o grego, por exemplo – eram as formas mais altas de conhecimento. Em suma, a universidade newmanita era um instrumento para a perpetuação de uma classe de lazer. A cultura que transmitia não era propriedade de toda a comunidade, mas apenas uma ferramenta ideológica, através da qual os poderes e privilégios da ordem existente eram envoltos em sua aura de legitimidade.

Agora, por outro lado, temos universidades dedicadas ao crescimento do conhecimento, que não são meramente não elitistas, mas antielitistas em sua estrutura social. Elas não fazem discriminação por motivos de religião, sexo, raça ou classe. São locais de mentalidade aberta à pesquisa e ao questionamento, sem compromissos dogmáticos, e cujo objetivo é promover o conhecimento através de um espírito de livre investigação. Esse espírito é transmitido aos seus alunos, que têm a maior variedade possível de opções de currículo, e, adquirem não apenas os conhecimentos firmemente fundamentados, mas também aqueles que são eminentemente úteis em suas vidas futuras, como, por exemplo,  a administração de empresas, a administração de hotéis, e estudos de relações internacionais. Em resumo, as universidades evoluíram de clubes socialmente exclusivos voltados ao estudo de futilidades preciosas, para centros de treinamento socialmente inclusivos voltados à propagação das habilidades necessárias. E a cultura que elas transmitem não é a de uma elite privilegiada, mas de uma ‘cultura inclusiva’ que qualquer pessoa pode adquirir e desfrutar.

Dito isto, no entanto, hoje é mais provável que um visitante de uma universidade americana depare com as variedades locais de censura do que com qualquer atmosfera de livre investigação. É verdade que os americanos vivem em uma sociedade tolerante. Mas, eles também criam guardiães vigilantes, determinados a detectar e extirpar os primeiros sinais de ‘preconceito’ entre os jovens. E esses guardiães têm uma tendência inata de gravitar para as universidades, onde a própria liberdade de currículo e a abertura à inovação lhes proporcionam uma oportunidade de exercer as suas paixões censórias. Livros são lançados ou retirados do plano de estudos com base em sua correção política; os códigos de fala e os serviços de aconselhamento oferecidos policiam o idioma e o pensamento de alunos e professores; os cursos são projetados para transmitir conformidade ideológica, e os alunos são frequentemente penalizados por terem tirado alguma conclusão herética sobre as questões principais do dia. Nas áreas sensíveis como raça, sexo, e, a essa coisa misteriosa chamada ‘gênero’, a censura é abertamente direcionada não apenas aos estudantes, mas também a qualquer professor, por mais imparcial e escrupuloso que seja, que chegue a conclusões erradas.

Evidentemente, a cultura do Ocidente continua sendo o principal objeto de estudo nos departamentos de humanidades. No entanto, o objetivo não é instilar essa cultura, mas repudiá-la – examiná-la por todas as maneiras pelas quais ela peca contra a visão de mundo igualitária. A teoria ideológica marxista ou qualquer de seus descendentes feministas, pós-estruturalistas, ou foucaultianos, serão convocados como prova de que as preciosas conquistas de nossa cultura devem o seu status ao poder que fala através delas, e portanto, são desprovidas de valor intrínseco. Em outras palavras: o antigo currículo, que Newman via como um fim em si, foi rebaixado a um meio. Dizem que esse antigo currículo existia com a finalidade de manter as hierarquias e as distinções, formas de exclusão e dominação que mantinham a elite dominante. Os estudos nas humanidades são agora projetados para provar isso – para mostrar como, através de suas imagens, histórias e crença, através de suas obras de arte, sua música e sua linguagem, a cultura do Ocidente não tem um significado mais profundo do que o poder que serviu para perpetuar. Dessa maneira, a ideia da nossa cultura ter sido herdada como uma esfera autônoma do conhecimento moral e que requer aprendizado, reflexão e imersão para aprimorar e reter, é lançada inteiramente ao vento. A universidade, em vez de transmitir cultura, existe para desconstruir a cultura, remover sua ‘aura’ e dar o aluno, após quatro anos de dissipação intelectual, com a visão de que tudo vale e nada importa.

Surge, portanto, a impressão de que, fora das ciências exatas, não existe um corpo de conhecimento recebido, e que não há nada a aprender salvo as atitudes doutrinárias. Em The Closing of the American Mind  (O fechamento da mente americana), Allan Bloom lamentou o relativismo lânguido que havia infectado as humanidades – a crença, compartilhada por estudantes e professores, de que não existem valores universais, e, que estudamos apenas por curiosidade os trabalhos que vieram até nós. Se permanecermos indiferentes ao desafio moral com o qual eles nos confrontam, isso é em grande parte devido ao fato de que não acreditamos mais que exista um desafio moral real.

Embora a observação de Bloom seja verdadeira, ela não é toda a verdade. O relativismo moral abre caminho para um novo tipo de absolutismo. O currículo emergente nas ciências humanas é, de fato, muito mais censurador, em questões cruciais, do que aquele que se esforça para substituir. Não é mais permitido acreditar que existam distinções reais e inerentes entre as pessoas. Todas as distinções são ‘culturalmente construídas’ e, portanto, mutáveis. E o objetivo do currículo é desconstruí-las, substituir a distinção pela igualdade em todas as esferas em que a distinção tenha sido um componente da cultura herdada. Os estudantes devem acreditar que, em aspectos cruciais, e em particular nos assuntos relacionados à raça, sexo, classe, papel e refinamento cultural, a civilização ocidental é apenas um dispositivo ideológico arbitrário, e certamente não (como a sua própria imagem sugere) um repositório do conhecimento moral real. Além disso, eles devem aceitar que o objetivo de sua educação não é herdar essa cultura, mas questioná-la, e, se possível, substituí-la por uma nova abordagem ‘multicultural’ que não faça distinção entre as muitas formas de vida pelas quais os estudantes encontram-se cercados.

Duvidar dessas doutrinas é cometer uma profunda heresia e ser uma ameaça para a comunidade da qual a universidade moderna[10] precisa. Pois a universidade moderna tenta atender aos alunos, independentemente de religião, sexo, raça ou formação cultural, e até mesmo da capacidade. É, em grande parte, uma criação do Estado, estando totalmente inscrita na ideia estadista de como uma sociedade deveria ser –  a saber, uma sociedade sem distinções. Portanto, a universidade moderna é tão dependente da crença na igualdade quanto a universidade do cardeal Newman dependia da crença em Deus. O seu objetivo é criar um microcosmo da sociedade futura, assim como a faculdade do cardeal Newman era um microcosmo do mundo dos gentlemen. E, como a nossa cultura herdada é um sistema de distinções, opondo-se à igualdade em todas as esferas em que o gosto, o julgamento e o discernimento fazem reivindicações, a universidade moderna não tem escolha a não ser opor-se à cultura ocidental.

Portanto, apesar de sua aspiração inata à afiliação, os jovens são instruídos na universidade que eles vêm do nada e que não pertencem a nada: que todas as formas de afiliação preexistentes são nulas e sem efeito. Eles recebem um rito de passagem para o nada cultural, pois essa é a única maneira de alcançar a meta igualitária. No lugar das antigas crenças de uma civilização baseada na piedade, no discernimento e na distinção, eles recebem as novas crenças de uma sociedade baseada na igualdade e na inclusão; e, são informados de que é um crime julgar outros estilos de vida. Se o objetivo da universidade moderna fosse simplesmente substituir um sistema de crenças por outro, ela seria aberta ao debate racional. Mas o objetivo é substituir uma comunidade por outra.

Qual é a alternativa? Se as universidades não propagam a cultura que lhes foi confiada, aonde mais os jovens podem procurá-la? Algumas reflexões em resposta a essa pergunta foram sugeridas por experiências que começaram para mim em 1979. Os escritos de Foucault, Deleuze e Bourdieu estavam começando a criar ondas na Universidade de Londres, onde eu lecionava. Os meus alunos estavam sendo informados de todos os lados que não existe conhecimento nas humanidades, e, que as universidades existem não para justificar a cultura como uma forma de conhecimento, mas para desmascará-la como uma forma de poder.

Em resposta, me perguntei o que exatamente eu estava tentando ensinar e por quê. Ao apresentar aos alunos as grandes obras de filosofia, literatura e crítica que eu havia absorvido na escola e na universidade, eu senti que estava oferecendo a eles o quadro de referência, o estoque de especulações, os paradigmas de discernimento e alusão, para que, através dos quais, entendessem o seu mundo. Eu estava oferecendo a eles a afiliação à cultura, não como um corpo de doutrina, mas como uma conversa contínua. E isso, eu senti, era uma forma de conhecimento real: não o conhecimento de fatos e teorias, mas conhecimento do que sentir, como se relacionar, e a que pertencer. No entanto, esse corpo de conhecimento, como eu o supunha, estava agora sendo descartado como uma ideologia burguesa, ou – no jargão de Foucault – como o episteme, o saber acumulado, de uma classe dominante.

Um dia, veio-me um convite, de boca, para falar em um seminário clandestino em Praga. Eu aceitei; como resultado, entrei em contato com pessoas para quem a busca pelo conhecimento e pela cultura não era um luxo dispensável, mas uma necessidade. Nada mais poderia lhes proporcionar o que buscavam, que era uma rota de fuga do mundo das mentiras pelas quais estavam cercados. E discutindo a herança cultural ocidental entre si, eles foram marcados como hereges, que arriscavam a detenção e a prisão apenas por se reunir como eles faziam. Ironicamente, talvez a maior conquista intelectual do partido comunista tenha sido convencer as pessoas de que a distinção feita por Platão entre conhecimento e opinião é válida, e, que a opinião ideológica não é meramente distinta do conhecimento, mas inimiga do conhecimento; é uma doença implantada no cérebro humano, que impossibilita distinguir entre as ideias verdadeiras e as ideias falsas. Essa foi a doença espalhada pelo Partido. E foi espalhado por Foucault também. Pois foi Foucault quem ensinou os meus colegas a avaliar toda ideia, todo argumento, toda instituição, convenção ou tradição em termos da ‘dominação’ que mascara. Verdade e falsidade não tinham significado real no mundo de Foucault; tudo o que importava era o poder.

Essas questões foram sublinhadas com intensidade para os tchecos e eslovacos no ensaio de Václav Havel ‘O poder dos impotentes’ (1978), exortando os seus compatriotas a ‘viverem na verdade’. Como eles poderiam fazer isso, se não eram capazes de distinguir o verdadeiro do falso? E como eles poderiam distinguir o verdadeiro do falso sem o benefício da cultura e do conhecimento real? Portanto, a busca por essas coisas se tornou urgente. E o preço dessa busca foi alto – assédio, prisão, privação de direitos e privilégios comuns, e, uma vida à margem da sociedade. Quando algo tem um preço moral alto, apenas as pessoas comprometidas o perseguem. Por isso, encontrei, nos seminários clandestinos, um corpo discente ímpar – pessoas dedicadas ao conhecimento, como eu o entendia, e cientes da facilidade e do perigo de substituir o conhecimento pela mera opinião. Além disso, eles procuravam conhecimento no lugar onde é mais necessário e também mais difícil de encontrar – na filosofia, na história, e na arte e literatura, nos lugares onde o entendimento crítico, e não o método científico, é o nosso único guia. E o mais interessante para mim foi o desejo urgente entre todos os meus novos alunos de receber a herança cultural que lhes era transmitida. Eles haviam sido criados em um mundo onde todas as formas de pertencimento, exceto a submissão ao Partido no poder, haviam sido marginalizadas ou denunciadas como crimes. Eles entenderam instintivamente que uma herança cultural é preciosa, precisamente porque oferece um rito de passagem para o que você realmente é e para a comunidade de sentimentos que é sua.

Havia outra característica interessante dos seminários clandestinos, que é o faro de que os seus recursos intelectuais eram tão escassos. Os acadêmicos do Ocidente são obrigados a publicar artigos e livros para avançar em suas carreiras e, nos anos que se seguiram à Segunda Guerra Mundial, isso levou a uma proliferação de literatura que, se não de secunda categoria, do ponto de vista intelectual, quase sempre não tem mérito literário – é pesada, cheia de notas de rodapé, sem imagens informativas ou eloquência, e, com um conteúdo que é ao mesmo tempo efêmero e impossível de ignorar. O peso dessa pseudo literatura oprime tanto os professores quanto os alunos das humanidades, e agora é praticamente impossível descobrir os clássicos que estão enterrados debaixo dela.

Às vezes eu penso que o maior serviço à nossa cultura foi prestado pela pessoa que incendiou a biblioteca de Alexandria, garantindo assim que nada sobrevivesse àquele volume de literatura além daquelas obras consideradas tão preciosas que toda pessoa educada teria suas próprias cópias. Os comunistas haviam prestado um serviço semelhante à vida intelectual na Tchecoslováquia, impedindo a publicação de qualquer coisa, exceto aquelas obras consideradas tão preciosas que as pessoas estavam preparadas para produzi-las em laboriosas edições samizdat[11]. Estas obras eram passadas ​​de mão em mão e lidas com grande interesse por pessoas para quem o conhecimento, e não o progresso na carreira, era o objetivo. Quão revigorante era isso, depois de uma vida entre revistas acadêmicas e suas notas de rodapé!

Obviamente, as circunstâncias dos seminários clandestinos eram incomuns, e, ninguém iria querer reproduzi-las. No entanto, durante os dez anos em que trabalhei com outras pessoas para transformar esses grupos particulares de leitura em uma universidade estruturada (embora clandestina), aprendi duas verdades muito importantes. A primeira é que uma herança cultural é realmente um corpo de conhecimentos e não um conjunto de opiniões – conhecimento do coração humano, e da visão de longo prazo de uma comunidade humana. A segunda é que esse conhecimento pode ser ensinado e que não é necessário um vasto investimento de dinheiro para isso; e, certamente não os US $ 50.000 por estudante por ano exigidos por uma universidade da Ivy League[12]. Requer um punhado de livros que passaram no teste do tempo e são valorizados por todos que realmente os estudam. Requer professores com conhecimento e alunos ansiosos para adquiri-lo. E isso, por sua vez, requer uma tentativa contínua de expressar o que se aprendeu, em ensaios ou em encontros cara a cara com um crítico. Todo o resto –  administração, tecnologia da informação, salas de aula, bibliotecas, recursos extracurriculares – é, em comparação, um luxo insignificante.

Quando as instituições são incuravelmente corrompidas, assim como as universidades foram corrompidas pelo comunismo, nós devemos começar de novo, mesmo que o custo seja tão alto quanto foi na Europa ocupada pelos soviéticos. Para nós, o custo não é tão alto. O presente mais precioso de nossa civilização, e o que estava mais ameaçado durante o século XX, é a liberdade de associação. Como essa liberdade ainda existe, e em nenhum lugar mais do que na América, o fato de não podermos mais confiar nossa alta cultura às universidades importa menos. O destino de Harvard e Yale é inevitavelmente uma preocupação geral; mas também existem instituições de ensino superior como o St. John’s College, em Anápolis, ou o Hillsdale College, no Michigan, onde pessoas que acreditam no currículo antigo estão preparadas para ensiná-lo. Existem grupos privados de leitura, cursos on-line, associações de acadêmicos, grupos de reflexão (think tanks) e programas de palestras públicas. Existem instituições como o Intercollegiate Studies Institute (Instituto de Estudos Intercolegiais), que oferece um serviço de resgate para estudantes que foram vítimas do politicamente correto. Existem periódicos como este, que servem como ponto focal para discussões que, no final das contas, não precisam de uma universidade para ocorrer. Parece-me que nós nos deixamos intimidar pela crença de que, como as universidades têm bibliotecas, laboratórios, professores instruídos e dotações substanciais, elas são também repositórios indispensáveis ​​de conhecimento. Nas ciências, isso é verdade. Mas isso não é mais verdade nas humanidades.

No entanto, o caminho a seguir não é tão claro quanto gostariam os defensores do antigo currículo. Os programas dos ‘grandes livros’ (o cânon literário), as pesquisas sobre a nossa herança cultural, os estudos comparativos da arte, da música e da arquitetura ocidentais – todas essas são escolhas óbvias. Mas por quê? O que distingue esses programas dos cursos de música pop, de desenho em quadrinhos, e dos estudos de gênero, que, tão facilmente, entram para substituí-los? Dizer que o currículo tradicional continha conhecimento real em oposição a distrações efêmeras apenas levanta outra pergunta. Pois nós não sabemos em que consiste realmente o conhecimento. Sentimos isso, é claro, como meus alunos tchecos sentiram. Sentimos o chamado da cultura que é nossa, e queremos dizer que, ao responder a esse chamado, estamos deixando o mundo da opinião e entrando no mundo do conhecimento. Mas por quê?

As respostas até o momento, ou são triviais – como quando Matthew Arnold nos diz, em Culture and Anarchy (Cultura e Anarquia), que uma alta cultura consiste no “melhor que já foi pensado e dito” – ou então, baseadas em alguma versão da visão iluminista de que o conhecimento cultural envolve transcender o particular no universal, substituindo as nossas lealdades constritivas e as comunidades imaginadas por algum ideal cosmopolita. E, há apenas um pequeno passo entre essa posição iluminista e o currículo multicultural e igualitário que adota o universal humano apenas porque toda a singularidade da herança cultural real foi retirada da mesma. Eu suspeito que, até que consigamos chegar a algo melhor do que essas duas abordagens, não conseguiremos escapar das garras das universidades, e tampouco nos sentiremos confiantes o suficiente para começar de novo sem elas.

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Ensaio publicado inicialmente na revista online First Things em abril de 2015. Tradução e notas de rodapé de Joaquina Pires-O’Brien (UK). Sir Roger Scruton (1944-2020), filósofo britânico, é considerado o maior filósofo do conservadorismo desde Edmund Burke (1729-1797).

 

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[1] Paideia (em grego antigo: παιδεία) é a denominação do sistema de educação e formação ética da Grécia Antiga, que incluía o ensino da Educação Física, Gramática, Retórica, Música, Matemática, Geografia, História Natural e Filosofia. O objetivo da paideia era formar um cidadão perfeito e completo, capaz de liderar e ser liderado e desempenhar um papel positivo na sociedade.

[2] Os Studia (sing. studium) eram um novo tipo de escola que surgiu no século XI na Itália.  Inicialmente havia apenas studia de conhecimento específico, mas posteriormente surgiram as studia generalia ou ‘escolas de estudos gerais.’  As primeiras eventualmente passaram a ser conhecidas como ‘faculdades’, do latim facultatem, uma tradução do termo grego ‘dynamis’, que significa ‘ramo de conhecimento’, enquanto que as segundas são reconhecidas como sendo as primeiras universidades.

[3] O Iluminismo, ou siècle des Lumières (literalmente ‘século das Luzes’) no francês, ou Aufklärung em alemão, refere-se ao movimento intelectual na Europa dos séculos XVII e XVIII, durante o qual as ideias sobre Deus, razão, natureza e humanidade foram sintetizadas em uma visão de mundo que obteve ampla aprovação no Ocidente, e, instigou desenvolvimentos revolucionários na arte, na filosofia e na política. O pensamento central do Iluminismo é a celebração da razão e o seu uso para ajudar as pessoas a entender o universo e a melhorar as suas condições.

[4] Bildung. Palavra alemã que designa a tradição alemã do auto cultivo. É sinônimo de educação e formação.

[5] John Henry Newman (1801-1890) foi um influente clérigo e homem de letras do XIX, na Inglaterra. Ele liderou o chamado movimento de Oxford, de 1833, pela reforma da Igreja Anglicana. Em 1843 ele deixou a Igreja Anglicana e se converteu para a Igreja Católica romana, dentro da qual foi ordenado padre e nomeado cardeal. O seu livro The Idea of the University (A Ideia da Universidade; 1852) defende a tradicional união entre o conhecimento e a religião das primeiras universidades, discorrendo sobre a filosofia e a teologia, o humanismo e o cristianismo, a razão e a revelação, a natureza e a Graça Divina, etc. Em 2019 Newman foi canonizado santo pelo Papa Francisco.

[6] Gentlemen. Inglês, plural; singular: gentleman. A palavra gentleman é traduzida para o português como cavalheiro, no sentido de homem educado e dotado de trejeito social e boas maneiras.

[7] Colleges. Inglês, plural; singular: college. No mundo anglófono a palavra college equivale à palavra `faculdade` e seus cognatos, empregados nas línguas latinas. Pode também significar ‘universidade’ ou ‘campus universitário’. Citando como exemplo a Universidade de Oxford, esta consiste de diversos colleges, cada qual com seu próprio caráter e história. Na Universidade de Oxford, a maioria dos colleges oferece refeições, bibliotecas, alojamento, esportes, e os mais variados eventos. Portanto, cada college é uma comunidade de alunos, professores e servidores.

[8] Dons. Inglês. Na Universidade de Oxford, dons são os governantes de cada college. Noutras universidades a palavra don é empregada para designar os professores de modo geral.

[9] Alma mater. Palavra Latina que significa literalmente ‘mãe nutridora da alma’, mas cuja conotação normal é a da universidade ou faculdade onde uma pessoa estudou.

[10] Ao usar a expressão ‘universidade moderna’ o autor não está contrastando o moderno e o pós-moderno mas simplesmente se referindo à universidade dos dias de hoje, isto é, das últimas décadas.

[11] A palavra Samizdat se refere a um sistema na ex-URSS e na Europa Oriental pelo qual livros e revistas proibidos pelo Estado eram impressos ilegalmente por grupos que se opunham ao Estado.

[12] Ivy League. Termo referente a oito universidades de prestígio no nordeste dos Estados Unidos: Harvard, Yale, Pensilvânia, Princeton, Columbia, Brown, Dartmouth e Cornell, assim chamadas devido à hera (ivy) que cresce em seus antigos prédios e muros. Os estudantes dessas universidades são chamados Ivy Leaguers.

 

Jo Pires-O’Brien

Review of the book Provocations by Camille Paglia. Pantheon Books, © 2018, 712pp

I still recollect the first time I ran across the name of Camille Paglia, the Italian-American woman of letters.  It happened in Brazil in 1992, when a one-page article by her, probably one of her syndicated columns, was published in a Brazilian weekly magazine, inside a larger article covering the troubles on the celebrations in Brazil of the 500 anniversary of Columbus epic voyage of discovery due to opposing activism. Paglia was the only public intellectual who dared to criticize the twin activism in the United States, which explains why her article was used in Brazil. After that, I began to pay attention to her name wherever it would appear in the media, and soon discovered that Paglia was a household name in the Anglophone world, and more recently, that she has many admirers in Brazil.

Paglia has been at the centre of the culture wars at the American colleges and universities, on the side that stands for tolerance to ideas and authentic scholarly principles. Her new book Provocations (2018) starts by listing the contraindications and indications, determined by people’s ways of thinking, before getting to the point of what the book is about. The collection of essays and short interviews in Provocations covers two and a half decades since her last essay collection was published in her 1994 book Vamps & Tramps. However, Provocations also includes essays on her previous books and interviews. According to Paglia, since her student days she wanted to develop an ‘interpretative’ style of writing that could integrate high and popular culture, which is how she describes her style in Provocations. Although she doesn’t say there that the biology of human nature is a crucial component of the interpretative’ style, this is implicit in many of her essays.

The essays and interviews in Provocations are organized into eight categories: popular culture; film; sex, gender, women; literature; art; education; politics; and religion. The eight categories required to organise these essays are revealing of Paglia’s encyclopaedic knowledge. However, her way of thinking is best revealed by the threads of ideas she interweaves in each category. They are things like art, historical timeline, Shakespeare, post-structuralism and postmodernism, nature, biology and freedom of expression.

The essays on ‘popular culture’ include such topics as Hollywood, song lyrics, Rihanna, Prince, David Bowie and his alter ego Ziggy Stardust, punk rock, favourites popular songs, Gianni Versace and the Italians’ way of seeing death.  The essays on the category ‘film’ talk about Alfred Hitchcock and his female characters, ‘the waning of European Art film’, ‘the decline of film criticism’, ‘movie music,’ and ‘Homer on film.’ The essays on the category ‘sex, gender, and women’ starts with the essay ‘Sex Quest in Tom of Finland’, the story of a Finnish homoerotic artist (actual name Touko Laaksonen) which was turned into a movie. The essays on the category ‘literature’ start with one telling off publishers for sending out unsolicited manuscripts accompanied by a request of a ‘blurb,’ a short description of a book written for promotional purposes; the remaining are properly framed on literature. These include essays on play writers such as Shakespeare, Tennessee Wiliams, Norman Mailler, and about why it took her five years to select the world’s best poems of all times for her book Break, Blow, Burn. The essays on the category ‘art’ covers Andy Warhol, the Mona Lisa, and the power of images. The essays on category ‘education’ covers a variety of themes associated with the aforementioned culture wars at the American colleges and universities, inclusive the intrusive federal regulations aimed at enforcing politically correctness on campus activities. The category of ‘politics’ starts with an interview for Salon magazine about the U.S. invasion of Iraq, and then go on to analyse political figures such as Bill Clinton, Sarah Palin and Donald Trump. The last category is ‘religion’, and it includes essays on the Bible, ‘that old-time religion’, the cults and cosmic consciousness in the sixties in America, ‘religion and the arts in America’, and one essay on why religion should be part of the curriculum of higher education.

One essay I found especially intriguing was that on the Russian-American philosopher Ayn Rand’ (1905-1982), whose objective was to clarify similarities and differences between Rand and herself, after some of her readers pointed out that they had noticed parallels between Hand’s writing and her own. When Paglia finally decided to read Rand she was astonished in finding similar passages to those in her own books. However, she also stresses the main differences between herself and Rand. Paglia describes Rand as an intellectual of daunting high seriousness she describes her style as playful, emphasizing her belief that comedy is a sign of a balanced perspective on life. There is a paradox in this assertion in the fact that Paglia excludes herself from the category of ‘serious thinkers’ and yet displays a kind of self-knowledge that is typical of serious thinkers.

The essay ‘Women and Law’ caught my attention due to her description of the statue of Justice placed in front of Brazil’s Supreme Federal Court. Like most Brazilians, I know what the statue of Justice looks-like. It is a seated woman holding a sword with her eyes blindfolded, signifying the impartiality of the law. However, I did not know that it was the work of the Italian-Brazilian sculptor Alfredo Ceschiati (1918-1989), using a ‘rugged block of creamy granite from Petropolis,’ and neither the historical lineage of the ‘allegorical personification of justice’ that this statue represented. She explains: “Ceschiati has strangely flattened the head of Justice, as if he is alluding to the bust of Nefertiti, with her conceptually swollen wig-crown, or to the Meso-American Chack Mool, who oversaw with alert eyes the ritual of blood sacrifice, guaranteeing the rise of the sun”. Really? I always thought that the flat head of the statue of Justice in Brasília was due to the sculptor’s decision to make his sculpture as tall as his block of granite would allow. However, Paglia was simply allowing her imagination to wander, for she soon returns to the known facts, when she clarifies that the iconic blindfolded goddess of Justice, “was not an ancient motif, but appeared first in the Northern European Renaissance”. Following that, she takes a side step to raise the question whether gender, or any other basic descriptor of a group of people, should be visible or invisible to the law. Women made gains in the law only in piecemeal way, in a long saga that started in Sumeria, under the Code of Hammurabi, passing through Egypt, Judaea, Athens, Rome, Christianized Europe, China and Japan. The contemporary call for special concessions to women would require making them visible, and that this would trample the idea of the impartiality of the law.

The essay ‘Erich Newmann: Theorist of the Great Mother’ reveals where Paglia gained her perspectives art, women, religion, and higher education. Newmann (1905-1961) was a member of the Weimar culture and a product of what Paglia considers “the final phase of the great period of German classical philology, which was animated by an ideal of profound erudition”. Newmann obtained his PhD in philosophy at the University of Erlangen in Nuremberg, and after that he began to study medicine at the University of Berlin, although the discrimination to Jews introduced by the Nazis prevented him from doing the internship necessary to obtain the medical degree. Nevertheless, he carried on his research, which took a new turn after he met Carl Jung (1875-1961), known for his work of archetypes.  Under Jung, Newmann created the archetype of the Great Mother, “a dangerously dual figure, both benevolent and terrifying, like the Hindu goddess Kali”.  It is also from Newmann that Paglia learned to appreciate things like alchemy and the I Ching. On page 439 of this essay she writes that “Authentic cultural criticism requires saturation in scholarship as well as a power of sympathetic imagination”. Paglia’s fondness of Neumann is due to two things: the quality of his scholarship and the fact that it represented last authentic period of learnedness in higher education, before everything was spoilt by post-structuralism.

It was in the category ‘education’ where I found the essays I liked best. Paglia’s essays on education cover the various problems of colleges and universities which triggered the culture wars of the 1980s, from their traditional mission to protect the free flow of ideas to the circumstances that drove them to be swamped by intrusive federal regulations campus aimed to enforce politically correct policies. In the essay ‘Free speech and the modern campus’, Paglia remembers her old-guard professors at Yale Graduate School, in the late 1960s, as the last true scholars. Here is how she describes how it was then and how it is now:

They believed they had a moral obligation to seek the truth and to express it as accurately as they could. I remember it being said at that time that a scholar’s career could be ruined by fudging a footnote. A tragic result of the era of identity politics in the humanities has been the collapse of rigorous scholarly standards, as well as an end to the high value once accorded to erudition, which no longer exists as a desirable or even possible attribute in job searches for new faculty.

In this same essay Paglia states that it was during the five years she researched her book Glittering Images: A journey through art from Egypt to Star Wars (2012) when she noticed the sharp decline in quality of scholarship in the humanities. She conducted a small experiment to detect when this decline started. That experiment involved selecting 29 images from a period extending offer 3,000 years, starting in ancient Egypt and ending in the present, and compiling the scholarly literature on each image. She found that the big drop off in quality happened precisely in the 1980s, which is when post-structuralism and post-modernism encroached into the colleges and universities.

What caused the scholarship of the humanities to slacken according to Paglia was political correctness, for it stunted the sense of the past and reduced history to a litany of inflammatory grievances. She also points out that this problem became worse when colleges and universities decided to embrace the wrong type of multiculturalism, which started to blame all g social inequalities on Western colonialism. Most conservative thinkers now dislike multiculturalism altogether, but Paglia believes in a right type of multiculturalism that incorporates Western civilization alongside the others. She favours a reform in higher education to prompt the return of authentic scholarly principles. To her, the introduction of popular culture in universities should not occur at the expense of the past. Colleges and universities must have an atmosphere of tolerance, and for that to happen, the spectrum of permissible ideological opinion must be broadened, rather than narrowed. The best way that colleges and universities can fully become a place for learning is by allowing free speech and the free flow of ideas; their departments should not become fiefdoms; no group should have a monopoly on truth; and students should be encouraged to be resilient and to accept personal responsibility.

The last category of essays is religion. Paglia admits being both an atheist and having a ‘1960’s mystical bent’ that fuels her interest in astrology, palmistry, ESP, and the I Ching.  Her essay ‘Cults and cosmic consciousness’ is the longest of this book, with 48 pages. In it, she talks about ancient and modern cults and traces the rise to the New Age movement during the 1980s and 1990s to the spiritual yearnings of her generation. In the essay ‘Resolved: Religion belongs in the curriculum’, the penultimate in this book, she argues the importance of the understanding of religions to the understanding of civilization. She believes that “every student should graduate with a basic familiarity with the history, sacred texts, codes, rituals, and shrines of the major world religions – Hinduism, Buddhism, Judaeo-Christianity, and Islam”. She recalls the religious overtone of her 1991 book Sexual Personae. Here is Paglia’s justification for this:

Judeo-Christianity never did defeat paganism, which went underground during the Middle Ages and erupted in three key moments: the Renaissance, Romanticism, and modern popular culture, as signalled by the pantheon of charismatic stars invented by studio-era Hollywood and classic rock music.

If universities had to choose between the teaching of religion and the teaching of the cult of Foucault – Postmodernism, they would be much better off with religion. Here is how she completes her argument:

Veneration of Jehovah brings vast historical sweep and a great literary work – The Bible – with it. Veneration of Foucault (who never admitted how much he borrowed from others – from Emile Durkheim to Erwin Goffman) traps the mind in simplistic, cynical formulas about social reality, applicable only to the past two and a half centuries of the post-Enlightenment. The highest level of intellect, conceptual analysis, and rigorous argumentation in the collected body of ancient Talmudic disputation and medieval Christian theology far exceeds anything in the slick, game-playing Foucault.

Postmodernism, including the poststructuralism which was rooted in the field of literary criticism, is one of the various threads of thought that weaves in and out of the eight categories of this book. Paglia threats the two terms as synonymous. In her essay ‘Scholars talk writing’ she describes the Yale she knew during the period as a graduate student there, from 1968 to 1972. It was a time when “French post-structuralism was flooding into Yale”. This is how she ends this same essay: “I’ve spent 25 years denouncing the bloated, pretentious prose spawned by post-structuralism. Enough said! Let the pigs roll in their own swirl”. In the essay ‘Free speech and the modern campus’ she describes the simultaneous rise of deconstruction and poststructuralism:

The deconstructionist trend started when J. Hillis Miller moved from Johns Hopkins University to Yale and then began bringing Jacques Derrida over from France for regular visits. The Derrida and Lacan fad was followed by the cult of Michael Foucault, who remains a deity in the humanities but whom I regard as a derivative game-player whose theories make no sense whatever about any period preceding the Enlightenment. The first time I witnessed a continental theorist discoursing with professors at a Yale event, I said in exasperation to a fellow student: ‘They’re like high priests murmuring to each other.’ It is absurd that elitist theoretical style, with its opaque and contorted jargon, was ever considered leftist, as it still is. Authentic leftism is populist, with a brutal directness of speech.

Poststructuralism or postmodernism was the major cause of the weakening of scholarship in the colleges and universities. In her aforementioned essay on Erich Newmann Paglia shows how important nature was in Newmann’s time and how things have changed.

The deletion of nature from academic gender studies has been disastrous. Sex and gender cannot be understood without some reference, however qualified, to biology, hormones, and animal instinct. And to erase nature from the humanities curriculum not only inhibits student’s appreciation of a tremendous amount of great, nature-inspired poetry and painting but also disables them even from being able to process the daily news in our uncertain world of devastating tsunamis and hurricanes.

As I started to read Camille Paglia’s Provocations I soon understood that the word ‘provocations’ is used in the sense of inciting thought. Although inciting thought is not the same as inciting rage, the first can lead to the second. Paglia has made some foes on her campus, who would like to see her pushed aside. History repeats itself when its past lessons are forgotten. During the trial of Socrates in 399 BCE, the philosopher told the Athenian people that although they saw him as a pesky ‘gadfly’, he was ‘a gadfly given to them by God,’ and one which will be difficult to replace.’ Paglia is the modern-day ‘gadfly’. She too will be difficult to replace.

                                                                                                                                               

Jo Pires-O’Brien is a Brazilian-Brit and the editor of PortVitoria.

Rob Hopkins

Review of the book Reclaiming Conversation: the power of talk in a digital age by Sherry Turkle, Penguin Press, 2015, 436 pp.

This is one of the best books I have read in a very long time.  Essential reading for any parent, for anyone who interacts with digital technologies, social media, smartphones, indeed for anyone living in the complex world of 2017.  It’s a book that had a deep impact on me, and I think it will on you too.  Sherry Turkle is a psychologist who has spent 30 years studying the psychology of how people relate to technology.  Initially she researched what, in games, the avatars people created for themselves revealed about them.  But as time went on, she became increasingly concerned with the impact that technologies, in particular the smartphone, are having on society, and in particular on our ability to seek out and sustain conversations with each other.

We find ourselves, she argues, at the beginning of a new “silent spring”, one in which “technology is implicated in an assault on empathy”, and where we are being “cured of talking”.  While we live in a time when most of what we hear is the positives of these new technologies, their ability to enable us in our pursuit of the new, to keep in touch, to feel connected.  “We like to hear [these stories]”, she reflects, “because if these are the only stories that matter, then we don’t have to attend to other feelings that persist – that we are somehow more lonely than before, that our children are less empathic than they should be for their age, and that it seems nearly impossible to have an uninterrupted conversation at a family dinner”.

Something is going horribly wrong, she suggests.  Research shows that college students who have grown up with these technologies as commonplace are 40% less empathic than their equivalents 10 years before.  It shows that frequent multitasking is associated with depression, social anxiety and trouble reading human emotions.  It shows that even the presence of a phone, or open screens, degrade the ability of everyone who can see them to do the task they were doing before.  Even putting your phone on the table during a meeting or a conversation has been shown to change the quality and depth of that conversation.  Teachers report that children are not developing empathy in the way they should and not only struggle to sustain a conversation, but actively avoid putting themselves in situations where conversation will be required.

So why is conversation so important?  As Turkle writes:

It is the most human – and humanizing – thing we do.  Fully present to one another, we listen and learn.  It’s where we develop the capacity for empathy.  It’s where we experience the joy of being heard, of being understood.  And conversation advances self-reflection, the conversations with ourselves that are the cornerstone of early development and continue throughout life.

Yet the amount of conversation actually taking place is in decline.  We increasingly prefer to communicate via email, via Facebook, where we can edit ourselves, and minimize the risk that we will end up in conversations that are uncomfortable, that leave us exposed in some way.  Some families now argue not in the kitchen, but over email, as they find it is somehow neater, more controlled, and less likely to spill over into family life.  Some couples do the same, finding that having a record of their arguments means they have something to refer back to.

Yet there is a contradiction at the heart of our sense of “being connected”.  As we detach from the conversations that since forever formed the bedrock of our culture, we imagine that the ability to be always connected will make us less lonely.  And yet loneliness is a national epidemic.  Three-quarters of older people identify as being lonely, and chronic loneliness has health impacts equivalent to smoking 15 cigarettes a day.  Yet ironically, at the root of our troubles with technology is that they deny us the opportunity, the possibility, of being alone, quiet, still.

As Turkle writes, “If we are unable to be alone, we will be more lonely.  And if we don’t teach our children to be alone, they will only know how to be lonely”.  Believing that we are in conversation through texting on our mobiles, rather than sitting with each other, means we miss out on the very kind of conversations we need, those that Turkle identifies as “artless, risky and face-to-face”.

We are experiencing what neuroscientist Richard Davidson calls a “national attention deficit”.  The myth that we can “multitask” is a pervasive one, the idea that we can text while we read while we update our Facebook profile while we draft emails while we check the news while we plan our travel next week while we shop for shoes online.  Yet all that multitasking does, research shows, is lead to us doing lots of things badly, as she puts it, “multitasking degrades performance”.

She calls for ‘unitasking’, consciously creating the space and self-control to relearn to do one thing at a time, and thereby to do it better.  Many businesses are now learning that, as she puts it, “the more you talk to your colleagues, the greater your productivity”.  Offices are being redesigned to maximize interaction and opportunities for conversation.  Meetings are being designed with a ‘parking lot for smartphones’, and regular opportunities, say 10 minutes per hour, for people to check their phones.

This is a book that is so rich with fascinating research, and with implications, that I am still digesting it.  That phone in your pocket is just a phone, right?  No.  As Turkle writes, “It’s not an accessory.  It’s a psychologically potent device that changes not just what you do but who you are”.  And yet this is not a depressing book.  It is a powerful call to review and rethink your relationship to that phone, to the technology in your life.  To redouble your efforts to not itch the scratch that arises in any quiet moment that offers the possibility of boredom to reach for our phone.  The hopeful message of this book is “conversation can cure”.  Research shows that after just 5 days at a summer camp that bans all electronic devices, children show greater empathy and attention.

For me, this book a powerful affirmation of the Transition approach, that where possible we seek to bring people together, to enable and foster conversation, to create spaces where people meet and imagine together.  Might it be that the best antidote to loneliness, to the drifting apart of our communities, to the pervasive sense of hopelessness, is to enable, to invite, public conversations? As Turkle writes: “A public conversation can model freedom of thought.  It can model courage and compromise.  It can help people think things through”.

I always start my talks by inviting people to introduce themselves to their neighbour.  So far at least 3 couples have come up to me and said “you remember that talk in [wherever] where you said to turn to the person next to you?  That’s how we met!”  And there has been, so far as I know of, one baby that resulted from it.

If you only read one book this year, make it this one.  It is delightfully readable, incredibly well-researched, rich with insight, and will make you rethink your relationship to that device in your pocket.  And invite conversation back into your life, indeed to insist upon it.  The kind of conversation that is slipping out of our culture, and out of our lives, the kind she describes as “a certain kind of face-to-face talk.  Unplanned. Open-ended. The kind that takes time”.

                                                                                                                             

Note

This review was originally published on the blog ‘Imagination taking power’, in April 2017. Source: https://www.robhopkins.net/2017/04/17/book-review-reclaiming-conversation-the-power-of-talk-in-a-digital-age-by-sherry-turkle/

Peter Steinfels

Mesmo sem recuperar aquele pacote de jornais franceses amarelados da prateleira de cima de um armário, é fácil relembrar a noite de 10 de maio de 1968, em Paris. Muito menos fácil, é discernir sobre o que se tratava 40 anos depois. Hormônios de adolescentes, a morte do comunismo, a morte do capitalismo, ou, como André Malraux sugeriu na época, a morte de Deus?

Malraux, o escritor, político e ministro da cultura francês na época, pode ter estado sozinho ao invocar a morte de Deus como explicação, mas ninguém duvidou que o dia 10 de maio levou uma sociedade inteira a uma avaliação rara – chame-a de exame de consciência, se você quiser – de seus valores fundamentais.

Uma semana antes, a polícia tinha sido chamada para ocupar a Sorbonne, e Paris começou a testemunhar as marchas diárias dos estudantes, geralmente culminando em escaramuças entre estudantes atirando pedras e a polícia lançando gás lacrimogêneo.

Em 10 de maio, o número de estudantes foi estimado em 20.000. Em todas as ruas que davam para a Sorbonne, eles encontraram o caminho bloqueado por vans e fileiras de policiais. Desta vez, os alunos não se dispersaram. Quando a escuridão caiu, eles começaram a tirar as pedras da calçada, a saquear obras de construção e a revirar carros estacionados a fim de construir suas próprias barricadas diante das da polícia.

Durante horas, o silencioso anel interno de barricadas policiais que se estendia ao redor de grande parte do Quartier Latin ficou cercado por um ruidoso anel externo formado pelas barricadas dos estudantes. Às 2h:15 da manhã, a polícia recebeu a ordem de atacar as barricadas dos estudantes. Como disse o ministro do Interior, “as ruas precisam estar livres para o tráfego”.

Foram necessárias três horas de combates brutais para fazê-lo: nuvens de gás lacrimogêneo, coquetéis molotov, tanques de gasolina de carros explodindo, pedras atiradas contra a polícia, estudantes perseguidos e espancados, e mais de 300 feridos, felizmente, nenhum uso de armas de fogo – e nenhuma morte.

Quando o rádio informou sobre um incêndio na rua Gay-Lussac, onde os carros de bombeiros não conseguiam chegar devido aos combates de rua e às barricadas, dois jovens americanos que moravam nas proximidades começaram a pensar sobre o que levar consigo em caso de um incêndio urbano: 1) a filha de 2 anos de idade; 2) passaportes e dinheiro; 3) as anotações relativas à dissertação. Depois disso, não importava.

A França acordou chocada. E, presumivelmente, o presidente Charles de Gaulle, que se deitara cedo. Os eventos se aceleraram. A esquerda organizou uma enorme marcha de solidariedade com os estudantes, que reocuparam a Sorbonne. Os trabalhadores começaram a ocupar as suas fábricas. Dentro de outra semana, a França foi fechada pela greve geral com a qual os revolucionários sempre sonharam.

Ele falou à nação, brevemente, no rádio. Anunciou novas eleições e sugeriu usar meios militares para restaurar a ordem. Uma demonstração habilmente preparada imediatamente inundou a avenida Champs-Élysées com centenas de milhares de cidadãos que anteriormente apresentavam um perfil discreto.

Maio passou a junho. Trabalhadores e estudantes conquistaram algumas mudanças. As eleições levaram De Gaulle e seus partidários de volta ao poder. Foi tudo meramente uma tempestade de primavera? Dificilmente. Por duas semanas surpreendentes em maio, uma nação inteira foi tomada por um frenesi de autoexame. Comitês foram formados para reestruturar o ensino secundário, a universidade, a indústria cinematográfica, o teatro, a mídia noticiosa. Todo mundo era uma cabeça falante.

O que as cabeças falantes estavam falando eram ideias geradas por uma gama louca de grupos de esquerda: socialistas revisionistas, trotskistas, maoístas, anarquistas, surrealistas e marxistas. Eles eram tanto anticomunistas quanto anticapitalistas. Alguns pareciam anti-industriais, anti-institucionais, e até antirracionais.

Três objetivos positivos e um grande medo dominavam os seus pontos de vista. Os objetivos eram a autogestão pelos trabalhadores, a descentralização do poder econômico e político e a democracia participativa nas bases. O grande temor era que o capitalismo contemporâneo fosse capaz de absorver toda e qualquer ideia ou movimento crítico e dobrá-los para a vantagem própria. Daí a necessidade de táticas de choque provocativas. “Seja realista: Exija o impossível!” foi um dos slogans do movimento de maio.

Para muitos críticos, tudo isso era apenas a convulsão final de um utopismo socialista quase religioso que há muito tempo vinha inspirando trabalhadores e intelectuais a se rebelarem contra as penas da industrialização.

Outros críticos preferiram explicações psicológicas: maio de 1968 foi um lance freudiano de revolta adolescente contra mamãe e papai. Ou foi um nostálgico ataque de encenação, uma reencenação infantil da tomada da Bastilha e outros greatest hits de revoluções da França. Ou, paradoxalmente, foi um reforço inconsciente do capitalismo de consumo individualista ao qual afirmava opor-se.

Por outro lado, o espírito antiautoritário de 1968 acabou sendo visto como uma fonte da rebelião bem-sucedida contra o comunismo do bloco soviético em 1989. A ligação foi feita graficamente em capas de livro nas quais o 68 foi virado de cabeça para baixo para ser lido 89. Afinal, a Primavera de Praga em 1968 também exibiu a mesma efervescência que atingiu Paris em maio – uma sensação de que realmente era possível escapar dos rumos da história e criar algo verdadeiramente novo.

Por acaso esse impulso utópico era um sonho ingênuo e perigoso como os conservadores políticos e religiosos costumavam dizer? Tal impulso não visava à perfectibilidade humana, mas apenas ao imaginar de que a vida poderia ser realmente diferente e muito melhor.

Em todo caso, o impulso utópico já não se encontra em evidência. Os sonhos de hoje parecem ser por natureza muito mais defensivos – amortecer as guerras, combater a fome, conter epidemias e impedir a destruição planetária.

Lamentavelmente ou não, o incêndio de 1968 apagou-se. A memória não.

                                                                                                                                               

Peter Steinfels (1941-) é professor da Universidade de Fordham e foi anteriormente co-diretor do Centro Fordham de Religião e Cultura. Foi colunista de ética do New York Times até janeiro de 2010 e correspondente sênior de religião de 1988 a 1997. Além da especialização em intersecção entre religião e cultura contemporânea, suas áreas de interesse incluem bioética, história francesa e saúde. As publicações de Steinfels incluem A People Adrift: The Crisis of the Roman Catholic Church in America (Um povo à deriva: a crise da Igreja Católica Romana na América; 2003) e Neoconservatives: The Men Who Are Changing America’s Politics (Neoconservadores: os homens que estão mudando a política da América; 1979); ele também publicou frequentemente em revistas como The New Republic. Ocupou cargos na Universidade de Georgetown, na Universidade de Notre Dame e na Universidade de Dayton, atuou como editor da revista Commonweal e foi consultor da série de periódicos religiosos e de ética da PBS. Steinfels é Ph.D. pela  Universidade de Colúmbia.

 

Notas

Este artigo foi publicado na The International Herald Tribune em 11 de maio de 2008, e reproduzido na edição eletrônica do The New York Times em 11 de maio de 2008, de onde foi obtido. Fonte: https://www.nytimes.com/2008/05/11/world/europe/11iht-paris.4.12777919.html

© The New York Times & Peter Steinfels

Tradução: J Pires-O’Brien (UK)

Revisão: D Finamore (Br)

Norman Berdichevsky

Reseña del libro El hombre razonable y otros ensayos de Joaquina Pires-O’Brien. Beccles, UK, KDP, 2016. Disponible en Amazon.com.

El anuncio de la adopción de la nueva palabra post-truth (posverdad) por los autores del diccionario Oxford, en el 16 de noviembre de 2016, llegó días después de la publicación de O homem razoável e outros ensaios, un e-book en portugués y ya traducido para el español (El hombre razonable y otros ensayos) – una colección de 23 ensayos sobre algunos de los más definitorios, y controvertidos, aspectos de la civilización occidental. La proximidad de los dos eventos muestra que la autora es de hecho bien sintonizada con la civilización occidental y sus problemas. Uno de los ensayos de este libro se ocupa específicamente del posmodernismo, la doctrina o mentalidad da cual que la palabra post-truth se originó. Además del posmodernismo, este libro abarca otros temas de actualidad como la educación liberal, las dos culturas (la división entre la ciencia y las artes y las humanidades) y el 9/11, así como algunos temas atemporales como la utopía, el amor, y el apego humano a los mitos. La autora, Jo Pires-O’Brien, una brasileña residente en el Reino Unido, es la editora de PortVitoria, periódico en línea, bianual, sobre actualidades, cultura y política, centrado en la cultura ibérica y su diáspora, cuyos artículos son publicados en español, portugués e inglés.

El ensayo con el tema más difícil de se entender – en cualquier idioma – es precisamente lo que habla del posmodernismo, el cual es descrito través de su fascinación con el concepto de ‘narrativas’; es decir, donde muchos hacen de los medios de comunicación un juguete – una actitud escéptica o desconfianza en relación a las ideologías y los diversos principios del pensamiento racional, incluyendo la existencia de una realidad objetiva, de la verdad, y de las nociones de progreso que existen – el posmodernismo afirma que el conocimiento y la verdad son productos de los sistemas históricos y sociales y de la interpretación política. La preocupación da autora con el postmodernismo de la amenaza no es sin justificación. El término post-truth, – adoptado en 2016 por los autores del diccionario Oxford – capta la idea posmodernista de que ‘no hay hechos, hay interpretaciones’. Si no hay hechos, entonces la ciencia y otros elementos de la moderna Civilización Occidental, como el canon literario, son irrelevantes.

El título del libro fue tomado del primero ensayo, que se ocupa del hipotético ‘hombre razonable’ (reasonable man), conservado en el derecho civil y contractual en Gran Bretaña y en los Estados Unidos, pero sin una definición precisa. Tal ‘hombre razonable’ – sin el artículo definido que aparece en las versiones en portugués y español – o ‘el hombre en el ómnibus de Clapham’ en el folklore británico, es una persona dotada de sentido común y cuya opinión es tomada como la opinión pública, y por eso, valorada en muchos casos particulares, como en la definición de cómo alguien debe comportarse (en términos de acción o inacción) en relación con otro en situaciones de amenaza. No hay necesidad de establecer una intención maliciosa, y es esperado que dicha persona ficticia pueda cometer ‘errores razonables’ de acuerdo con las circunstancias, siendo, por lo tanto, una cuestión de la ética. Hay, efectivamente, mucho alimento de reflexión acerca de cuanto de los sistemas legales del Occidente, os cuales, sobre todo en los países anglosajones, decoren de alguna tradición distinta. A partir del ensayo aprendemos que el concepto del hombre razonable se extiende a la Antigüedad, al concepto de ‘phronēsis’ o ‘sabiduría práctica’ de los antiguos griegos. Para Sócrates, ‘phronēsis’ (frónesis) era la capacidad de discernir cómo y por qué alguien debe actuar virtuosamente, mientras que Aristóteles, – y en la víspera de la edad moderna, Spinoza, – lo definió como la capacidad de pensar lógicamente. La calidad de una sociedad depende de su riqueza humana, medida por la proporción de ciudadanos razonables. El tema de la ley vuelve a aparecer en otro ensayo que se ocupa del delito affray – o riña – el uso o amenaza del uso de la violencia ilegal contra otra persona para que una persona de ‘firmeza razonable’ en el tema de la escena por su propia seguridad. La etimología de la palabra affray es explicada, demostrando que proviene de una palabra en protogermánica con un radical protoindo-europeu.

Varios ensayos se ocupan de pensadores influyentes como Friedrich Hayek, Jacques Jean-Jacques Rousseau, Thomas Hobbes, Elias Canetti, Stefan Zweig y George Orwell. El ensayo titulado ‘El filósofo de la libertad’ habla de Hayek, notoriamente desaventajado por los críticos de izquierda de las sociedades opulentas modernos y sus políticas económicas. Hayek fue uno de los pocos que no perdió la fe en el capitalismo el día siguiente al viernes negro de noviembre de 1929. En Camino de servidumbre (1944), que se convirtió en un éxito de ventas, Hayek explicó los malentendidos sobre el sistema económico del capitalismo y destacó el valor de la libertad de cada uno de usar su propia iniciativa empresarial y sus habilidades para progresar y, sobre todo, afirmó que la democracia no era un valor final, sino un medio para alcanzar la libertad. Los fundamentos de la libertad es otro gran libro de Hayek, aunque no ha sido un éxito de ventas. Hayek fue muy admirado por la primera ministra Margaret Thatcher, que una vez llevó el libro Los fundamentos de la libertad para una sesión en el Parlamento y golpeó el mismo contra la caja de despacho en cuanto dijo: “Esto es lo que creemos”. Otra personalidad que evidencio es George Orwell (Eric Blair), autor de 1984 y Sin blanca en París y Londres, el cual es cubierto en dos ensayos; un que da un resumen crítico acerca de la vida de Orwell y otro que describe las poderosas metáforas contenidas en su libro 1984.

La carrera anterior de la autora en Brasil, como investigadora botánica con un doctorado en ecología forestal, se pone de manifiesto en un ensayo sobre el nefasto ‘Proyecto Floram’, un proyecto de reforestación. La autora basó su ensayo en los archivos del Instituto de Estudios Avanzados de la Universidad de São Paulo (IEA/USP) así como en su memoria personal. En este ensayo, ella muestra cómo el proyecto Floram fue concebido y explica cómo la murmuración pública inmerecida hizo con que los inversores del sector privado retirasen su apoyo. La inhibición del Proyecto Floram es sintomática de uno de los principales problemas de nuestro tiempo – el calentamiento global. Como Pires-O’Brien correctamente concluyó… “… el Proyecto Floram es un ejemplo de la eterna contienda entre lo real y lo ideal”.

Un ensayo corto, pero afilado, habla de la cultura y el relativismo cultural, trazando el nuevo significado dado à la palabra cultura por algunos antropólogos y sociólogos, y muestreando su conexión con el relativismo cultural. Los ensayos restantes se ocupan de las grandes ideas que florecieron en el Occidente y ayudaron a formar la Civilización Occidental – la Bíblia, la idea del paraíso, la utopía, el aprendizaje al longo de la vida, el amor, la mente sana en un cuerpo sano y la educación liberal –, así como tratan de los mayores retos y amenazas actuales de la Civilización Occidental: el posmodernismo y el extremismo islámico. Aunque se trata de una ecléctica colección de ensayos, hay un denominador común en su temática: la lucha de la razón contra la irracionalidad.

Por último, pero no menos importante, la autora aborda el extremismo islamita responsable de los ataques del 9/11 y el uso del yihad, como un medio para alcanzar el poder político. Esto se hace en forma de una serie de preguntas y respuestas que abordan no sólo a los perpetradores de los ataques del 9/11, sino también muchos temas relevantes a cerca de la religión islámica: la historia de los conspiradores y su motivación; la naturaleza del Corán; la rivalidad entre las sectas islámicas rivales (chiíes y suníes); el yihad; el wahabismo y el salafismo; la Hermandad Musulmana; la aspiración de un nuevo califato; las creencias de la mayoría de los musulmanes comúns que non son fundamentalistas; y, ayunque, el fracaso, la falta de cooperación y los supuestos ingenuos de las agencias de inteligencia de los Estados Unidos. Todo eso es explicado de forma clara y sin exageros.

Este es un libro para leer y volver a leer, con el fin de ayudarnos a poner en perspectiva ideas diferentes pero cruciales. Como un usuario cuyo primer idioma es el inglés y con una capacidad razonable de leer en español, encontré el texto en español bastante fácil de leer – claro, preciso y leve, tanto entretiene cuanto informa. El estilo es el tipo que captura la atención del lector y sin ‘vagar’ o ‘cansar’ como es común en casos de textos similares, que abarcan docenas de temas diversos y provocativos. Otro diferencial de El hombre razonable es que sus ensayos de temática variada están bien conectados.

En el momento, el libro apareció en portugués y en español, y hay una declaración en el prefacio que una traducción al inglés no está sobre la mesa: “El repertorio de los temas abordados ya es bien conocido en los países situados en el centro de la Civilización Occidental pero no en los países de la periferia. La presente recopilación tiene por objetivo contribuir a corregir esa distorsión.” Aunque esto es probablemente cierto, creo que, mismo en la lengua inglesa, hay un espacio en la literatura para una análisis concisa y clara como esta, que reflecte acerca de las ideas que formaron la Civilización Occidental y acerca de aquellas que son una amenaza à misma. Tengo una profunda esperanza de que una edición en inglés ocupe de pronto esto espacio. Este es un libro valioso que debería ser una lectura obligatoria para los estudiantes que están a entrar en la universidad para estudiar historia, filosofía, ciencias sociales y relaciones internacionales.

                                                                                                                                               

Dr. Norman Berdichevsky es un estadounidense especializado en geografía humana y con fuerte interés en las culturas hispánica y portuguesa. Es autor de varios libros y numerosos artículos y ensayos, y forma parte del Consejo Editorial de PortVitoria.

Norman Berdichevsky

Resenha do livro O homem razoável e outros ensaios (El hombre razonable y otros ensayos) de Joaquina Pires-O’Brien. Beccles, UK, KDP, 2016. Disponível na Amazon.com.

O anúncio da adoção da nova palavra post-truth (pós-verdade) pelos autores do dicionário Oxford, em 16 de novembro de 2016, chegou dias depois da publicação de um e-book em português chamado O homem razoável e outros ensaios, já traduzido para o espanhol (El hombre razonable y otros ensayos) – uma coleção de 23 ensaios sobre alguns dos mais definidores, e controversos, aspectos da Civilização Ocidental. A proximidade dos dois eventos mostra que a autora é deveras bem sintonizada com a Civilização Ocidental e os seus problemas. Um dos ensaios desse livro trata especificamente do pós-modernismo, a doutrina ou mentalidade da qual a palavra post-truth se originou. Além do pós-modernismo, esse livro cobre outros temas contemporâneos como a educação liberal, as duas culturas (o racha entre a ciência e as artes e humanidades) e o 9/11, assim como alguns temas atemporais como a utopia, o amor e o apego humano aos mitos. A autora, Jo Pires-O’Brien, uma brasileira residente no Reino Unido, é editora de PortVitoria, revista online, bianual, sobre atualidades, cultura e política, centrada na cultura ibérica e sua diáspora, cujos artigos são publicados em espanhol, português e inglês.

O ensaio com o tema mais difícil de entender – seja lá em que língua – é precisamente o que fala do pós-modernismo, o qual é descrito através de sua fascinação com o conceito de ‘narrativas’; isto é, onde muitos fazem da mídia um brinquedo – uma atitude de ceticismo ou desconfiança no tocante a ideologias e aos diversos princípios do pensamento racional, incluindo a existência de realidade objetiva, da verdade e das noções de progresso existentes – o mesmo afirma que o conhecimento e a verdade são produtos de sistemas históricos e sociais e da interpretação política. A preocupação da autora com a ameaça do pós-modernismo não é sem justificativa. O termo post-truth adotado em 2016 pelos autores do dicionário Oxford, captura a ideia pós-modernista de que ‘não existem verdades, mas apenas interpretações’. Se não há verdade, então a ciência e outros elementos da Civilização Ocidental moderna, como o cânone literário, são irrelevantes.

O título do livro foi tirado do primeiro ensaio, o qual trata do hipotético ‘homem razoável’ (reasonable man), preservado no direito civil e na lei contratual na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos, embora sem uma definição precisa. Tal ‘homem razoável’ – sem o artigo definido que aparece nas versões em português e em espanhol – ou ‘o homem no ônibus de Clapham’ no folclore britânico, representa uma pessoa dotada de bom senso e cuja opinião é tomada como sendo a opinião pública, e, por isso, valorizada em diversos casos particulares, como, por exemplo, na definição de como uma pessoa deve se portar (em termos de ação ou inação) em relação a outras em situações de ameaça. Não há necessidade de estabelecer uma intenção maliciosa, e é esperado que tal indivíduo fictício possa cometer ‘erros razoáveis’ de acordo com as circunstâncias, o que, como tal, é uma questão da ética. Há deveras muito alimento para pensar acerca de quanto dos sistemas legais do Ocidente, os quais, particularmente nos países anglo-saxões, são uma função de alguma tradição distinta. A partir do ensaio, aprendemos que o conceito do homem razoável se estende até a Antiguidade, ao conceito da phronesis ou ‘sabedoria prática’ dos antigos gregos. Para Sócrates, a phronesis era a capacidade de discernir como e porque alguém deve agir virtuosamente, enquanto que Aristóteles – e, também, já na antevéspera da Idade Moderna, Spinoza, – definiu-a como sendo a capacidade de pensar logicamente. A qualidade de uma sociedade depende de seu cabedal humano, medido pela proporção de ‘cidadãos razoáveis’. O tema da lei reaparece num outro ensaio que trata do crime de affray – ou rixa – usar ou ameaçar usar violência ilícita para com outra pessoa de tal modo que uma pessoa de ‘razoável firmeza’ presente na cena tema pela própria segurança. A etimologia da palavra affray é explicada, mostrando que vem de uma palavra em protogermânico com um radical protoindo-europeu.

Diversos ensaios tratam de pensadores influentes, tais como Friedrich Hayek, Jacques Jean-Jacques Rousseau, Thomas Hobbes, Elias Canetti, Stefan Zweig e George Orwell. O ensaio intitulado ‘O filósofo da liberdade’ fala de Hayek, notoriamente desfavorecido entre os críticos esquerdistas das sociedades afluentes modernas e suas políticas econômicas. Hayek foi um dos poucos que não perdeu a fé no capitalismo no dia seguinte ao Black Friday de novembro de 1929. Em O caminho da servidão (1944), que virou um best-seller, Hayek explicou os mal-entendidos acerca do sistema econômico do capitalismo e sublinhou o valor da liberdade de cada um de utilizar seu próprio empreendedorismo e suas habilidades para progredir, e, acima de tudo, esclareceu que democracia não era um valor final mas um meio para alcançar a liberdade. A constituição da liberdade é outro grande livro de Hayek, muito embora não tenha sido um best-seller. Hayek era altamente admirado pela primeira ministra Margaret Thatcher, que uma vez levou o livro A constituição da liberdade para uma sessão no Parlamento e bateu-o contra a caixa de despachos enquanto dizia: “É nisso que nós acreditamos”. Outra personalidade que evidencio é George Orwell (Eric Blair), autor de 1984 e Na pior em Paris e Londres, o qual é tratado em dois ensaios; um que apresenta um resumo crítico da vida de Orwell e outro que descreve as poderosas metáforas contidas no seu livro 1984.

A carreira anterior da autora no Brasil, como pesquisadora botânica com PhD em ecologia florestal, é revelada num ensaio sobre o malfadado ‘Projeto Floram’, um projeto de reflorestamento. Ela baseou este ensaio nos arquivos do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (IEA/USP) bem como na sua memória pessoal. Nesse ensaio, ela mostra como o Projeto Floram foi concebido e explica como a maledicência pública imerecida fez com que os investidores do setor privado retirassem seu suporte. A inibição do Projeto Floram é sintomática de um dos maiores problemas do nosso tempo – o aquecimento global. Conforme Pires-O’Brien corretamente concluiu…“O Projeto Floram foi um exemplo da contenda constante entre a situação real e a ideal”.

Um ensaio curto, porém afiado, fala sobre a cultura e o relativismo cultural, traçando o novo significado conferido à palavra cultura por alguns antropólogos e sociólogos, e mostrando a sua conexão com o relativismo cultural. Os ensaios restantes tratam das grandes ideias que floresceram no Ocidente e ajudaram a formar a Civilização Ocidental – a Bíblia, a noção do paraíso, a utopia, a aprendizagem ao longo da vida, o amor, a mente sã num corpo são e a educação liberal –, bem como tratam dos seus maiores desafios e ameaças correntes à Civilização Ocidental: o pós-modernismo e o extremismo islâmico. Embora seja uma coleção eclética de ensaios, há um denominador comum na temática deles: a luta da razão contra a irracionalidade.

Por último mas não menos importante, a autora aborda o extremismo islâmico responsável pelos ataques do 9/11 e o emprego do jihad, como um meio para alcançar o poder político. Isso é feito na forma de uma série de perguntas e respostas que tratam não apenas dos perpetradores dos ataques do 9/11, como também de diversos tópicos relevantes acerca da religião do islamismo: o fundamentalismo islâmico; a história dos conspiradores e sua motivação; a natureza do Corão; as rivalidades entre as seitas islâmicas adversárias (xiitas e sunitas); o jihad; o wahhabismo e o salafismo; a Irmandade Muçulmana; a aspiração de um novo califado; as crenças da maioria dos muçulmanos comuns que não são fundamentalistas; e, ainda, a falha, a falta de cooperação e as suposições ingênuas das agências de inteligência norte-americanas. Tudo isso é explicado com clareza e sem exagero.

Este é um livro para ler e reler, a fim de nos ajudar a colocar em perspectiva ideias diversas porém cruciais. Na qualidade de resenhista cuja primeira língua é o inglês e com uma razoável capacidade de ler espanhol, achei o texto em espanhol bastante fácil de ler; claro, preciso e leve, tanto entretém quanto informa. O estilo é do tipo que cativa a atenção do leitor e que não ‘vagueia’ ou ‘cansa’ como é frequente em casos de textos similares, que abarcam dúzias de temas diversos e provocativos. Outro diferencial de O homem razoável é que seus ensaios de temática variada estão bem conectados.

Até o momento, o livro apareceu em português e em espanhol, e há uma indicação no Prefácio de que uma tradução inglesa não está na mesa: “O repertório dos temas abordados já é bem conhecido nos países situados no âmago da Civilização Ocidental, mas não nos países da periferia. A presente coletânea tem por objetivo contribuir para corrigir essa distorção”. Embora isso provavelmente seja verdade, acredito que, mesmo na língua inglesa, há um espaço na literatura para uma análise concisa e clara como esta, que reflete sobre as ideias que formaram a Civilização Ocidental e sobre aquelas que são uma ameaça à mesma. Tenho uma esperança fervorosa de que uma edição em inglês em breve ocupará esse espaço. Esse é um livro valioso cuja leitura deveria ser obrigatória para alunos que estão entrando na universidade para estudar nas áreas de história, filosofia, ciências sociais e relações internacionais.


Dr. Norman Berdichevsky é um norte-americano especializado em geografia humana e com forte interesse nas culturas hispânica e portuguesa. É autor de diversos livros e muitos artigos e ensaios, e, faz parte do Conselho Editorial de PortVitoria.