wislawaszymborska_newbioimageEsta edição de PortVitoria está dedicada à poeta polonesa Wisława Szymborska, cujas poesias retratam a universalidade humana contra o contexto social e político da Polônia a partir da Segunda Guerra. O extrato abaixo sobr Szymborska foi tirado de diversos sítios da internet.

Szymborska nasceu em Pozman, na Polônia em 2 de julho de 1923, mas em 1931 a sua família mudou-se para Cracóvia, onde, de 1945 a 1948, ela estudou literatura polonesa e sociologia na Universidade Jagellonian. Enquanto era aluna desta universidade, ela envolveu-se com o meio literário de Cracóvia, onde conheceu o poeta e escritor polonês de origem Lituânia Czeslaw Milosz, cuja obra poética sobre os horrores da Segunda Guerra lhe serviu de inspiração. Em 1945, Szymborska publicou o seu primeiro poema, “Szukam slowa” (I Seek the World; Eu Vejo o Mundo), no jornal Dziennik Polski. Ela completou a sua primeira coletânea de poemas três anos depois, mas o governo pós-guerra da Polônia impediu a sua publicação, alegando que suas poesias não contribuíam para a agenda comunista. Szymborska mudou o tom de suas poesias para refletir o apoio ao Estado socialista e assim conseguiu publicar o seu primeiro livro de poesias intitulado Dlagtego Zyjemy (That’s What We Live For; É para isso que vivemos) em 1952. Em 1953 ela foi trabalhar na revista de crítica literária Życie Literackie (Vida Literária), na qual permaneceu durante quase três décadas. Szymborska escrevia poesias, ensaios, e resenhas, e também traduzia.

Szymborska publicou cerca de quinze livros de poesia, e diversas coleções de suas poesias foram traduzidos para o inglês, espanhol, português e outras línguas. Ela também publicou um livro em prosa, intitulado Nonrequired Reading (Leitura não-obrigatória), publicado pela editora Harcourt, em 2002.

Embora uma das características da poesia de Szymborska seja o fato de ela ter abordado fatos históricos da Polônia desde a Segunda Guerra Mundial, ela negava que suas poesias eram políticas, pois mostravam no primeiro plano as pessoas e suas preocupações ordinárias. Na introdução do seu livro Miracle Fair (Feira de milagres) Czeslaw Milosz apontou o paralelo ente as poesias austeras de Szymborska e a visão desesperadora de Samuel Beckett e Philip Larkin, completando que, contrariamente a estes, Szymborska oferece um mundo onde é possível respirar.

Em 1996, Szymborska ganhou o Prêmio Nobel de Literatura, pelo fato de “sua poesia conter uma precisão irônica capaz de permitir que contextos históricos e biológicos ganhem a luz através de fragmentos da realidade humana”. Seus outros prêmios incluem o prêmio do Pen Club polonês, um título de Doutor Honoris Causa da Universidade Adam Mickiewicz, o Prêmio Herder e o Prêmio Goethe.

Numa entrevista que Szymborska concedeu ao The Washington Post em 1998, ela disse que “Durante o período da opressão, era um dever do poeta falar pela nação”. Numa outra entrevista que ela concedeu ao Los Angeles Times, ela disse que as suas ações fizeram sentido no clima político da época e na esperança que muitos europeus ocidentais tinham no comunismo. “Agora as pessoas não entendem a situação naquela época,” disse ela. “Eu realmente queria salvar a humanidade, mas eu escolhi a pior maneira possível. Eu fiz pelo amor à humanidade. Foi então que eu entendi que a gente não deve amar a humanidade, mas sim amar pessoas… Isso foi uma dura lição para mim. Foi um erro da minha juventude. Foi cometido de boa fé, e, infelizmente, muitos poetas fizeram a mesma coisa. Eles mais tarde seriam mandados para a prisão por terem mudado suas ideologias. Eu afortunadamente fui poupada de tal destino, pois eu nunca tive a natureza de um verdadeiro ativista político.”

Szymborska é extremamente popular em sítios da internet e a sua popularidade é atribuída à agudeza e ironia de suas poesias, que examinam pormenores domésticos ou situações ordinárias. É com enorme prazer que apresentamos duas poesias de Szymborska: O Fim e o Princípio e Amor à Primeira Vista, traduzidas para o português, o espanhol e o inglês.

PORTUGUÊS

O FIM E O PRINCÍPIO
Depois de cada guerra
alguém tem de fazer a limpeza.
As coisas não se limpam
a si próprias, afinal.

Alguém tem de afastar os escombros
Para a berma da estradas,
Para que as carroças com os cadáveres
Possam passar.

Alguém tem de meter-se
por entre a lama e as cinzas
por entre as molas dos sofás
por entre os vidros partidos
por entre os farrapos ensanguentados.

Alguém tem de arrastar a trave
Que escorará a parede,
Alguém tem de por o vidro na janela
E colocar a porta nos gonzos.

Nada disto é digno de ser fotografado
E demora anos.
As máquinas fotográficas partiram já
Para outras guerras.

As pontes têm de ser reconstruídas
E as estações ferroviárias também.
As mangas das camisas ficarão rotas
De tanto serem arregaçadas.
Alguém, vassoura na mão,
Se lembra ainda de como foi.

Outro alguém escuta, acenando que sim
Com a cabeça
Mas já outros, ali perto
Acham tudo aquilo um pouco maçador.
De vez em quando alguém
Desenterra ainda numa moita
Um velho argumento enferrujado
E lança-o na lixeira.

Os que sabem
o porquê e o como
vão ceder lugar
aos que pouco sabem.
E aos que sabem menos ainda.
E por fim mesmo nada.

E na erva que vai crescer
Sobre as causas e os efeitos
Alguém deverá deitar-se
de espiga nos dentes
olhando as nuvens

ESPANHOL

FIN Y PRINCIPIO
Después de cada guerra
alguien tiene que limpiar.
No se van a ordenar solas las cosas,
digo yo.

Alguien debe echar los escombros
a la cuneta
para que puedan pasar
los carros llenos de cadáveres.

Alguien debe meterse
entre el barro, las cenizas,
los muelles de los sofás,
las astillas de cristal
y los trapos sangrientos.

Alguien tiene que arrastrar una viga
para apuntalar un muro,
alguien poner un vidrio en la ventana
y la puerta en sus goznes.

Eso de fotogénico tiene poco
y requiere años.
Todas las cámaras se han ido ya
a otra guerra.

A reconstruir puentes
y estaciones de nuevo.
Las mangas quedarán hechas jirones
de tanto arremangarse.

Alguien con la escoba en las manos
recordará todavía cómo fue.
Alguien escuchará
asintiendo con la cabeza en su sitio.
Pero a su alrededor
empezará a haber algunos
a quienes les aburra.

Todavía habrá quien a veces
encuentre entre hierbajos
argumentos mordidos por la herrumbre,
y los lleve al montón de la basura.

Aquellos que sabían
de qué iba aquí la cosa
tendrán que dejar su lugar
a los que saben poco.
Y menos que poco.
E incluso prácticamente nada.

En la hierba que cubra
causas y consecuencias
seguro que habrá alguien tumbado,
con una espiga entre los dientes,
mirando las nubes.

De “Fin y principio” 1993 Versión de Abel A. Murcia

INGLÊS

THE END AND THE BEGINNING
After every war
someone has to clean up.
Things won’t
straighten themselves up, after all.

Someone has to push the rubble
to the sides of the road,
so the corpse-laden wagons
can pass.

Someone has to get mired
in scum and ashes,
sofa springs,
splintered glass,
and bloody rags.

Someone must drag in a girder
to prop up a wall.
Someone must glaze a window,
rehang a door.

Photogenic it’s not,
and takes years.
All the cameras have left
for another war.

Again we’ll need bridges
and new railway stations.
Sleeves will go ragged
from rolling them up.

Someone, broom in hand,
still recalls how it was.
Someone listens
and nods with unsevered head.
Yet others milling about
already find it dull.

From behind the bush
sometimes someone still unearths
rust-eaten arguments
and carries them to the garbage pile.

Those who knew
what was going on here
must give way to
those who know little.
And less than little.
And finally as little as nothing.

In the grass which has overgrown
causes and effects,
someone must be stretched out,
blade of grass in his mouth,
gazing at the clouds.

Translated from the Polish by Joanna Trzeciak

 

PORTUGUÊS

AMOR À PRIMERA VISTA
Ambos estão certos
de que uma paixão súbita os uniu.
É bela essa certeza,
mas é ainda mais bela a incerteza.

Acham que por não terem se encontrado antes
nunca havia se passado nada entre eles.
Mas e as ruas, escadas, corredores
nos quais há muito talvez se tenham cruzado?

Queria lhes perguntar,
se não se lembram –
numa porta giratória talvez
algum dia face a face?
um “desculpe” em meio à multidão?
uma voz que diz “é engano” ao telefone?
– mas conheço a resposta.
Não, não se lembram.

Muito os espantaria saber
que já faz tempo
o acaso brincava com eles.

Ainda não de todo preparado
para se transformar no seu destino
juntava-os e os separava
barrava-lhes o caminho
e abafando o riso
sumia de cena.

Houve marcas, sinais,
que importa se ilegíveis.
Quem sabe três anos atrás
ou terça-feira passada
uma certa folhinha voou
de um ombro ao outro?
Algo foi perdido e recolhido.
Quem sabe se não foi uma bola
nos arbustos da infância?

Houve maçanetas e campainhas
onde a seu tempo
um toque se sobrepunha ao outro.
As malas lado a lado no bagageiro.
Quem sabe numa noite o mesmo sonho
que logo ao despertar se esvaneceu.

Porque afinal cada começo
é só continuação
e o livro dos eventos
está sempre aberto no meio.

Tradução Regina Przybycien

ESPANHOL

AMOR A PRIMERA VISTA
Ambos están convencidos
de que los ha unido un sentimiento repentino.
Es hermosa esa seguridad,
pero la inseguridad es más hermosa.

Imaginan que como antes no se conocían
no había sucedido nada entre ellos.
Pero ¿qué decir de las calles, las escaleras, los pasillos
en los que hace tiempo podrían haberse cruzado?

Me gustaría preguntarles
si no recuerdan
-quizá un encuentro frente a frente
alguna vez en una puerta giratoria,
o algún “lo siento”
o el sonido de “se ha equivocado” en el teléfono-,
pero conozco su respuesta.
No recuerdan.

Se sorprenderían
de saber que ya hace mucho tiempo
que la casualidad juega con ellos,
una casualidad no del todo preparada
para convertirse en su destino,
que los acercaba y alejaba,
que se interponía en su camino
y que conteniendo la risa
se apartaba a un lado.

Hubo signos, señales,
pero qué hacer si no eran comprensibles.
¿No habrá revoloteado
una hoja de un hombro a otro
hace tres años
o incluso el último martes?

Hubo algo perdido y encontrado.
Quién sabe si alguna pelota
en los matorrales de la infancia.

Hubo picaportes y timbres
en los que un tacto
se sobrepuso a otro tacto.
Maletas, una junto a otra, en una consigna.
Quizá una cierta noche el mismo sueño
desaparecido inmediatamente después de despertar.

Todo principio
no es mas que una continuación,
y el libro de los acontecimientos
se encuentra siempre abierto a la mitad.

Versión de Abel A. Murcia
*****

INGLÊS

LOVE AT FIRST SIGHT
They’re both convinced
that a sudden passion joined them.
Such certainty is beautiful
but uncertainty is more beautiful still.

Since they’d never met before, they’re sure
that there’d been nothing between them.
But what’s the word from the streets, staircases, hallways –
perhaps they’ve passed each other by a million times?

I want to ask them
if they don’t remember –
a moment face to face
in some revolving door?
perhaps a “sorry” muttered in a crowd?
a curt “wrong number” caught in the receiver? –
but I know the answer.
No, they don’t remember.

They’d be amazed to hear
that Chance has been toying with them
now for years.

Not quite ready yet
to become their Destiny,
it pushed them close, drove them apart,
it barred their path,
stifling a laugh,
and then leaped aside.

There were signs and signals
even if they couldn’t read them yet.
Perhaps three years ago
or just last Tuesday
a certain leaf fluttered
from one shoulder to another?
Something was dropped and then picked up.
Who knows, maybe the ball that vanished
into childhood’s thickets?

There were doorknobs and doorbells
where one touch had covered another
beforehand.
Suitcases checked and standing side by side.
One night perhaps some dream
grown hazy by morning.

Every beginning
is only a sequel, after all,
and the book of events
is always open halfway through.

Translated by Stanisław Barańczak and Clare Cavanagh

Citation:
Wislawa Szyborska (1923-2012), Poeta Polonesa. PortVitoria, UK, v.10, Jan-Jun, 2015. ISSN 2044-8236, https://portvitoria.com

The Journey

Jo Pires-O’Brien
Review of the book Political Order and Political Decay. From the Industrial Revolution to the Globalization of Democracy, by By Francis Fukuyama (Profile Books 658pp) .
Political Order and Political Decay is the second volume of a duology in political science by Francis Fukuyama, an American political scientist specialised in democratization and international political economy, and whose 1992 book The End of History and the Last Man was a best seller translated into several languages. The first book of the duology, The Origins of Political Order, describes the historical origins of political institutions from prehuman civilization until just before the French and the American revolutions. The present book describes how the contemporary states continued to develop until they became the democracies that inspire other states to undertake a similar journey of political development. In his account, Fukuyama explores the most critical elements to political development such as geography, culture and tradition, including how these interact with one another. He also points out that since each country has its own set of conditions, each must find their own journey of political development.
Least and Most Developed States
Fukuyama portrays political development as a journey whose earlier and later stages are occupied by the least, and the most, developed states respectively. The least developed states are poor, unstable and often corrupt while the most developed states are economically autonomous, stable, impersonal and accountable. He highlights Max Weber’s classification of states into patrimonial and nonpatrimonial, pointing out that their traits coincide with those associated with the least and the most developed states. In a patrimonial state, government’s posts are filled according to the wishes of the head of the state, while in a nonpatrimonial state they are filled according to an open system of recruitment. The West introduced the nonpatrimonial state relatively late, especially when compared to China, which introduced a system of civil service examination in the third century B.C., Fukuyama points out.
Fukuyama’s account of how the European states developed into full democracies starts with the the gradual accommodation of the new middle class and the industrial working class created by the Industrial Revolution. The example he choses is England, were the non-élites formed by these two new classes, eventually gained access to government jobs which until then were ear-marked for the élite of land owners and Oxbridge graduates. That, he points out, was not enough for the new industrial working class, which after organising themselves began to demand redistribution under the aegis of Karl Marx’s socialism, which included a workers’ revolution. Although Marx’s influence extended itself into other parts of the world, it was there and not in the newly industrialised European states that workers’ revolution took place.
The crucial thing that paved the journey towards democracy of the European states is the way their political institutions reacted to accommodate the changes brought about by the Industrial Revolution. Nevertheless, the European states did not became democracies overnight. Yheir journey to democracy was sluggish and this was because many educated and well meaning people of the nineteenth century believed that the ‘masses’ simply did not have the capacity to exercise the right to vote. According with Fukuyama, at the time of the Congress of Vienna in 1815 there was no country in Europe that qualified as a full democracy. Europe became ready for democracy only in the final third of the nineteenth century. First, the right to vote was extended to all male citizens and only several decades later, women gained the right to vote.
The Franchise
Fukuyama likes to use the term ‘franchise’ to describe the inclusion of the individual in the political process that was gained through the right of vote. In Chapter 28, he provides a three column table showing how the ‘franchise’ of democracy expanded to form the world’s first full democracies. The first column shows the percentages of the ‘enfranchised’ population of each country. Apart from Denmark, in all the countries listed the percentage of the enfranchised population was under ten per cent during most of the nineteenth century. The second column shows the year when manhood suffrage appeared in each country and the third column, the year when the universal suffrage was attained. The United States was the first country to introduce the manhood suffrage, around the 1820s. Only after that it was gradually extended to the other countries. Universal suffrage was attained only in the twentieth century after women gained the right to vote.
Another European country that Fukuyama singles out is Denmark, which in addition to having had the highest percentage of enfranchised population during the nineteenth century, came top in a recent World Bank study contrasting government tax revenue as a % of GDP and government effectiveness. Denmark’s top rank inspired Fukuyama’s expression ‘getting to Denmark’, a metaphor for the journey of democracy, the big message in Fukuyama’s book.
Much further down in the journey of democracy are mature states, each with their own sets of institutions organized in such way as to provide a system of government accountability. And accountability, Fukuyama shows, is more than just a yardstick of government quality. It is an integral part of a feedback circuit involving government and society that needs to be in working order to allow democracy to flourish. Society needs to trust the state and such trust depends on the quality of its government. Fukuyama shows that trust is a social capital. If government cannot be trusted to protect the individual and property then individuals are prone to take things into their own hands. According with Fukuyama, ‘any given individual has no incentive to be the first person not to take a bribe or to pay her taxes’. Fukuyama also shows that trust is not something that comes about easily for there are many hurdles on its path.
Although the journey of democracy requires a basic political structure, states are very diverse in terms of their visions of democracy. Each state has conditions that are inherent to it and for that reason, the solutions to the problems of political development must be specific to each particular state.
Corruption
Fukuyama points out that although there are many states in the world (194, at the latest count) very few can be properly called modern states, those characterized by having good accountability, being free from clientelism and ranking high in terms of political development. He also presents a safeguard pointing out that although such states are also the most stable ones, ‘political stability’ and ‘political strength’ are different things. State stability depends on the outlook of its citizens, which is related to the degree of trust citizens have in their society. A despotic power may generate a strong state but only when the state provides a sense of fairness to its citizens will it gain their support and become politically stable. Fukuyama shows that corruption is the main reason that stands in the way of political development. Corruption can occur in omany forms. The direct form of corruprion involves stealing from the treasury, and it is referred by Max Weber as ‘prebendalism’, from the feudal ‘prebend’, where a lord simply granted a vassal a piece of land that he could exploit for his own benefit. Apart from direct corruption, Fukuyama singles out two other types of government corruption: rents and clientelism.
A ‘rent’, Fukuyama explains, is an economic term to denote the special gain that derives from a situation of scarcity, although not all government rents represent corruption. He cites as good rents those aimed to insure environmental quality, such as water supply, clean atmosphere and nature conservation. According with Fukuyama, the bad rents are those that result from an outright abuse of government power. And governments can be very crafty in creating scarcities from which they can extract rents, says Fukuyama. The example he gives of the imposition of very high import duties, something that also predispose a system of bribes to custom officers to reduce the duties or to expedite the clearance process.
Fukuyama explains clientelism as the reciprocal exchange of favours between two parties referred to as the ‘patron’ and the ‘client’. Also referred to as patronage, clientelism is characterized when a patron gives something to the client in exchange for his loyalty and political support. He also shows that sometimes a distinction is made between clientelism and patronage but that distinction is simply due to scale: patronage being the small corruption resulting from a face-to-face interaction, and clientelism the large scale corruption involving exchanges of favours between many patrons and clients.
Fukuyama explains how clientelism weakens society’s trust in government and invites further corruption. In a normal democratic process, voters choose their candidates based on a ‘programmatic’ agenda, which is justified in terms of broad concepts of justice or the general good. In a clientelistic system, on the other hand, the voters chose their candidates based on the benefits that they, as individuals, are going to receive. Since such benefits are not universal, they are detrimental both to the economy and to democracy.
High and Low Trust Societies
Political trust is another concept well explored by Fukuyama in this book. According with him, trust can be a valuable commodity albeit only in ‘high trust societies’, whose members practice social virtues like honesty, reliability and openness. A high trust society has many advantages over a low trust society such as higher cooperation and the fact that their formal mechanisms are less onerous. People are much more likely to obey the law if they see that other people around them do that too, says Fukuyama.
‘Low trust societies’, Fukuyama explains, are centered around the family, for everyone else is distrusted, including the state. This is why most business in such societies are family owned, and in order for family to control them they must remain small. Such business usually keep two sets of accountancy books, an accurate one for the family and another one for the tax collector. Thus, high tax evasion is another problem of low trust societies.
The Evolution of Democracy
Fukyuama believes that the political order is shaped by a process of evolution similar to that of the biological species and that liberal democracy is at the very edge of such evolution. He sees as an evidence of this the three waves of democracy described by Samuel Huntington; just as a reminder, the first one occurred from the 1820s to the end of the nineteenth century, the second right after World War II and the third from the 1970s until 2010. During the third wave of democracy the number of democracies around the world increased from 35 to nearly 120, something which Fukuyama interprets as a global acceptance of democracy. And Fukuyama cites three other things that evidence the globalization of democracy: (i) the new social groups that mobilize each year around the world; (ii) the mass protests that have erupted in places from Tunis to Kiev and from Istanbul to São Paulo; (iii) and the hundreds of thousands of economic migrants who try to enter into the United States and Great Britain each year.
The Process of State Building and Its Cost
According with Fukuyama, the process of state building follows the process of nation building. He explains nation building as something that aims to create a sense of national identity through tradition, symbols, historical memories and common points of reference. Such things, Fukuyama explains, are conducive to the kind of loyalty that supersedes tribes, villages, regions and ethnic groups. Fukuyama explains state building through the creation of institutions such as armies, police, bureaucracies, ministries and similar things.
Fukuyama recognises that the processes of nation and state building comes at a cost. He quotes French philosopher Ernest Renan (1823-1892) who denounced the ‘historical amnesia’ that facilitated the nation building process in France. The term ‘historical amnesia’ describes this cost, which refers to the disappearance of many small ethnic groups and societies. Fukuyama extends the French case which Renan described to the formation of Great Britain and the United States. In Great Britain the original culture of the original Celtic Gaelic-speaking inhabitants was side-lined by the Romans, the Angles, the Saxons, the Danes, and the Normans invaders, as well as the incorporation of Wales, Scotland and Ireland. The United States was formed at the expense of the country’s indigenous inhabitants. The consequence of this is that the existing states, including the most modern democracies, can neither erase the bloody struggles in their distant past nor the crimes against their respective indigenous inhabitants.
Countries Cases
In this book Fukuyama puts a magnifying glass over several countries in order to take a closer look at their most pertinent problems. From Europe, Fukuyama singles out Italy and Greece, two countries that in spite of being industrialised have failed to modernise. Fukuyama suggests that it was not a coincidence that both Greece and Italy were at the very core of the 2009 euro crisis. The case of Italy is specially interesting because Italy is not only an industrialised state but a rich one as well. The case of Greece is particularly interesting because it is the birth place of democracy and yet the Greek government is known today for its low quality. To Fukyuama, the lack of a strong tradition of statehood is at the heart of Greece’s problems. He pointed out that in modern times Greece spent a long period under various foreign influences and only after World War II did it regain its independence. The lack of a strong tradition of statehood turned Greece into a low trust society with few entrepreneurial opportunities. Due to this particular situation, the Greeks prefer to seek jobs in the state sector than to become entrepreneurs, and the Greek politicians are happy to oblige in exchange for votes.
Both Italy and Greece remain highly clientelistic states. In 2009 the number of public employees in Greece was around seven hundred thousand. According with a report by the Organization for Economic Cooperation and Development (OECD) between 1970 and 2009 the number of public employees in Greece had increased five fold. The same report revealed that the public sector wages plus bonuses were one and a half times those in the private sector.
Another important point that Fukuyama makes after describing the problems of Greece is that such problems are very similar to those of Latin America. In his account of Latin America Fukuyama points that although its countries introduced constitutions and modelled their system of government in the presidentialist system of the United States they kept the authoritarian and mercantilist institutions they inherited from the Spanish and Portuguese, including the old class structure characterised by an unequal distribution of resources.
What Fukuyama said about the cost of creating the states of Great Britain and the United States, namely the loss of their indigenous peoples, also applies to Latin America. But Fukuyama also deals directly with the indigenous peoples of the American continent. In comparative terms, Fukuyama places the pre-Colombian civilizations of Mexico and Peru at the same level of development as the Chinese Qin-Han and even more so with the Mauryas of India who lived in the third century B.C., although he points out that the latter did participate in the political process in India under the leader Ashoka. Fukuyama states having tried to understand why the most advanced Aztecs and Incas failed to contribute to the political institutions that the European settlers created, like similar indigenous groups in China and India. He posits that the Aztecs and Incas lacked a bureaucratic hierarchy needed to build political institutions. Although the Aztecs had an ancient system of writing, such protowriting was sufficient for some ritual purposes but not for routine communications throughout a bureaucratic hierarchy.
In his analysis of Latin America Fukuyama refers to its inequality as a ‘birth defect’, which implies that Latin American’s inequality is not a problem to be solved but a problem to be managed. To him, the way to manage Latin America’s inequality is by modernizing, that is, by getting rid of corruption. Fukuyama also points out the fact that many political parties in Latin America are clientelistic instead of programmatic. He cites as an example only the Peronist party in Argentina. However, us Latin Americans know many more. The Latin American clientelistic parties thrive on the vote of the poor which is much cheaper than the vote of the middle classes. Due to the relation that exists between clientelism and low economic development, the electoral success of the clientelist parties of Latin America serve only perpetuate the region’s inequality.
When Democracy Decays
The fact that the word ‘decay’ appears in the title of Fukuyama’s book shows the importance he gives to the possibility of the democratic process to fall back. In an inverted parody of Tolstoy’s statement about families Fukuyama states that each democracy is different but the causes of their political decay are the same. On the subject of political decay Fukuyama uses as examples the United States and the Brics, the four emerging global economies singled out in a Goldman Sachs report: Brazil, India, China and South Africa.
It is somewhat surprising that the first target of Fukuyama’s criticism of political decay is the United States, not only because it is his own country but also because American democracy is considered to be one of the most developed. According with Fukuyama, in the second half of the twenty century the processes of checks and balances that the founding fathers of America had introduced extrapolated into that which he calls ‘excessive judicialization’. To Fukuyama, the American democracy has become a ‘vetocracy’, for the United States government are currently in the hands of the courts. The Brics are also under the threat of political decay. According to Fukuyama, these countries are experimenting fast economic growth but their institutions are failing to evolve to accommodate the changes that have resulted from that.
Conclusion
Many academic books originated in the United States and Europe are of the type ‘West and Rest’, but this is not the case of Fukuyama’s impressive duology. In Political Order and Political Decay Fukuyama shows that political order and democracy are processes that need to be maintained and fine-tuned, otherwise they begin to decay. He also shows that each country has its own pattern of political order and democracy and therefore must find the solutions to its own problems accordingly. Fukuyama ends his book with the warning that democracies exist and survive because people want and are willing to fight for them. In other words, democracy needs the support of citizens, who in turn need to gain a reasonable understanding of their political institutions and their government. The best way to gain this understanding is by asking questions and this book is useful precisely because it has many examples of relevant questions: What is the connection between economic development and democracy? Why did the three waves of democratization occur? Why did they occur in some regions and societies and not in others? Why did democracy became accepted globally in the twentieth century but not before? How the twenty century would have been if Marx had not existed?
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Jo Pires-O’Brien is the editor of PortVitoria, a biannual e-magazine about the Luso-Hispanic culture: https://portvitoria.com

Citation:
FUKUYAMA, F. Political Order and Political Decay: From the Industrial Revolution to the Globalization of Democracy. London, Profile Books, 2014. Review by: PIRES-O’BRIEN, J. (2015). The Journey.PortVitoria, UK, v.10, Jan-Jun, 2015. ISSN 2044-8236, https://portvitoria.com

Jo Pires-O’Brien

Resenha do livro Political order and political decay. From the Industrial Revolution to the globalization of democracy (Ordem política e decadência política. Da Revolução Industrial à globalização da democracia), de Francis Fukuyama (Profile Books 658pp)

Political order and political decay é o segundo volume de uma dobradinha de Francis Fukuyama, um cientista político americano especializado em democratização e economia política internacional, cujo livro, de 1992, The end of history and the last man (O fim da História e o último homem) foi um best seller, traduzido em diversas línguas. O primeiro livro do conjunto, The origins of political order (As origens da ordem política), descreve as origens históricas das instituições políticas e o processo da decadência política, desde o período que antecede a civilização humana até pouco antes das revoluções Francesas e Americana. O presente livro descreve como os Estados contemporâneos continuaram a se desenvolver até se tornarem as democracias que inspiram outros Estados a fazer uma jornada semelhante de desenvolvimento político. Em sua narrativa, Fukuyama explora os elementos mais relevantes do desenvolvimento político tais como a geografia, a cultura e a tradição, e as suas interações recíprocas. O ponto que ele enfatiza é que, como cada país tem o seu conjunto próprio de condições, cada qual deve traçar a sua própria jornada de desenvolvimento político.

Estados menos desenvolvidos e mais desenvolvidos
Fukuyama retrata o desenvolvimento político como uma jornada cujas etapas iniciais e finais são ocupadas pelos Estados menos e mais desenvolvidos, respectivamente. Os Estados menos desenvolvidos são pobres, instáveis e frequentemente corruptos, enquanto que os Estados mais desenvolvidos são economicamente autônomos, estáveis, impessoais e contabilizáveis. Ele sublinha a classificação de Max Weber dos Estados em patrimoniais e não patrimoniais, apontando o fato de suas características coincidirem com aquelas associadas aos Estados mais e menos desenvolvidos. Num Estado patrimonial, os cargos do governo são preenchidos de acordo com os desejos do chefe de Estado, enquanto que num Estado não patrimonial eles são preenchidos de acordo com um sistema aberto de recrutamento. Fukuyama aponta que o Ocidente introduziu o Estado não patrimonial relativamente tarde, especialmente quando comparado com a China, que introduziu um sistema de provas para o serviço público no terceiro século a.C.

A narrativa de Fukuyama sobre como os Estados europeus se desenvolveram, até o ponto de democracias amadurecidas, começa com a gradual acomodação das duas novas classes criadas pela Revolução Industrial: a classe média e a classe dos trabalhadores da indústria. O exemplo que Fukuyama escolhe é o da Inglaterra, onde as não elites formadas pelas pessoas dessas duas novas classes, eventualmente ganharam acesso a empregos no governo que, até então, eram reservados para a elite formada pelos proprietários e pelos graduados de Oxbridge. Tal ganho, aponta Fukuyama, não foi suficiente para a nova classe dos trabalhadores da indústria, os quais, após terem se organizado, começaram a demandar redistribuição, sob a égide do socialismo de Karl Marx, que incluía uma revolução dos trabalhadores. Embora a influência de Marx tivesse se estendido para outras partes do mundo, foi lá e não nos novos Estados europeus recém-industrializados que ocorreu a revolução dos trabalhadores.

O aspecto crucial que pavimentou a jornada dos novos Estados europeus em direção à democracia plena foi a maneira como as instituições políticas reagiram para acomodar as mudanças trazidas pela Revolução Industrial. Todavia, os Estados europeus não viraram democracias da noite para o dia. As suas jornadas para a democracia prosseguiram com bastante lerdeza. E isso foi devido ao fato de muitas pessoas bem educadas e bem intencionadas do século XIX acreditarem que as ‘massas’ simplesmente não tinham a capacidade para exercer o direito do voto. De acordo com Fukuyama, na ocasião do Congresso de Viena, em 1815, não havia nenhum país na Europa que pudesse ser qualificado como uma democracia plena. Apenas no último terço do século XIX, a Europa ficou pronta para a democracia. Primeiro, o direito de votar foi estendido a todos os cidadãos homens e apenas décadas depois, no século XX, as mulheres ganharam o direito de votar.

A ‘franchise’
Fukuyama gosta de empregar o termo ‘franchise’ para descrever a inclusão do indivíduo no processo político, obtida através do direito do voto. No capítulo 28, ele apresenta uma tabela de três colunas, mostrando como a ‘franchise’ da democracia se expandiu para formar as primeiras democracias modernas plenas. A primeira coluna mostra as porcentagens de população ‘enfranchised’ em cada país. Em todos os países listados, com exceção da Dinamarca, as porcentagens de população ‘enfranchised’ permaneceram abaixo de dez por cento durante a maior parte do século XIX. A segunda coluna mostra o ano do sufrágio masculino em cada país, e a terceira coluna mostra o ano de obtenção do sufrágio universal. Os Estados Unidos foram o primeiro país a introduzir o sufrágio masculino, o que ocorreu por volta de 1820. Apenas depois este foi gradualmente estendido aos outros países. O sufrágio universal foi obtido apenas no século vinte quando as mulheres ganharam o direito do voto.

Outro país europeu que Fukuyama singulariza é a Dinamarca, país que além de ter apresentado a mais alta proporção de pessoas ‘enfranchised’ durante o século XIX, alcançou o primeiro lugar num estudo recente do Banco Mundial, contrastando a receita de impostos do governo como porcentagem do PIB e a eficácia governamental. O fato de a Dinamarca ter alcançado o topo do ranque inspirou a expressão usada por Fukuyama ‘chegar à Dinamarca’, uma metáfora da jornada da democracia, a grande mensagem do livro de Fukuyama.

Bem adiante na jornada da democracia estão os Estados maduros, cada qual com conjuntos próprios de instituições organizadas de tal forma a conferir um sistema de responsabilidade fiscal ao governo. Fukuyama mostra que a responsabilidade fiscal é mais do que uma medida da qualidade do governo. É uma parte integral de um circuito de retroalimentação envolvendo o governo – o qual precisa estar em bom estado de funcionamento para permitir que a democracia floresça – e a sociedade. Esta precisa confiar no Estado e essa confiança depende da qualidade do governo. Fukuyama mostra que a confiança é um capital social. Se não se pode confiar no governo para proteger o indivíduo e a propriedade, então os indivíduos ficam propensos a tomar as coisas em suas próprias mãos. Segundo Fukuyama, ‘um indivíduo qualquer não tem nenhum incentivo a ser a primeira pessoa a não aceitar um suborno ou a pagar os seus impostos’. Fukuyama mostra também que confiança não é algo que surge com facilidade, pois existem muitos obstáculos no seu caminho.

Embora a jornada da democracia requeira uma estrutura política básica, os Estados são muito diversos em termos de suas visões da democracia. Cada Estado tem condições inerentes a si próprios, e por esse motivo, as soluções para os problemas de suas políticas de desenvolvimento devem ser específicas para cada Estado particular.

Corrupção
Fukuyama mostra que, embora haja muitos países no mundo (194, na última contagem), poucos podem ser chamados propriamente de Estados modernos, aqueles caracterizados por terem uma boa responsabilidade fiscal, serem livres do clientelismo e apresentarem um ranking elevado de desenvolvimento político. Ele faz uma ressalva de que, embora tais Estados sejam também os mais estáveis, ‘estabilidade política’ e ‘força política’ são coisas diferentes. A estabilidade do Estado depende da perspectiva dos seus cidadãos, sendo que esta é relacionada ao grau de confiança que os cidadãos têm em sua sociedade. Um poder despótico pode gerar um Estado forte, mas apenas quando o Estado confere um senso de justiça aos seus cidadãos é que ele ganha o apoio destes, tornando-se politicamente estável. Fukuyama mostra que a corrupção é o principal atravancador do desenvolvimento político. A corrupção pode ocorrer de várias formas. O tipo direto de corrupção envolve roubar do tesouro e é chamado por Max Weber de ‘prebendalismo’, do termo feudal ‘prebenda’, quando um senhor de terras simplesmente dava a um vassalo um pedaço de terra para que ele o explorasse em benefício próprio. Tirando a corrupção direta, Fukuyama destaca dois outros tipos de corrupção governamental: rendas e clientelismo.

Fukuyama explica que nem todas as ‘rendas’ governamentais representam corrupção, uma vez que ‘renda’ é um termo da ciência econômica usado para denotar o ganho especial que deriva de uma situação de escassez. Ele cita como rendas boas aquelas destinadas a assegurar a qualidade ambiental, o que inclui o abastecimento de água, manter a atmosfera limpa e a conservação da natureza. De acordo com Fukuyama, as más rendas são aquelas que resultam de um abuso direto do poder governamental. E os governos conseguem ser bastante criativos em gerar escassezes a partir das quais eles extraem rendas, diz Fukuyama. O exemplo que ele dá é a imposição de taxas excessivas de importação, coisa que também predispõe a um sistema de suborno a oficiais alfandegários para reduzir as taxas ou para acelerar o processo de liberação de mercadorias importadas.

Fukuyama explica o ‘clientelismo’ como sendo a troca recíproca de favores entre duas partes referidas como o ‘patrão’ e o ‘cliente’. Também chamado de patronagem, o clientelismo caracteriza-se quando um ‘patrão’ dá algo a um ‘cliente’ em troca da sua lealdade e do apoio político. Ele também mostra que, às vezes, uma distinção é feita entre clientelismo e patronagem, mas que tal distinção é simplesmente devida à escala: a patronagem sendo a pequena corrupção, resultante de uma interação face a face, e o clientelismo uma corrupção de alta escala, envolvendo trocas de favores entre muitos ‘patrões’ e ‘clientes’.

Fukuyama explica como o clientelismo enfraquece a confiança da sociedade no governo e promove mais corrupção. Num processo democrático normal, os eleitores escolhem os seus candidatos com base numa agenda ‘programática’, que é justificada pelo fato de apresentar conceitos de justiça amplos ou o bem geral. Por outro lado, num sistema clientelista, os eleitores escolhem os seus candidatos com base nos benefícios que eles, como indivíduos, irão receber. Como tais benefícios não são universais, eles são prejudiciais, tanto para a economia quanto para a democracia.

Sociedades de baixa e de alta confiança
A confiança política é outro conceito que Fukuyama explora neste livro. De acordo com ele, a confiança é uma comodidade valiosa, se bem que apenas nas ‘sociedades de alta confiança’, cujos membros praticam as virtudes sociais como honestidade, confiabilidade e abertura. Uma sociedade de alta confiança tem muitas vantagens sobre uma sociedade de baixa confiança, tais como uma cooperação maior e o fato dos seus mecanismos formais serem menos onerosos. As pessoas são muito mais propensas a cumprir a lei se elas virem que as demais pessoas ao seu redor também fazem isso, completa Fukuyama.

As sociedades de baixa confiança, Fukuyama explica, são centradas na família, pois ninguém mais é confiável, incluindo o Estado. É por isso que a maioria dos negócios em tais sociedades são propriedade de famílias, e, para que a família possa controlá-los, eles têm que permanecer pequenos. Tais negócios costumam manter dois jogos de livros de contabilidade, um que é apurado, para a família, e outro para o coletor de impostos. Assim sendo, a alta evasão fiscal é outro problema das sociedades de baixa confiança.

A evolução da democracia
Fukyuama acredita que a ordem política é formada por um processo evolutivo semelhante ao das espécies biológicas e que a democracia liberal situa-se na extremidade dessa evolução. Ele vê as três ondas de democracia descritas por Samuel Huntington como uma evidência disso; apenas para recordar, a primeira que ocorreu de 1820 até o final do século XIX, a segunda que ocorreu logo depois da Segunda Guerra mundial e a terceira que surgiu entre 1970 e 2010. Durante a terceira onda de democracia, o número de democracias no mundo aumentou de 35 para quase 120, algo que Fukuyama interpreta como uma aceitação global da democracia. Fukuyama cita ainda três outras evidências da globalização da democracia: (i) os novos grupos sociais que se mobilizam a cada ano ao redor do mundo; (ii) as demonstrações de massas que surgiram em lugares que vão de Túnis a Kiev e de Istambul a São Paulo; (iii) as centenas de milhares de migrantes econômicos que tentam entrar nos Estados Unidos e na Grã-Bretanha todos os anos.

O processo de construção do Estado e o seu custo
De acordo com Fukuyama, o processo de construção do Estado ocorre após o processo de construção da nação. Ele explica o processo de construção da nação como algo capaz de criar um senso de identidade nacional através de tradições, símbolos, memórias históricas e pontos de referência comuns. Tais coisas, Fukuyama explica, são conducentes ao tipo de lealdade que suplantam tribos, vilas, regiões e grupamentos étnicos. Fukuyama explica a construção do Estado através de instituições tais como exércitos, polícia, burocracias, ministérios etc.

Fukuyama reconhece que os processos de construção de nação e do Estado têm um custo. Ele cita o filósofo francês Ernest Renan (1823-1892) o qual denunciou a ‘amnésia histórica’ que facilitou o processo de construção da nação francesa. O termo ‘amnésia histórica’ descreve esse custo, o qual se refere ao desaparecimento de diversos pequenos grupos étnicos e pequenas sociedades. Fukuyama estende o caso da França, explicado por Renan, à formação da Grã-Bretanha e dos Estados Unidos. Na Grã-Bretanha, a cultura original dos habitantes falantes do celta-gálico foi marginalizada pelos invasores romanos, anglos, saxões, dinamarqueses, e normandos, bem como pela incorporação do País de Gales, Escócia e Irlanda. Os Estados Unidos foram formados às custas dos habitantes indígenas. A consequência disso é que os Estados existentes no mundo, incluindo as mais modernas democracias, não podem apagar nem as lutas sangrentas no seu passado distante nem os crimes cometidos contra suas respectivas populações indígenas.

Países casos
Neste livro Fukuyama coloca uma lupa sobre diversos países a fim de examinar melhor os seus problemas mais pertinentes. Da Europa, Fukuyama singulariza a Itália e a Grécia, dois países que falharam em modernizar-se a despeito de serem industrializados. Fukuyama sugere que não é nenhuma coincidência que tanto a Grécia quanto a Itália encontravam-se no âmago da crise europeia de 2009. O caso da Itália é especialmente interessante, devido ao fato de este país ser não apenas industrializado, mas também rico. O caso da Grécia é particularmente interessante, pois, apesar de a Grécia ser o berço da democracia, o governo grego de hoje é conhecido pela sua baixa qualidade. Para Fukyuama, a falta de uma tradição de Estado forte está no âmago dos problemas da Grécia. Ele aponta que nos tempos modernos a Grécia passou um período longo sob diversas influências estrangeiras e, apenas após a Segunda Guerra mundial, recuperou sua independência. A falta de uma tradição forte de Estado independente tornou a Grécia uma sociedade de baixa confiança dotada de poucas oportunidades de empreendimentos. Devido a esta situação particular, os gregos preferem empregos no setor público a tornarem-se empresários, e os políticos gregos estão prontos para ajudá-los nisso em troca de votos.

Tanto a Itália quanto a Grécia permanecem sendo Estados altamente clientelistas de acordo com Fukuyama. Em 2009, o número de funcionários públicos na Grécia ficava em torno de sete mil. De acordo com um relatório da Organização de Cooperação Econômica e Desenvolvimento (OECD), entre 1970 e 2009, o número de funcionários públicos na Grécia quintuplicou. O mesmo relatório revelou que os salários mais os bônus do setor público somavam uma vez e meia aqueles do setor privado.

Outro ponto importante que Fukuyama levanta após descrever os problemas da Grécia é que tais problemas são bastante semelhantes aos da América Latina. Na sua descrição da América Latina, Fukuyama aponta que, embora seus países tenham introduzido constituições e modelado seus sistemas de governo baseados no sistema presidencialista dos Estados Unidos, eles mantiveram as instituições autoritaristas e mercantilistas que haviam herdado dos espanhóis e portugueses, incluindo a velha estrutura de classes caracterizada pela má distribuição de recursos.

Aquilo que Fukuyama disse sobre o custo da criação dos Estados da Grã-Bretanha e dos Estados Unidos, nomeadamente a perda de seus povos indígenas, também se aplica à América Latina. Fukuyama trata diretamente dos povos indígenas do continente americano. Em termos comparativos, coloca as civilizações pré-colombianas do México e do Peru no mesmo nível de desenvolvimento dos qin-han chineses e mais ainda com os máurias da Índia, que viveram no terceiro século a.C., embora ele afirme que esses últimos não participaram do processo político na Índia sob o líder Ashoka. Fukuyama afirma ter procurado entender por que os indígenas mais avançados da América Latina, como os astecas e os incas, falharam em contribuir para as instituições políticas que os colonizadores europeus criaram, como fizeram os grupos indígenas semelhantes na China e na Índia. Ele especula que os astecas e os incas não tinham a hierarquia burocrática necessária para criar instituições políticas. Apesar de os astecas terem desenvolvido um sistema de proto-escrita, esta era suficiente somente para o propósito de alguns rituais, não para comunicações de rotina através de uma hierarquia burocrática.

Em sua análise da América Latina, Fukuyama refere-se à sua desigualdade como um ‘defeito de nascença’ e isso implica que a desigualdade latino-americana não é um problema para ser resolvido, mas, sim, um problema para ser manejado. Para ele, a maneira de manejar a desigualdade da América Latina é através da modernização, isto é, da erradicação da corrupção. Fukuyama também aponta o fato de que muitos partidos da América Latina são clientelistas ao invés de programáticos. Ele cita, como exemplo, apenas o partido Peronista da Argentina. Entretanto, nós latino-americanos conhecemos diversos outros. Os partidos clientelistas da América Latina vicejam através dos votos dos pobres que são mais baratos do que os votos da classe média. Devido à relação existente entre clientelismo e baixo nível de desenvolvimento econômico, o sucesso eleitoral dos partidos clientelistas da América Latina serve apenas para perpetuar a desigualdade da região.

A democracia em decadência
O fato de a palavra ‘decadência’ constar do título do livro de Fukuyama mostra a importância que ele dá à possibilidade de o processo democrático retroceder. Numa paródia invertida da afirmação de Tolstói sobre as famílias, Fukuyama afirma que cada democracia é diferente, mas as causas das suas decadências políticas são as mesmas. E, no tópico da decadência política, usa como exemplos os Estados Unidos e os Brics, as quatro economias globais emergentes apontadas num relatório da Goldman Sachs: Brasil, Índia, China e África do Sul.

É de certa forma surpreendente que os Estados Unidos sejam o primeiro alvo da crítica de Fukuyama à decadência política, não apenas por ser o seu próprio país, mas também pelo fato de a democracia americana ser considerada uma das mais bem desenvolvidas. De acordo com Fukuyama, na segunda metade do século XX, os processos de verificações e equilíbrio que os pais fundadores da América haviam introduzidos, baseados na separação dos poderes executivo, legislativo e judiciário, foram extrapoladas para formar aquilo que ele chama de ‘judiciarização excessiva’. Para ele, a democracia norte-americana converteu-se numa ‘vetocracia’, pois o governo dos Estados Unidos encontra-se nesse momento nas mãos dos tribunais. Os países Brics também estão sob a ameaça da decadência política. Segundo Fukuyama, tais países estão experimentando um rápido crescimento econômico, contudo as suas instituições não estão evoluindo para acomodar as mudanças decorrentes desse crescimento.

Conclusão
Muitos livros acadêmicos originados nos Estados Unidos e na Europa são do tipo ‘o Ocidente e o resto’, mas esse não é o caso dessa impressionante dobradinha de Fukuyama. O livro Political order and political decay de Fukuyama mostra que a ordem política e a democracia são processos que precisam receber manutenção e ser afinados, caso contrário começam a se deteriorar. Ele também mostra que cada país tem o seu próprio padrão de ordem política e de democracia, e que, portanto, deve buscar soluções para os seus próprios problemas. Fukuyama termina o livro com um aviso de que as democracias existem e sobrevivem porque as pessoas querem e estão dispostas a lutar por isso. Trocando em miúdos, as democracias precisam do apoio dos cidadãos, que por sua vez precisam ter uma compreensão razoável de suas instituições políticas e de seus governos. A melhor maneira de adquirir tal compreensão é fazendo perguntas, e este livro é útil precisamente porque mostra muitos exemplos de perguntas relevantes: Qual é a conexão entre desenvolvimento econômico e democracia? Por que as três ondas de democratização ocorreram? Por que elas ocorreram em algumas regiões e sociedades mas não em outras? Por que a democracia tornou-se globalmente aceita no século XX mas não antes? Como o século XX teria sido se Marx não tivesse existido?


Jo (Joaquina) Pires-O’Brien é a editora de PortVitoria, revista eletrônica bianual voltada a falantes de português e espanhol.

Revisão: Débora Finamore

Citação:
FUKUYAMA, F. Political order and political decay: from the Industrial Revolution to the globalization of democracy. London, Profile Books, 2014. Resenha de: PIRES-O’BRIEN, J. (2015). A jornada. PortVitoria, UK, v.10, Jan-Jun, 2015. ISSN 2044-8236, https://portvitoria.com

Joaquina Pires-O’Brien

O papel do conhecimento não é dar ao homem olhos, mas guiar, governar e direcionar os seus passos. Michel de Montaigne.

A educação é a descoberta progressiva da nossa própria ignorância. Will Durant

O conhecimento habilita o indivíduo a contribuir positivamente para a opinião pública, considerada a condição necessária da boa governança e da democracia. O tipo de conhecimento ao qual eu me refiro é o ‘conhecimento geral’, que representa uma visão panorâmica de todo o conhecimento existente tanto das ciências quanto das artes, e que inclui o conhecimento da sociedade e da civilização. Neste ensaio, procurarei mostrar a evolução do conhecimento em termos de quantidade de saber acumulado e do número de pessoas que tem acesso ao mesmo conhecimento. Procurarei, também, analisar o conhecimento a partir do século XX, em face a dois fenômenos apontados como aviltadores do conhecimento: o crescimento das massas, especialmente as do período entre guerras, e a Idade Digital.

O conhecimento e os seus donos evoluíram numa trajetória convoluta de avanços e retrocessos. Na Antiguidade, era um privilégio da elite controladora do poder enquanto que o povo comum era presumido como sendo ignorante. A partir da Renascença, a filiação ao estabelecimento já não era uma condição obrigatória para a busca do conhecimento. Durante a chamada Idade da Razão, período compreendido entre 1687 e 1755, o número de estudiosos da Europa Oeste cresceu vertiginosamente. Entretanto, o período histórico mais importante em termos de de disseminação do conhecimento foi o Iluminismo, ou Século das Luzes, compreendido mais ou menos entre 1755 e 1794. Foi nesse período que surgiu a primeira Enciclopédia, reunindo todo o saber existente. O público leigo passou a debater as ideias do momento e a entender a necessidade da educação mínima para todos.

O conhecimento e os seus donos evoluíram numa trajetória convoluta de avanços e retrocessos. Na Antiguidade, era um privilégio da elite controladora do poder enquanto que o povo comum era presumido como sendo ignorante. A partir da Renascença, a filiação ao estabelecimento já não era uma condição obrigatória para a busca do conhecimento. Durante a chamada Idade da Razão, período compreendido entre 1687 e 1755, o número de estudiosos da Europa Oeste cresceu vertiginosamente. Entretanto, o período histórico mais importante em termos de de disseminação do conhecimento foi o Iluminismo, ou Século das Luzes, compreendido mais ou menos entre 1755 e 1794. Foi nesse período que surgiu a primeira Enciclopédia, reunindo todo o saber existente. O público leigo passou a debater as ideias do momento e a entender a necessidade da educação mínima para todos.

O conhecimento sofreu um retrocesso quando os revolucionários socialistas do século XIX decidiram que todas as elites de poder eram perniciosas, inclusive as cientistas e intelectuais, uma visão que foi mantida pelos promotores da correção politica do século XX. Essa questão é abordada por Mário Vargas Llosa no seu livro A Civilização do Espetáculo, 2012. Nesse livro, Vargas Llosa definiu a cultura como senso ‘a bússola da civilização’, ‘um guia que permite que as pessoas se orientem no espesso emaranhado de conhecimentos sem perder a direção, e que permite reconhecer o caminho principal e os desvios inúteis’. Os promotores da correção politica conseguiram fazer com que tudo virasse cultura. Entretanto, aponta Vargas Llosa, se tudo é cultura nada é cultura. O remédio contra o ar de superioridade das elites intelectuais acabou sendo pior do que a doença, pois agora somos obrigados a viver sem rumo e num mundo amorfo e confuso.

As revoluções socialistas, a ascensão da esquerda, a Guerra das Culturas, tudo isso atrapalhou o avanço do conhecimento no Ocidente. Pode-se dizer que no último quarto do século, pelo menos no Ocidente, o conhecimento já era algo totalmente aberto a quem quer que o desejasse. Essa época coincidiu com os avanços do metaconhecimento, ou seja, o conhecimento do conhecimento, o qual é uma área reconhecidamente interdisciplinar. E, por último, coincidiu, também, com o surgimento da revolução digital. O cenário do século XXI mostra que o conhecimento não tem mais o prestígio que outrora já teve. Os motivos disso são diversos, incluindo desde a competição com a tecnologia da informação até a mudança nos anseios da população maior.

O Conhecimento da Antiguidade ao Iluminismo

Na Antiguidade, o conhecimento estava associado à realeza e a ignorância ao povo. Um exemplo dessa associação são os boatos que corriam sobre Alexandre o Grande (356-323 a.C.). A própria mãe de Alexandre, para se vingar de Filipe II, por este ter arrumado outra esposa, espalhou o boato de que Alexandre não era filho de Felipe II, mas sim de Hércules. O boato de que Alexandre era filho de Hércules puxava outro boato, de que ele era invencível. Percebendo que tais boatos o ajudavam nas suas conquistas, Alexandre foi adiante com os mesmos, traindo a educação que havia recebido.

Outra característica da Antiguidade era a desconfiança que havia pelo detentor do conhecimento que não fosse um membro do estabelecimento. Aqui o exemplo mais contundente é o de Sócrates (469-399 a.C.), que em 399 a.C. foi oficialmente acusado de impiedade e de corrupção dos jovens, e, em seguida, condenado à morte. Sócrates era despojado, costumava andar descalço e mal vestido, e conversava com todos sem distinção, pobre ou rico, novo ou velho, livre ou escravo, homem ou mulher. Sabemos das conversas de Sócrates através da obra de Platão (427-347 a.C.), que as registrou nos seus livros. Conforme mostrou Platão, as conversas ou diálogos de Sócrates tinham sempre um caráter inquiridor, pois, segundo este último, “a vida não examinada não vale a pena ser vivida por um ser humano.” Sócrates tinha diversos seguidores jovens, que costumavam imitar a sua forma de questionar, irritando os mais velhos. O fato de Sócrates possuir conhecimento sem ser um membro do estabelecimento incomodou muitos atenienses de sua época, e em especial a classe dos professores já estabelecidos – os sofistas – que ensinavam aos jovens como obter sucesso na vida pública. Ao ser acusado de exercer a profissão de professor, Sócrates retrucou que nunca havia aceitado dinheiro pelo que fazia. Ao ser interpelado se ele concordava com os rumores de que ele era o homem de maior conhecimento de Atenas, Sócrates negou, dizendo “Quanto mais eu sei, menos eu sei”.

A morte de Sócrates tipificou a desconfiança que existia contra aqueles que têm conhecimentos, mas que não são afiliados do estabelecimento. Sócrates deixou um enorme legado que inclui o esclarecimento entre o saber e a ignorância. Na sua frase “Quanto mais eu sei, menos eu sei”, Sócrates quis dizer que o conhecimento pleno era impossível e que quem quer que julgasse tê-lo só poderia estar enganado. Sócrates era sábio porque conhecia a própria ignorância.

O regime antigo europeu (1), que perdurou da Antiguidade até o fim do Feudalismo medieval, não era muito diferente da Antiguidade Grega. A maioria da população era praticamente analfabeta, e o conhecimento existente concentrava-se na elite detentora do poder, que consistia na nobreza, formada pelo monarca reinante e pelos aristocratas, e no clero. A última fase do Feudalismo medieval europeu desenrolou-se concomitantemente à Renascença ou Renascimento. Na Europa, o Renascimento surgiu em épocas diferentes na França, Itália, Alemanha e Grã Bretanha, e com características próprias em cada país. A Renascença incomodou bastante o clero, que se sentiu ameaçado pela nova elite de humanistas e cientistas independentes do poder tradicional.

A elite de humanistas e cientistas independentes do poder tradicional que começou a surgir na Renascença expandiu-se enormemente no Iluminismo, período compreendido mais ou menos entre 1755 e 1795. Alguns historiadores optam por separar o Iluminismo pelos seus países de ocorrência, falando de Iluminismo britânico, francês, alemão, etc. Outros procuram mostrar que houve um Iluminismo bom e outro ruim. Entretanto, tais separações são falhas, uma vez que o Iluminismo foi um movimento universal voltado a reinterpretar o mundo à luz das novas descobertas científicas.

Três filósofos de destaque do Iluminismo foram o inglês John Locke (1632-1704) – um pré-iluminista, o escocês David Hume (1711-76) e o prussiano Emanuel Kant (1724-1804). No seu livro Essay Concerning Human Understanding (Ensaio sobre o entendimento humano), publicado em 1690, Locke justapôs a razão humana aos avanços da ciência, concluindo que todo conhecimento é fundamentado e deriva-se do senso… ou sensação. As duas importantes implicações disso sobre o conhecimento são: (i) existe apenas um conhecimento; e (ii) como o conhecimento vem da consciência, é possível aplicar as leis da moral a todos, inclusive aos pagãos e ateístas. Hume levou adiante as ideias de Locke sobre o conhecimento. No seu livro A Treatise of Human Nature (Tratado sobre a natureza humana), 1739-40, Hume expressou a diferença que existe entre conhecimento e crença. Segundo Hume, como a crença vem da fé religiosa e a fé religiosa é uma revelação, então a crença não é uma forma legítima de conhecimento. Entretanto, o marco do início da filosofia moderna é o livro de Kant Crítica da razão pura, de 1781. A visão de Kant é entendida pelas suas duas fases, a primeira caracterizada pelo religioso imerso na teologia vigente e a segunda pelo filósofo maduro que procurou colocar a moral no vazio deixado pela religião. O seu livro Crítica da razão prática (1788), ou Segunda crítica, contrasta o raciocínio científico e o raciocínio prático e mostra as interfaces entre a ciência e a filosofia.

O Iluminismo recebeu os mais diversos ataques por diversas doutrinas antimaterialistas, algumas de caráter bastante fundamentalista, como a do clérigo irlandês George Berkeley (1685-1753) o qual afirmou que o mundo e o conhecimento do mundo são idênticos, pois a única realidade física são os pensamentos ou ideias.

Quando a Certeza é Indevida

Diversos observadores notaram que as pessoas mais estúpidas são cheias de certeza enquanto que as pessoas mais inteligentes são cheias de dúvidas. É que a inteligência e a ignorância nem sempre são apartadas com a facilidade com que se separa o trigo do joio. O fenômeno da certeza indevida é complicado pela inabilidade das pessoas de entender os diversos tipos de conhecimentos que existem. Além dos conhecimentos que são específicos para o desempenho de uma arte ou profissão, existem ainda os conhecimentos gerais, que conferem o rumo existencial. Os conhecimentos gerais formam a base da educação liberal, que, por sua vez, contrasta com a educação vocacional ou profissional. Consequentemente, as duas coisas são necessárias para uma educação completa.

O filósofo inglês Sir Francis Bacon (1561-1626) reconheceu as armadilhas da certeza e afirmou que o avanço do conhecimento começa com dúvidas e não com certezas. Bacon, que é conhecido pela frase “Saber é poder” (Knowledge is power), apontou os quatro maiores ‘ídolos’ derivados da ignorância e que impedem a visão da razão. São eles: (i) os ídolos da tribo, representados pelos os erros causados pela tendência natural das pessoas de buscar evidência para aquilo que já acreditam ser a verdade; (ii) os ídolos da caverna, representados pelos preconceitos e pelos precondicionamentos que cada pessoa tem devidos ao seu distinto ambiente físico e intelectual;  (iii) os ídolos do mercado, representados pelos desentendimentos de linguagem e as mentiras inerentes à atividade do comércio que induzem ao erro; (iv) os ídolos do teatro, representados pelos dogmatismos e preconceitos repassados através dos sofismas embutidos nos sistemas tradicionais de conhecimento, incluindo a filosofia.

William Shakespeare (1564-1616) aproveitou em suas peças o slogan ‘conhece-te a ti próprio’ (nosce teipsum) dos sábios da Antiguidade para demonstrar as fraquezas e imprevisibilidades da natureza humana. Em As You Like It (Como lhe aprouver), uma comédia pastoral escrita entre 1599 e 1600, o personagem Touchstone, um bobo da corte, diz: “O tolo pensa que é sábio, mas o sábio sabe que ele próprio é um tolo” (The fool doth think he is wise, but the wise man knows himself to be a fool.).

Na sua poesia ‘Ensaio Sobre a Crítica’ (An Essay on Criticism), uma metacrítica da poesia de tamanho épico, Alexander Pope (1688-1744) aborda os temas do conhecimento e da ignorância em diversos epigramas, como os dois abaixo:

Fools rush in where angels fear to tread.

‘Os tolos precipitam-se onde os anjos temem pisar.’

e

A little learning is a dangerous thing.

‘O conhecimento pequeno é uma coisa perigosa.’

No primeiro epigrama o termo ‘tolos’ refere-se às pessoas cujas aspirações estão acima de suas capacidades, enquanto que o termo ‘anjos’ refere-se às pessoas esclarecidas e que conhecem as próprias limitações. No segundo epigrama Pope procura mostrar que o conhecimento pode ser profundo ou superficial e que, dessas duas formas, apenas o conhecimento superficial é perigoso, pois embriaga a mente e engana as pessoas. Pope mostra ainda o denominador comum desses dois epigramas: a batalha constante entre o ímpeto de julgar e a resistência para não julgar. Os que enxergam melhor as coisas percebem as dificuldades e são mais propensos a resguardar-se de julgar. Os que se precipitam a julgar são os que pensam que enxergam, mas não enxergam, pois suas mentes estão simplesmente embriagadas pelos seus limitados conhecimentos.

O naturalista britânico Charles Darwin (1809-82) também notou o comportamento de confiança nas pessoas e considerou a possibilidade de a confiança ser uma característica favorável à adaptação e portanto passível de ser selecionada pela seleção natural. No seu livro The Descent of Man and Sexual Selection (A origem do homem e a seleção sexual), publicado em 1871, Darwin afirmou que “a ignorância gera mais frequentemente a confiança do que o conhecimento”.

Muitos filósofos e pensadores que vieram depois de Darwin concordaram com a asserção do naturalista. O filósofo britânico Bertrand Russell (1872-1970) afirmou: “O problema com o mundo é que os estúpidos são cheios de certeza e os inteligentes cheios de dúvidas” (The trouble with the world is that the stupid are cocksure and the intelligent are full of doubt.).

O método científico que envolve a falsificação de hipóteses com a finalidade de derrubá-las possibilitou testar cientificamente diversas ideias de Darwin. No campo da psicologia evolutiva, os pesquisadores têm examinado a possibilidade de certas características do ser humano como confiança, memória, percepção e língua serem objeto da seleção natural. A cognição ou capacidade de adquirir conhecimento é a variável que a psicologia evolutiva usa para medir o conhecimento e uma pesquisa que se destacou nesta área é a de Justin Kruger e David Dunning da Universidade de Cornell (1999).

Dunning e Krueger fizeram quatro estudos sobre humor, raciocínio lógico e gramática num experimento que envolveu 140 voluntários que eram alunos de graduação da universidade de Cornell. Logo depois de fazer os testes, foi pedido aos participantes que estimassem o número de seus acertos, gerando os dados de ‘capacidade percebida’ que foram comparados com a ‘capacidade atual’, resultante dos testes aplicados. Em todos os testes os indivíduos que acertaram mais se subestimaram, enquanto que os que erraram mais se superestimaram. No quarto estudo, eles manipularam a competência dos indivíduos para ver se isso alterava as habilidades metacognitivas que afetam a autoavaliação. Para tanto, eles deram um treinamento em metacognição para a metade dos participantes antes de pedirem a eles que estimassem o número de seus acertos. O fenômeno da subestimação e superestimação dos percentis superiores e inferiores também apareceu nesse quarto experimento. Dentro do segmento que recebeu o treinamento em metacognição, os indivíduos dos percentuais superiores reduziram as suas subestimações, mas nenhum efeito significativo foi notado entre os indivíduos dos percentuais inferiores. Dunning e Krueger provaram o viés da autoavaliação e o atribuíram à má calibração da cognição. Eles concluíram que a superestimação da capacidade é mais problemática do que a subestimação, pois esta não só se trata de uma incompetência mas é também acompanhada da incapacidade de enxergar o próprio mau desempenho.

A Subversão da Opinião Pública pelas Massas

Durante o período entre guerras do século XX, o Ocidente foi assolado pelas massas que apoiaram o fascismo e suas diversas variantes, como o nazismo alemão. Tal fenômeno tem sido o objeto de muitos estudos pelos especialistas. O grande problema das massas que os especialistas identificaram é a subversão da opinião pública. Mas o que é opinião pública? A opinião pública é o resultado do debate construtivo e racional conduzido na esfera pública, isto é, a esfera situada entre a sociedade civil e o Estado, e cujos atores são os indivíduos que se reúnem para discutir a política, e, a mídia, através dos jornais de ampla circulação e da indústria da publicidade. Tal definição é dada pelo sociólogo e filósofo alemão Jürgen Habermas (1929-). Em que situação a opinião pública é subvertida? Quais os fatores que propiciam tal subversão? Habermas também responde a essas perguntas. No seu livro The Structural Transformation of the Public Sphere (A transformação estrutural da esfera pública; título original: Strukturwandel der Öffenlichet), inicialmente publicado em 1962, Habermas sublinha a importância do debate construtivo e racional para a manutenção da sociedade democrática. Ele também aponta as falhas do Estado que propiciam a manipulação da esfera pública, como a elevada burocracia, a ausência de estímulo à autossuperação e a inexistência de igualdade de oportunidades nos cargos públicos e privados.

Os indivíduos dotados de conhecimento geral tendem a ter uma maior sensibilidade em relação à esfera pública, e por essa razão, eles são os principais formadores da opinião pública genuína, resultante do debate público. As massas do período entre guerras foram formadas pela manipulação da esfera pública. Nessa manipulação, a opinião dos indivíduos é anulada, e a única opinião que conta, é a do controlador da massa. Três estudiosos se destacaram no estudo do fenômeno das massas do período entre guerras do século XX: o espanhol José Ortega y Gasset (1883-1955), o alemão Teodoro Adorno (1903-69) e o búlgaro naturalizado britânico Elias Canetti (1905-94).

Ortega identificou a subversão da opinião pública pelos movimentos coletivistas, dando lugar à ‘sociedade circunstancial ao poder das massas’. O seu livro A rebelião das massas (1929) mostra como era a relação entre o conhecimento e a opinião pública no século XIX. Para ele, embora no século XIX os donos do conhecimento ainda fossem uma minoria, a população era possuidora de uma razoável sensibilidade para entender isso. Havia um público sensível que buscava o conhecimento da minoria e procurava debater os mais diversos assuntos nos cafés e noutros recintos públicos. A explicação que Ortega oferece para o fenômeno das massas baseia-se na desigualdade intelectual das pessoas. Ortega identifica dois tipos de pessoa: o ‘homem vulgar’ e o ‘homem excelente’. O ‘homem vulgar’ é o indivíduo que é suscetível à massa; ele não impõe sobre si próprio nenhum esforço voltado à busca da perfeição, pois já se sente satisfeito consigo mesmo. O ‘homem excelente’ é um tipo superior de indivíduo, capaz de impor enormes demandas sobre si próprio, incluindo tarefas difíceis e árduas responsabilidades.

Adorno atribuiu o surgimento da massa à criação da ‘sociedade de consumo’ pela indústria publicitária apoiada nos potentes meios de comunicação do rádio e do cinema. No seu livro Dialética do Esclarecimento (Dialektik der Aufklarung), em co-autoria com Max Horkheimer, publicado em 1947, Adorno mostrou os efeitos colaterais da cultura de massa como a substituição gradual da individualidade pela pseudo-individualidade, e a própria negação da biologia natural do homem.

Canetti fez um apanhado histórico do fenômeno das massas e cogitou a possibilidade de haver um elemento catalisador da massa, que ele denomina ‘cristal de massa’, metáfora que ele buscou na química, a sua disciplina de estudo na universidade. No seu livro Masse und Macht (Massa e poder, publicado em português em 1995 ), Canetti afirma que a massa resulta de uma reação social que ocorre na presença do ‘cristal de massa’. A metáfora do ‘cristal de massa’ de Canetti embute a ideia de que a massa, por ser um produto de uma reação social, é reversível da mesma forma que certas reações químicas também são.

A partir da segunda metade do século XX, a população do mundo cresceu de uma forma sem precedentes, especialmente em determinados países de fora do eixo do Ocidente. O fenômeno da massa reapareceu nesses países com problemas semelhantes àqueles que o Ocidente teve no período entre guerras. Embora, no final do século XX, o Ocidente não tenha tido outros movimentos de massas comparáveis àqueles do período entre guerras, a manipulação da esfera pública continuou, seja em torno do consumo seja em torno de causas xenofóbicas. Entretanto, a Idade Digital, surgida no final do século XX, introduziu poderosos elementos na esfera pública, como, as gravações de vídeo, o stream on line e as redes sociais. Pode-se argumentar que todos esses elementos são meras ferramentas: o que tais ferramentas fazem ou podem fazer depende da maneira como são usadas.

A Idade Digital e o Conhecimento

Muitos observadores sociais já apontaram que Idade Digital supervalorizou a informação e trivializou a cultura. Mas as incursões à Idade Digital também ocorrem no terreno da ficção, como a do personagem ‘Morador do Café’ criado pelo escritor americano, nascido no Egito, R. F. Georgy, que compara a internet a um palácio de cristal e este à caverna de Platão, o reduto da ignorância humana absoluta, no seu livro Notes from the Café (2014). Sofrendo de câncer e com pouco tempo de vida o Morador do Café vive a sua grande crise existencial. As suas reflexões e críticas sobre a Idade Digital aparecem em diálogos imaginários com ex-colegas da academia e outras pessoas. O Morador do Café é um velho que, além de indignado e contraditório, encontra-se desmemoriado. Ele tem uma vaga lembrança de ter sido um professor de filosofia, embora não consiga lembrar o próprio nome. Suas colocações são mais um esbravejamento de um velho opinioso tentando passar a vida a limpo. Eis algumas citações (tradução minha) do Morador do Café acerca da Idade Digital:

‘Eu me lembro de uma época quando a informação se curvava perante a sabedoria. Hoje, a informação tornou-se pomposa e arrogante.’

‘Vocês sabiam que nós vivemos numa era na qual os peritos e os especialistas se tornaram os profetas da nossa época, na qual os atores e os jogadores de esportes são heróis mitológicos, e a mediocridade é virtude.’

‘A idade digital não sabe o que fazer dos professores…// Então, vocês não sabiam que hoje em dia os professores são controlados e manipulados pelas empresas de publicação que têm um interesse em passar todas as atividades de ensino para o palácio de cristal virtual?’

‘A idade digital não precisa de professores; não senhores, a idade digital precisa de gestores de informação para manter o nosso palácio virtual se movendo. Esses gestores de informação logo serão substituídos por professores digitais que irão ‘facilitar’ a aprendizagem.’

‘Os cafés não são mais para engajarmos em conversação estimulante. Não senhores, eles são feitos para as pessoas irem lá, com os seus laptops e telefones inteligentes,  encontrar um canto a fim de escapar do mundo.’

‘Nós confundimos a informação com o conhecimento, e o conhecimento resultante da informação de alguma forma passa por sabedoria.’

‘O homem moderno não é menos uma criatura de conhecimento do que um escravo da informação. Vocês não perceberam que nós nos tornamos viciados na informação.’’

O homem é estúpido por natureza. Ele é estúpido ao extremo e o pior é que ele não sabe da própria estupidez.’

‘Digam-me, do que a idade digital nos liberou? Nós mudamos da convivência com as sombras para tornar-nos prisioneiros das nossas cavernas privadas. É isso o que a idade digital nos trouxe.’

‘Quem é que precisa de pessoas quando temos essa caixa mágica para nos ocupar por toda a vida? Nós não fomos liberados, senhores, nos fomos aprisionados pela nossa própria arrogância.’

A Idade Digital é apenas um tentáculo do monstro da modernidade, segundo o Morador do Café. Na citação abaixo, ele conta porque acredita em Deus, embora o alvo do seu ódio seja a ciência:

‘Você quer saber se eu creio em Deus?… Eu acredito em Deus por raiva. É isso, não fique tão espantado. De raiva da ciência eu acredito em Deus. Veja você, o mundo moderno me dá duas opções: acreditar num constructo que já foi completamente desmascarado e exposto como um conto de fadas, ou submeter à fria indiferença da ciência. Eu escolho o conforto do constructo. Eu escolho acreditar num conto de fadas ao invés de ser enganado pela sedutora lógica da ciência.’

Os Intelectuais

Costumamos entender os intelectuais como sendo indivíduos obviamente cultivados e dotados de uma extraordinária capacidade de explicar as coisas para o público leigo. A designação correta desses indivíduos é ‘intelectuais públicos’, termo que os separam dos demais intelectuais oriundos tanto das artes quanto das ciências e que não escrevem para o grande público.

Desde os últimos duzentos anos muitos intelectuais públicos têm se posicionado como guias e mentores da humanidade. A influência deles aumenta sempre que acontece alguma calamidade. Uma análise isenta de qualquer calamidade deve apontar o conjunto completo de alternativas possíveis, que deve incluir a opção ‘não fazer nada por enquanto’. Entretanto, não foi o que aconteceu nos Estados Unidos logo depois da quebra da bolsa de valores de 1929 que levou à Grande Depressão. Muitos intelectuais norte-americanos condenaram precipitadamente o capitalismo e formaram uma liga de apoio ao socialismo soviético e ao Partido Comunista dos Estados Unidos. Eles criaram o termo ‘progressivismo’ para servir de manta a esse movimento, e assim, camuflar o que poderia ser interpretado como uma traição aos costumes da liberal democracia da nação norte-americana. E, quando os intelectuais norte-americanos descobriram as atrocidades do regime soviético já no final da década de 30, eles não demonstraram o mesmo interesse em revelá-las a um público já cativo da ideologia socialista.

Os intelectuais públicos são críticos por excelência, mas, raramente, são criticados. No século XX apareceram duas críticas de peso aos intelectuais. A primeira é a do escritor inglês Samuel Johnson, cujo livro Intellectuals. From Marx and Tolstoy to Sartre and Chomsky, de 2007, faz um apanhado das vidas de doze dos mais importantes intelectuais dos últimos duzentos anos. A segunda é o livro The Better Angels of Our Nature: The Decline of Violence in History and its Causes (Os melhores anjos da nossa natureza: o declínio da violência na História e suas causas), do psicólogo experimental Steven Pinker, de 2011. Johnson e Pinker mostraram diversos exemplos de comportamentos indignos por parte dos intelectuais públicos como doutrinamento, alarmismo, extrapolação indevida e a profunda incoerência entre aquilo que afirmam para o público e aquilo que fazem na vida privada.

Johnson faz um apanhado histórico da ascensão dos intelectuais desde os últimos duzentos anos, aproveitando o espaço deixado pelos clérigos e pela crescente especialização das disciplinas. Segundo ele, assim como os antigos clérigos, os novos intelectuais assumiram uma posição quase evangélica e ditaram normas de agir. Numa alegoria a Prometeu, o semideus mitológico dos gregos que roubou o fogo celestial e o trouxe para a terra, Johnson chamou esses primeiros intelectuais modernos de ‘Prometeanos’, pois eles se veem como substitutos dos deuses.

A amostragem de intelectuais que Johnson analisou revelou que a boa imagem do intelectual nem sempre condiz com a realidade e que os intelectuais podem ser instáveis, irracionais, ilógicos, supersticiosos, egoístas, vãos e desonestos. Muitos intelectuais públicos vêm da academia, e aproveitam a fama adquirida para dar palpite em tudo quanto é assunto. É claro que eles têm o direito de fazer isso. Entretanto, as pessoas comuns necessitam ter conhecimento suficiente para enxergar as incoerências dos intelectuais e perceber as implicações não explícitas contidas nas suas asserções. Do nazismo à eugenia e à limpeza étnica, muitas das atrocidades cometidas por líderes políticos ocorreram em resultado de esquemas apontados por intelectuais, afirma Johnson, para quem os intelectuais públicos possuem a aura que encobre os seus preconceitos, enganos e incoerências. Nós costumamos ver os intelectuais como indivíduos não conformistas, mas eles são ultraconformistas quando se encontram dentro de grupos que eles aprovam, diz Johnson. Uma das incoerências mais comuns dos intelectuais analisados por Johnson é o apego ao dinheiro e à riqueza dos intelectuais socialistas.

Pinker concentrou a sua crítica nos intelectuais que vivem atacando o presente e pregando o apocalipse. Muitos desses ataques são injustificados e mesmo que não sejam eles raramente contribuem para encontrar soluções para os problemas apontados. Conforme mostrou Pinker, o intelectualismo desse tipo corrói as instituições modernas como a democracia, a ciência, e o cosmopolitismo que tornaram as nossas vidas não só mais ricas, mas também mais seguras. Finalmente, Pinker descreve as regras que ele gostaria de impor aos ‘entendedores’: ‘Ninguém poderá lamentar qualquer decadência, declínio, ou degeneração sem fornecer (1) uma medida de como é o mundo de hoje; (2) uma medida de como o mundo era em algum ponto no passado; e (3) uma demonstração de que (1) é pior do que (2)’. Segundo Pinker, ‘tais regras acabariam com os enfadonhos vaticínios apocalípticos que abundam em todo o canto’.

As pessoas ordinárias precisam pensar por si próprias e desenvolver uma dose saudável de ceticismo às ideias e aos ensinamentos de terceiros, mesmo que sejam famosos.

Conclusão

A crítica situação do mundo no final do século XX e início do século XXI tem sido encarada das mais diversas maneiras. A maior parte das visões caracteriza-se pelo pessimismo em relação à humanidade e seu futuro. Uma dessas visões é a de que, no tocante ao conhecimento a humanidade, consiste apenas de minoria e massa. Tal visão pessimista aponta que o conhecimento evoluiu, mas a compreensão das coisas continua igual. Trocando em miúdos, o conhecimento teve, sim, uma revolução, só que no sentido de dar uma volta completa na História. A humanidade do século XXI voltou ao ponto de partida da Antiguidade.

Uma sociedade cuja parcela de indivíduos cultivados é insignificante não tem opinião pública, e é incompreensível e caótica. Os três estudiosos do fenômeno das massas no século XX, Ortega, Adorno e Canetti, reconheceram que os diversos desatinos sociais do século XX, como o fascismo e o nazismo, ocorreram devido à subversão da opinião pública. O conhecimento geral habilita o indivíduo para compor a massa crítica e, por conseguinte, a opinião pública, uma condição essencial da boa governança e da democracia. As pessoas não sabem pensar? A internet e as redes sociais bitolam? Em vez de maldizer a situação, é preciso arranjar um modo de fazer com que cada vez mais indivíduos aceitem o desafio do desenvolvimento pessoal, seja dentro do ensino oficial ou fora dele. A educação ao longo da vida é uma promissora terceira via.

 


Notas
1. Regime antigo europeu. Embora a Revolução Francesa costume ser usada como o marco divisor entre o regime feudal antigo e o regime moderno, o surgimento dos Estados modernos europeus foi um processo que levou diversos séculos, tendo começado com a Magna Carta inglesa, assinada em junho de 1215, na qual o rei dava certos direitos e garantias aos barões medievais e prometia governar a Inglaterra segundo os costumes da lei feudal.

Bibliografia
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Joaquina Pires-O’Brien é a editora de PortVitoria, revista bianual sobre a cultura ibero-americana na Europa e no mundo.

Revisão: Carlos Pires e Débora Finamore
Como citar este artigo:
Pires-O’Brien, J. O conhecimento do indivíduo. PortVitoria, UK, v.10, Jan-Jun, 2015. ISSN 2044-8236, https://portvitoria.com/archive.html

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O conhecimento do indivíduo

Joaquina Pires-O’Brien

O papel do conhecimento não é dar ao homem olhos, mas guiar, governar e direcionar os seus passos. Michel de Montaigne.

A educação é a descoberta progressiva da nossa própria ignorância. Will Durant

O conhecimento habilita o indivíduo a contribuir positivamente para a opinião pública, considerada a condição necessária da boa governança e da democracia. O tipo de conhecimento ao qual eu me refiro é o ‘conhecimento geral’, que representa uma visão panorâmica de todo o conhecimento existente tanto das ciências quanto das artes, e que inclui o conhecimento da sociedade e da civilização. Neste ensaio, procurarei mostrar a evolução do conhecimento em termos de quantidade de saber acumulado e do número de pessoas que tem acesso ao mesmo o conhecimento. Procurarei, também, analisar o conhecimento a partir do século XX, em face a dois fenômenos apontados como aviltadores do conhecimento: o crescimento das massas, especialmente as do período entre guerras, e a Idade Digital.

O conhecimento e os seus donos evoluíram numa trajetória convoluta de avanços e retrocessos. Na Antiguidade, era um privilégio da elite controladora do poder enquanto que o povo comum era presumido como sendo ignorante. A partir da Renascença, a filiação ao estabelecimento já não era uma condição obrigatória para a busca do conhecimento. Durante o Iluminismo, período compreendido entre 1687 e 1750, o número de estudiosos na Europa Oeste cresceu vertiginosamente. Seus adeptos entenderam a necessidade da educação mínima para todos e do desenvolvimento da massa crítica da população. A criação da primeira Enciclopédia, reunindo todo o saber existente, foi uma das muitas contribuições do Iluminismo.

O conhecimento sofreu um retrocesso quando os revolucionários socialistas do século XIX decidiram que todas as elites de poder eram perniciosas, inclusive as cientistas e intelectuais, uma visão que foi mantida pelos promotores da correção politica do século XX. Essa questão é abordada por Mário Vargas Llosa no seu livro A Civilização do Espetáculo, 2012. Nesse livro, Vargas Llosa definiu a cultura como senso ‘a bússola da civilização’, ‘um guia que permite que as pessoas se orientem no espesso emaranhado de conhecimentos sem perder a direção, e que permite reconhecer o caminho principal e os desvios inúteis’. Os promotores da correção politica conseguiram fazer com que tudo virasse cultura. Entretanto, aponta Vargas Llosa, se tudo é cultura nada é cultura. O remédio contra o ar de superioridade das elites intelectuais acabou sendo pior do que a doença, pois agora somos obrigados a viver sem rumo e num mundo amorfo e confuso.

As revoluções socialistas, a ascensão da esquerda, a Guerra das Culturas, tudo isso atrapalhou o avanço do conhecimento no Ocidente. Pode-se dizer que no último quarto do século, pelo menos no Ocidente, o conhecimento já era algo totalmente aberto a quem quer que o desejasse. Essa época coincidiu com os avanços do metaconhecimento, ou seja, o conhecimento do conhecimento, o qual é uma área reconhecidamente interdisciplinar. E, por último, coincidiu, também, com o surgimento da revolução digital. O cenário do século XXI mostra que o conhecimento não tem mais o prestígio que outrora já teve. Os motivos disso são diversos, incluindo desde a competição com a tecnologia da informação até a mudança nos anseios da população maior.

O Conhecimento da Antiguidade ao Iluminismo

Na Antiguidade, o conhecimento estava associado à realeza e a ignorância ao povo. Um exemplo dessa associação são os boatos que corriam sobre Alexandre o Grande (356-323 a.C.). A própria mãe de Alexandre, para se vingar de Filipe II, por este ter arrumado outra esposa, espalhou o boato de que Alexandre não era filho de Felipe II, mas sim de Hércules. O boato de que Alexandre era filho de Hércules puxava outro boato, de que ele era invencível. Percebendo que tais boatos o ajudavam nas suas conquistas, Alexandre foi adiante com os mesmos, traindo a educação que havia recebido.

Outra característica da Antiguidade era a desconfiança que havia pelo detentor do conhecimento que não fosse um membro do estabelecimento. Aqui o exemplo mais contundente é o de Sócrates (469-399 a.C.), que em 399 a.C. foi oficialmente acusado de impiedade e de corrupção dos jovens, e, em seguida, condenado à morte. Sócrates era despojado, costumava andar descalço e mal vestido, e conversava com todos sem distinção, pobre ou rico, novo ou velho, livre ou escravo, homem ou mulher. Sabemos das conversas de Sócrates através da obra de Platão (427-347 a.C.), que as registrou nos seus livros. Conforme mostrou Platão, as conversas ou diálogos de Sócrates tinham sempre um caráter inquiridor, pois, segundo este último, “a vida não examinada não vale a pena ser vivida por um ser humano.” Sócrates tinha diversos seguidores jovens, que costumavam imitar a sua forma de questionar, irritando os mais velhos. O fato de Sócrates possuir conhecimento sem ser um membro do estabelecimento incomodou muitos atenienses de sua época, e em especial a classe dos professores já estabelecidos – os sofistas – que ensinavam aos jovens como obter sucesso na vida pública. Ao ser acusado de exercer a profissão de professor, Sócrates retrucou que nunca havia aceitado dinheiro pelo que fazia. Ao ser interpelado se ele concordava com os rumores de que ele era o homem de maior conhecimento de Atenas, Sócrates negou, dizendo “Quanto mais eu sei, menos eu sei”.

A morte de Sócrates tipificou a desconfiança que existia contra aqueles que têm conhecimentos, mas que não são afiliados do estabelecimento. Sócrates deixou um enorme legado que inclui o esclarecimento entre o saber e a ignorância. Na sua frase “Quanto mais eu sei, menos eu sei”, Sócrates quis dizer que o conhecimento pleno era impossível e que quem quer que julgasse tê-lo só poderia estar enganado. Sócrates era sábio porque conhecia a própria ignorância.

O regime antigo europeu (1), que perdurou da Antiguidade até o fim do Feudalismo medieval, não era muito diferente da Antiguidade Grega. A maioria da população era praticamente analfabeta, e o conhecimento existente concentrava-se na elite detentora do poder, que consistia na nobreza, formada pelo monarca reinante e pelos aristocratas, e no clero. A última fase do Feudalismo medieval europeu desenrolou-se concomitantemente à Renascença ou Renascimento. Na Europa, o Renascimento surgiu em épocas diferentes na França, Itália, Alemanha e Grã Bretanha, e com características próprias em cada país. A Renascença incomodou bastante o clero, que se sentiu ameaçado pela nova elite de humanistas e cientistas independentes do poder tradicional.

A elite de humanistas e cientistas independentes do poder tradicional que começou a surgir na Renascença expandiu-se enormemente no Iluminismo, período compreendido mais ou menos entre 1755 e 1795. Alguns historiadores optam por separar o Iluminismo pelos seus países de ocorrência, falando de Iluminismo britânico, francês, alemão, etc. Outros procuram mostrar que houve um Iluminismo bom e outro ruim. Entretanto, tais separações são falhas, uma vez que o Iluminismo foi um movimento universal voltado a reinterpretar o mundo à luz das novas descobertas científicas.

Três filósofos de destaque do Iluminismo foram o inglês John Locke (1632-1704) – um pré-iluminista, o escocês David Hume (1711-76) e o prussiano Emanuel Kant (1724-1804). No seu livro Essay Concerning Human Understanding (Ensaio sobre o entendimento humano), publicado em 1690, Locke justapôs a razão humana aos avanços da ciência, concluindo que todo conhecimento é fundamentado e deriva-se do senso… ou sensação. As duas importantes implicações disso sobre o conhecimento são: (i) existe apenas um conhecimento; e (ii) como o conhecimento vem da consciência, é possível aplicar as leis da moral a todos, inclusive aos pagãos e ateístas. Hume levou adiante as ideias de Locke sobre o conhecimento. No seu livro A Treatise of Human Nature (Tratado sobre a natureza humana), 1739-40, Hume expressou a diferença que existe entre conhecimento e crença. Segundo Hume, como a crença vem da fé religiosa e a fé religiosa é uma revelação, então a crença não é uma forma legítima de conhecimento. Entretanto, o marco do início da filosofia moderna é o livro de Kant Crítica da razão pura, de 1781. A visão de Kant é entendida pelas suas duas fases, a primeira caracterizada pelo religioso imerso na teologia vigente e a segunda pelo filósofo maduro que procurou colocar a moral no vazio deixado pela religião. O seu livro Crítica da razão prática (1788), ou Segunda crítica, contrasta o raciocínio científico e o raciocínio prático e mostra as interfaces entre a ciência e a filosofia.

O Iluminismo recebeu os mais diversos ataques por diversas doutrinas antimaterialistas, algumas de caráter bastante fundamentalista, como a do clérigo irlandês George Berkeley (1685-1753) o qual afirmou que o mundo e o conhecimento do mundo são idênticos, pois a única realidade física são os pensamentos ou ideias.

Quando a Certeza é Indevida

Diversos observadores notaram que as pessoas mais estúpidas são cheias de certeza enquanto que as pessoas mais inteligentes são cheias de dúvidas. É que a inteligência e a ignorância nem sempre são apartadas com a facilidade com que se separa o trigo do joio. O fenômeno da certeza indevida é complicado pela inabilidade das pessoas de entender os diversos tipos de conhecimentos que existem. Além dos conhecimentos que são específicos para o desempenho de uma arte ou profissão, existem ainda os conhecimentos gerais, que conferem o rumo existencial. Os conhecimentos gerais formam a base da educação liberal, que, por sua vez, contrasta com a educação vocacional ou profissional. Consequentemente, as duas coisas são necessárias para uma educação completa.

O filósofo inglês Sir Francis Bacon (1561-1626) reconheceu as armadilhas da certeza e afirmou que o avanço do conhecimento começa com dúvidas e não com certezas. Bacon, que é conhecido pela frase “Saber é poder” (Knowledge is power), apontou os quatro maiores ‘ídolos’ derivados da ignorância e que impedem a visão da razão. São eles: (i) os ídolos da tribo, representados pelos os erros causados pela tendência natural das pessoas de buscar evidência para aquilo que já acreditam ser a verdade; (ii) os ídolos da caverna, representados pelos preconceitos e pelos precondicionamentos que cada pessoa tem devidos ao seu distinto ambiente físico e intelectual;  (iii) os ídolos do mercado, representados pelos desentendimentos de linguagem e as mentiras inerentes à atividade do comércio que induzem ao erro; (iv) os ídolos do teatro, representados pelos dogmatismos e preconceitos repassados através dos sofismas embutidos nos sistemas tradicionais de conhecimento, incluindo a filosofia.

William Shakespeare (1564-1616) aproveitou em suas peças o slogan ‘conhece-te a ti próprio’ (nosce teipsum) dos sábios da Antiguidade para demonstrar as fraquezas e imprevisibilidades da natureza humana. Em As You Like It (Como lhe aprouver), uma comédia pastoral escrita entre 1599 e 1600, o personagem Touchstone, um bobo da corte, diz: “O tolo pensa que é sábio, mas o sábio sabe que ele próprio é um tolo” (The fool doth think he is wise, but the wise man knows himself to be a fool.).

Na sua poesia ‘Ensaio Sobre a Crítica’ (An Essay on Criticism), uma metacrítica da poesia de tamanho épico, Alexander Pope (1688-1744) aborda os temas do conhecimento e da ignorância em diversos epigramas, como os dois abaixo:

Fools rush in where angels fear to tread.

‘Os tolos precipitam-se onde os anjos temem pisar.’

e

A little learning is a dangerous thing.

‘O conhecimento pequeno é uma coisa perigosa.’

No primeiro epigrama o termo ‘tolos’ refere-se às pessoas cujas aspirações estão acima de suas capacidades, enquanto que o termo ‘anjos’ refere-se às pessoas esclarecidas e que conhecem as próprias limitações. No segundo epigrama Pope procura mostrar que o conhecimento pode ser profundo ou superficial e que, dessas duas formas, apenas o conhecimento superficial é perigoso, pois embriaga a mente e engana as pessoas. Pope mostra ainda o denominador comum desses dois epigramas: a batalha constante entre o ímpeto de julgar e a resistência para não julgar. Os que enxergam melhor as coisas percebem as dificuldades e são mais propensos a resguardar-se de julgar. Os que se precipitam a julgar são os que pensam que enxergam, mas não enxergam, pois suas mentes estão simplesmente embriagadas pelos seus limitados conhecimentos.

O naturalista britânico Charles Darwin (1809-82) também notou o comportamento de confiança nas pessoas e considerou a possibilidade de a confiança ser uma característica favorável à adaptação e portanto passível de ser selecionada pela seleção natural. No seu livro The Descent of Man and Sexual Selection (A origem do homem e a seleção sexual), publicado em 1871, Darwin afirmou que “a ignorância gera mais frequentemente a confiança do que o conhecimento”.

Muitos filósofos e pensadores que vieram depois de Darwin concordaram com a asserção do naturalista. O filósofo britânico Bertrand Russell (1872-1970) afirmou: “O problema com o mundo é que os estúpidos são cheios de certeza e os inteligentes cheios de dúvidas” (The trouble with the world is that the stupid are cocksure and the intelligent are full of doubt.).

O método científico que envolve a falsificação de hipóteses com a finalidade de derrubá-las possibilitou testar cientificamente diversas ideias de Darwin. No campo da psicologia evolutiva, os pesquisadores têm examinado a possibilidade de certas características do ser humano como confiança, memória, percepção e língua serem objeto da seleção natural. A cognição ou capacidade de adquirir conhecimento é a variável que a psicologia evolutiva usa para medir o conhecimento e uma pesquisa que se destacou nesta área é a de Justin Kruger e David Dunning da Universidade de Cornell (1999).

Dunning e Krueger fizeram quatro estudos sobre humor, raciocínio lógico e gramática num experimento que envolveu 140 voluntários que eram alunos de graduação da universidade de Cornell. Logo depois de fazer os testes, foi pedido aos participantes que estimassem o número de seus acertos, gerando os dados de ‘capacidade percebida’ que foram comparados com a ‘capacidade atual’, resultante dos testes aplicados. Em todos os testes os indivíduos que acertaram mais se subestimaram, enquanto que os que erraram mais se superestimaram. No quarto estudo, eles manipularam a competência dos indivíduos para ver se isso alterava as habilidades metacognitivas que afetam a autoavaliação. Para tanto, eles deram um treinamento em metacognição para a metade dos participantes antes de pedirem a eles que estimassem o número de seus acertos. O fenômeno da subestimação e superestimação dos percentis superiores e inferiores também apareceu nesse quarto experimento. Dentro do segmento que recebeu o treinamento em metacognição, os indivíduos dos percentuais superiores reduziram as suas subestimações, mas nenhum efeito significativo foi notado entre os indivíduos dos percentuais inferiores. Dunning e Krueger provaram o viés da autoavaliação e o atribuíram à má calibração da cognição. Eles concluíram que a superestimação da capacidade é mais problemática do que a subestimação, pois esta não só se trata de uma incompetência mas é também acompanhada da incapacidade de enxergar o próprio mau desempenho.

A Subversão da Opinião Pública pelas Massas

Durante o período entre guerras do século XX, o Ocidente foi assolado pelas massas que apoiaram o fascismo e suas diversas variantes, como o nazismo alemão. Tal fenômeno tem sido o objeto de muitos estudos pelos especialistas. O grande problema das massas que os especialistas identificaram é a subversão da opinião pública. Mas o que é opinião pública? A opinião pública é o resultado do debate construtivo e racional conduzido na esfera pública, isto é, a esfera situada entre a sociedade civil e o Estado, e cujos atores são os indivíduos que se reúnem para discutir a política, e, a mídia, através dos jornais de ampla circulação e da indústria da publicidade. Tal definição é dada pelo sociólogo e filósofo alemão Jürgen Habermas (1929-). Em que situação a opinião pública é subvertida? Quais os fatores que propiciam tal subversão? Habermas também responde a essas perguntas. No seu livro The Structural Transformation of the Public Sphere (A transformação estrutural da esfera pública; título original: Strukturwandel der Öffenlichet), inicialmente publicado em 1962, Habermas sublinha a importância do debate construtivo e racional para a manutenção da sociedade democrática. Ele também aponta as falhas do Estado que propiciam a manipulação da esfera pública, como a elevada burocracia, a ausência de estímulo à autossuperação e a inexistência de igualdade de oportunidades nos cargos públicos e privados.

Os indivíduos dotados de conhecimento geral tendem a ter uma maior sensibilidade em relação à esfera pública, e por essa razão, eles são os principais formadores da opinião pública genuína, resultante do debate público. As massas do período entre guerras foram formadas pela manipulação da esfera pública. Nessa manipulação, a opinião dos indivíduos é anulada, e a única opinião que conta, é a do controlador da massa. Três estudiosos se destacaram no estudo do fenômeno das massas do período entre guerras do século XX: o espanhol José Ortega y Gasset (1883-1955), o alemão Teodoro Adorno (1903-69) e o búlgaro naturalizado britânico Elias Canetti (1905-94).

Ortega identificou a subversão da opinião pública pelos movimentos coletivistas, dando lugar à ‘sociedade circunstancial ao poder das massas’. O seu livro A rebelião das massas (1929) mostra como era a relação entre o conhecimento e a opinião pública no século XIX. Para ele, embora no século XIX os donos do conhecimento ainda fossem uma minoria, a população era possuidora de uma razoável sensibilidade para entender isso. Havia um público sensível que buscava o conhecimento da minoria e procurava debater os mais diversos assuntos nos cafés e noutros recintos públicos. A explicação que Ortega oferece para o fenômeno das massas baseia-se na desigualdade intelectual das pessoas. Ortega identifica dois tipos de pessoa: o ‘homem vulgar’ e o ‘homem excelente’. O ‘homem vulgar’ é o indivíduo que é suscetível à massa; ele não impõe sobre si próprio nenhum esforço voltado à busca da perfeição, pois já se sente satisfeito consigo mesmo. O ‘homem excelente’ é um tipo superior de indivíduo, capaz de impor enormes demandas sobre si próprio, incluindo tarefas difíceis e árduas responsabilidades.

Adorno atribuiu o surgimento da massa à criação da ‘sociedade de consumo’ pela indústria publicitária apoiada nos potentes meios de comunicação do rádio e do cinema. No seu livro Dialética do Esclarecimento (Dialektik der Aufklarung), em co-autoria com Max Horkheimer, publicado em 1947, Adorno mostrou os efeitos colaterais da cultura de massa como a substituição gradual da individualidade pela pseudo-individualidade, e a própria negação da biologia natural do homem.

Canetti fez um apanhado histórico do fenômeno das massas e cogitou a possibilidade de haver um elemento catalisador da massa, que ele denomina ‘cristal de massa’, metáfora que ele buscou na química, a sua disciplina de estudo na universidade. No seu livro Masse und Macht (Massa e poder, publicado em português em 1995 ), Canetti afirma que a massa resulta de uma reação social que ocorre na presença do ‘cristal de massa’. A metáfora do ‘cristal de massa’ de Canetti embute a ideia de que a massa, por ser um produto de uma reação social, é reversível da mesma forma que certas reações químicas também são.

A partir da segunda metade do século XX, a população do mundo cresceu de uma forma sem precedentes, especialmente em determinados países de fora do eixo do Ocidente. O fenômeno da massa reapareceu nesses países com problemas semelhantes àqueles que o Ocidente teve no período entre guerras. Embora, no final do século XX, o Ocidente não tenha tido outros movimentos de massas comparáveis àqueles do período entre guerras, a manipulação da esfera pública continuou, seja em torno do consumo seja em torno de causas xenofóbicas. Entretanto, a Idade Digital, surgida no final do século XX, introduziu poderosos elementos na esfera pública, como, as gravações de vídeo, o stream on line e as redes sociais. Pode-se argumentar que todos esses elementos são meras ferramentas: o que tais ferramentas fazem ou podem fazer depende da maneira como são usadas.

A Idade Digital e o Conhecimento

Muitos observadores sociais já apontaram que Idade Digital supervalorizou a informação e trivializou a cultura. Mas as incursões à Idade Digital também ocorrem no terreno da ficção, como a do personagem ‘Morador do Café’ criado pelo escritor americano, nascido no Egito, R. F. Georgy, que compara a internet a um palácio de cristal e este à caverna de Platão, o reduto da ignorância humana absoluta, no seu livro Notes from the Café (2014). Sofrendo de câncer e com pouco tempo de vida o Morador do Café vive a sua grande crise existencial. As suas reflexões e críticas sobre a Idade Digital aparecem em diálogos imaginários com ex-colegas da academia e outras pessoas. O Morador do Café é um velho que, além de indignado e contraditório, encontra-se desmemoriado. Ele tem uma vaga lembrança de ter sido um professor de filosofia, embora não consiga lembrar o próprio nome. Suas colocações são mais um esbravejamento de um velho opinioso tentando passar a vida a limpo. Eis algumas citações (tradução minha) do Morador do Café acerca da Idade Digital:

‘Eu me lembro de uma época quando a informação se curvava perante a sabedoria. Hoje, a informação tornou-se pomposa e arrogante.’

‘Vocês sabiam que nós vivemos numa era na qual os peritos e os especialistas se tornaram os profetas da nossa época, na qual os atores e os jogadores de esportes são heróis mitológicos, e a mediocridade é virtude.’

‘A idade digital não sabe o que fazer dos professores…// Então, vocês não sabiam que hoje em dia os professores são controlados e manipulados pelas empresas de publicação que têm um interesse em passar todas as atividades de ensino para o palácio de cristal virtual?’

‘A idade digital não precisa de professores; não senhores, a idade digital precisa de gestores de informação para manter o nosso palácio virtual se movendo. Esses gestores de informação logo serão substituídos por professores digitais que irão ‘facilitar’ a aprendizagem.’

‘Os cafés não são mais para engajarmos em conversação estimulante. Não senhores, eles são feitos para as pessoas irem lá, com os seus laptops e telefones inteligentes,  encontrar um canto a fim de escapar do mundo.’

‘Nós confundimos a informação com o conhecimento, e o conhecimento resultante da informação de alguma forma passa por sabedoria.’

‘O homem moderno não é menos uma criatura de conhecimento do que um escravo da informação. Vocês não perceberam que nós nos tornamos viciados na informação.’’

O homem é estúpido por natureza. Ele é estúpido ao extremo e o pior é que ele não sabe da própria estupidez.’

‘Digam-me, do que a idade digital nos liberou? Nós mudamos da convivência com as sombras para tornar-nos prisioneiros das nossas cavernas privadas. É isso o que a idade digital nos trouxe.’

‘Quem é que precisa de pessoas quando temos essa caixa mágica para nos ocupar por toda a vida? Nós não fomos liberados, senhores, nos fomos aprisionados pela nossa própria arrogância.’

A Idade Digital é apenas um tentáculo do monstro da modernidade, segundo o Morador do Café. Na citação abaixo, ele conta porque acredita em Deus, embora o alvo do seu ódio seja a ciência:

‘Você quer saber se eu creio em Deus?… Eu acredito em Deus por raiva. É isso, não fique tão espantado. De raiva da ciência eu acredito em Deus. Veja você, o mundo moderno me dá duas opções: acreditar num constructo que já foi completamente desmascarado e exposto como um conto de fadas, ou submeter à fria indiferença da ciência. Eu escolho o conforto do constructo. Eu escolho acreditar num conto de fadas ao invés de ser enganado pela sedutora lógica da ciência.’

Os Intelectuais

Costumamos entender os intelectuais como sendo indivíduos obviamente cultivados e dotados de uma extraordinária capacidade de explicar as coisas para o público leigo. A designação correta desses indivíduos é ‘intelectuais públicos’, termo que os separam dos demais intelectuais oriundos tanto das artes quanto das ciências e que não escrevem para o grande público.

Desde os últimos duzentos anos muitos intelectuais públicos têm se posicionado como guias e mentores da humanidade. A influência deles aumenta sempre que acontece alguma calamidade. Uma análise isenta de qualquer calamidade deve apontar o conjunto completo de alternativas possíveis, que deve incluir a opção ‘não fazer nada por enquanto’. Entretanto, não foi o que aconteceu nos Estados Unidos logo depois da quebra da bolsa de valores de 1929 que levou à Grande Depressão. Muitos intelectuais norte-americanos condenaram precipitadamente o capitalismo e formaram uma liga de apoio ao socialismo soviético e ao Partido Comunista dos Estados Unidos. Eles criaram o termo ‘progressivismo’ para servir de manta a esse movimento, e assim, camuflar o que poderia ser interpretado como uma traição aos costumes da liberal democracia da nação norte-americana. E, quando os intelectuais norte-americanos descobriram as atrocidades do regime soviético já no final da década de 30, eles não demonstraram o mesmo interesse em revelá-las a um público já cativo da ideologia socialista.

Os intelectuais públicos são críticos por excelência, mas, raramente, são criticados. No século XX apareceram duas críticas de peso aos intelectuais. A primeira é a do escritor inglês Samuel Johnson, cujo livro Intellectuals. From Marx and Tolstoy to Sartre and Chomsky, de 2007, faz um apanhado das vidas de doze dos mais importantes intelectuais dos últimos duzentos anos. A segunda é o livro The Better Angels of Our Nature: The Decline of Violence in History and its Causes (Os melhores anjos da nossa natureza: o declínio da violência na História e suas causas), do psicólogo experimental Steven Pinker, de 2011. Johnson e Pinker mostraram diversos exemplos de comportamentos indignos por parte dos intelectuais públicos como doutrinamento, alarmismo, extrapolação indevida e a profunda incoerência entre aquilo que afirmam para o público e aquilo que fazem na vida privada.

Johnson faz um apanhado histórico da ascensão dos intelectuais desde os últimos duzentos anos, aproveitando o espaço deixado pelos clérigos e pela crescente especialização das disciplinas. Segundo ele, assim como os antigos clérigos, os novos intelectuais assumiram uma posição quase evangélica e ditaram normas de agir. Numa alegoria a Prometeu, o semideus mitológico dos gregos que roubou o fogo celestial e o trouxe para a terra, Johnson chamou esses primeiros intelectuais modernos de ‘Prometeanos’, pois eles se veem como substitutos dos deuses.

A amostragem de intelectuais que Johnson analisou revelou que a boa imagem do intelectual nem sempre condiz com a realidade e que os intelectuais podem ser instáveis, irracionais, ilógicos, supersticiosos, egoístas, vãos e desonestos. Muitos intelectuais públicos vêm da academia, e aproveitam a fama adquirida para dar palpite em tudo quanto é assunto. É claro que eles têm o direito de fazer isso. Entretanto, as pessoas comuns necessitam ter conhecimento suficiente para enxergar as incoerências dos intelectuais e perceber as implicações não explícitas contidas nas suas asserções. Do nazismo à eugenia e à limpeza étnica, muitas das atrocidades cometidas por líderes políticos ocorreram em resultado de esquemas apontados por intelectuais, afirma Johnson, para quem os intelectuais públicos possuem a aura que encobre os seus preconceitos, enganos e incoerências. Nós costumamos ver os intelectuais como indivíduos não conformistas, mas eles são ultraconformistas quando se encontram dentro de grupos que eles aprovam, diz Johnson. Uma das incoerências mais comuns dos intelectuais analisados por Johnson é o apego ao dinheiro e à riqueza dos intelectuais socialistas.

Pinker concentrou a sua crítica nos intelectuais que vivem atacando o presente e pregando o apocalipse. Muitos desses ataques são injustificados e mesmo que não sejam eles raramente contribuem para encontrar soluções para os problemas apontados. Conforme mostrou Pinker, o intelectualismo desse tipo corrói as instituições modernas como a democracia, a ciência, e o cosmopolitismo que tornaram as nossas vidas não só mais ricas, mas também mais seguras. Finalmente, Pinker descreve as regras que ele gostaria de impor aos ‘entendedores’: ‘Ninguém poderá lamentar qualquer decadência, declínio, ou degeneração sem fornecer (1) uma medida de como é o mundo de hoje; (2) uma medida de como o mundo era em algum ponto no passado; e (3) uma demonstração de que (1) é pior do que (2)’. Segundo Pinker, ‘tais regras acabariam com os enfadonhos vaticínios apocalípticos que abundam em todo o canto’.

As pessoas ordinárias precisam pensar por si próprias e desenvolver uma dose saudável de ceticismo às ideias e aos ensinamentos de terceiros, mesmo que sejam famosos.

Conclusão

A crítica situação do mundo no final do século XX e início do século XXI tem sido encarada das mais diversas maneiras. A maior parte das visões caracteriza-se pelo pessimismo em relação à humanidade e seu futuro. Uma dessas visões é a de que, no tocante ao conhecimento a humanidade, consiste apenas de minoria e massa. Tal visão pessimista aponta que o conhecimento evoluiu, mas a compreensão das coisas continua igual. Trocando em miúdos, o conhecimento teve, sim, uma revolução, só que no sentido de dar uma volta completa na História. A humanidade do século XXI voltou ao ponto de partida da Antiguidade.

Uma sociedade cuja parcela de indivíduos cultivados é insignificante não tem opinião pública, e é incompreensível e caótica. Os três estudiosos do fenômeno das massas no século XX, Ortega, Adorno e Canetti, reconheceram que os diversos desatinos sociais do século XX, como o fascismo e o nazismo, ocorreram devido à subversão da opinião pública. O conhecimento geral habilita o indivíduo para compor a massa crítica e, por conseguinte, a opinião pública, uma condição essencial da boa governança e da democracia. As pessoas não sabem pensar? A internet e as redes sociais bitolam? Em vez de maldizer a situação, é preciso arranjar um modo de fazer com que cada vez mais indivíduos aceitem o desafio do desenvolvimento pessoal, seja dentro do ensino oficial ou fora dele. A educação ao longo da vida é uma promissora terceira via.

 


Notas
1. Regime antigo europeu. Embora a Revolução Francesa costume ser usada como o marco divisor entre o regime feudal antigo e o regime moderno, o surgimento dos Estados modernos europeus foi um processo que levou diversos séculos, tendo começado com a Magna Carta inglesa, assinada em junho de 1215, na qual o rei dava certos direitos e garantias aos barões medievais e prometia governar a Inglaterra segundo os costumes da lei feudal.

Bibliografia
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Vargas Llosa, M. (2012). A civilização do espetáculo. Quetzal Editores, Lisboa.



Joaquina Pires-O’Brien é a editora de PortVitoria, revista bianual sobre a cultura ibero-americana na Europa e no mundo.

Revisão: Carlos Pires e Débora Finamore
Como citar este artigo:
Pires-O’Brien, J. O conhecimento do indivíduo. PortVitoria, UK, v.10, Jan-Jun, 2015. ISSN 2044-8236, https://portvitoria.com

Juan José Morales

Resenha do livro World without end: The global empire of Felipe II (Mundo sem fim: O império global de Felipe II), de Hugh Thomas. Penguin Books Ltd, julho 2014.

O Império Espanhol existiu durante três ou quatro séculos e se estendeu a vastas áreas do globo. Nos estágios iniciais de sua expansão, a própria Espanha estava emergindo como nação-Estado moderna, os antigos reinos da Península Ibérica estavam se unindo gradualmente em uma única coroa, enquanto que uma enorme transformação social, religiosa e econômica estava a caminho. Uma compreensão adequada de tais desenvolvimentos complexos demanda prudência; o problema nesse campo não é a falta de documentos, mas sim o excesso desses.

O modo como a Espanha e o Império eram percebidos de fora é um tópico por si próprio. No mundo falante de inglês, a ameaça de um inimigo temível, no auge dos seus poderes, resultou numa visão compreensivelmente negra. Que isso tenha se tornado a sabedoria convencional e que tenha perdurado até o presente tem muito a ver com as tentativas de justificar e explicar a dominância ou o sucesso anglo-saxão, usando a Espanha em declínio como contraexemplo. Ideologicamente, essas visões se transformaram numa comparação de modelos religiosos, filosóficos e políticos, seguidos dos econômicos.

Dos libretos de ópera a Hollywood, na cultura popular ocidental, o rei espanhol Felipe II foi descrito como um monstro; na qualidade de mito popular, essa imagem deve perdurar. Contra a maré, não faltam livros, em variadas línguas, que tratem inteligentemente do Império Espanhol e de Felipe II, embora eles sejam, na maior parte, estudos especializados restritos aos círculos acadêmicos. A obra magistral de Fernand Braudel La Méditerranée et le monde méditerranéen a l’époque de Phillippe II (1949) ainda se destaca. Em inglês, o notável John H. Elliot preparou o alicerce para estudos mais profundos sobre a Espanha Imperial, em conjunto, mais recentemente, com o singular Felipe Fernández-Armesto, um historiador britânico de origem espanhola. Talvez a melhor biografia em inglês continue sendo a de Peter Pierson, Philip II of Spain (1975). Apesar de esgotada há bastante tempo, é notável pelas suas fontes e pela forma como coloca o tema dentro do contexto histórico. É, entretanto, revelador que nenhuma das excepcionais obras dos historiadores espanhóis tenha sido traduzida para o inglês, incluindo aquelas de especialistas líderes nesse campo, como os já falecidos professores Manuel Fernández Álvarez e Francisco Morales Padrón.

O venerado Hugh Thomas, celebrado pela sua inovadora obra The Spanish Civil War, publicada no início da década de 1960, publicou recentemente uma série de livros sobre o Império Espanhol. A sua abordagem é uma mistura de personalidades ‘coloridas’, bastante ação – nisso o tema é inexaurível − e algumas poucas reflexões. O livro World without end, o terceiro da trilogia, cobre as últimas conquistas do monarca; vai de 1540, quando Felipe II inicia a sua regência na Espanha – ele assumiu o Império desde a abdicação do seu pai Carlos V em 1556 − até a sua morte em 1598, quando a expansão cessou. Durante esse período, os conquistadores se converteram ou foram substituídos pelos colonizadores e pelos administradores – os vice-reis, os governadores, os bispos, e os padres − emergiram na qualidade de novos protagonistas. Hugh Thomas, que é um lorde inglês e amigo dos aristocratas espanhóis, tem um dom para descrever os grandes fidalgos do passado, exercício que é, às vezes, prejudicado pela atenção excessiva a genealogias.

O mérito do livro, entretanto, reside no fato de que, ao tentar uma explicação mais ampla da natureza, do alcance e dos feitos desse Império, Thomas revele as suas feições mais distintas. Este foi o primeiro Império global da história moderna, o qual se deu após a invenção da imprensa e no qual a palavra escrita ia ter um papel deveras fundamental. Os espanhóis eram desbravadores, velejaram os novos oceanos e foram os primeiros a descobrir e explorar uma geografia que se encontrava ainda por mapear. Nada os havia preparado para as culturas díspares e para a miríade de povos com que eles encontraram. Enquanto lhes emprestaram a sua própria cultura, religião e instituições, se misturaram com os povos indígenas. Além disso, questionaram o seu direito de dominar; muitos trabalhos filosóficos foram escritos em defesa dos índios; em particular, os de Francisco de Vitoria destacam-se como uma das bases da lei internacional moderna.

Hugh Thomas descreve Felipe II incisivamente como um “déspota esclarecido” e um “monarca burocrata”. Este, provavelmente, tinha a maior biblioteca da Europa, assistia aulas na universidade, e era um perspicaz conhecedor de arte, tendo patrocinado Ticiano e colecionado as obras-primas dos grandes pintores Jerônimo (Hieronymus) Bosch, Joaquim Patinir e Van der Weyden, que hoje se encontram no Museu do Prado. Felipe II assumia também os assuntos do dia, lidando com os oficiais e com uma interminável comitiva de militares e clérigos.

O poderoso e temido Felipe II tinha as falhas de um homem comum: deixou de lado alguns de seus aliados mais leais e competentes e depositou a sua confiança naqueles que não mereciam. Demasiadamente orgulhoso, os seus erros mais graves – como o desastre da Armada e a má gestão dos Países Baixos − foram causados pela sua excessiva confiança. Ele foi um homem de família, as suas cartas revelam o seu apego às suas filhas. Dentro de todos os seus reinos, Felipe II sentia-se mais à vontade em Castela, pois adorava o jeito franco de seu povo. Mas, os castelhanos detestavam-no, porque tiveram que suportar o ônus de guerras intermináveis e de crescentes impostos.

O Império Espanhol, contudo, não resultou do desígnio de um único homem: havia um ímpeto coletivo e diversas personalidades também deixaram as suas marcas.
***
Conforme explicou o historiador Richard L. Kagan, no seu estudo de 1974 Students and society in early modern Spain, durante o século dezesseis, a Europa teve uma “revolução educacional”, um aumento súbito e sem precedência no número de indivíduos educados, e em particular, de homens educados em universidades; e em nenhum lugar isso ocorreu mais do que na Espanha Imperial, onde eles estavam destinados a atender às necessidades de uma nação-Estado recém-criada e cuja administração dos domínios ultramarinos assumiriam em breve.

“No total, os espanhóis da Idade Dourada criaram ou reestabeleceram nada menos do que quarenta universidades, incluindo aquelas nos territórios da Europa controlados pela Espanha, recorde que nenhum outro país europeu pode igualar.”
Embora os efeitos dessa instrução tenham tido curta duração, até 1600, Castela era, talvez, o reino mais bem educado da Europa.
Os conquistadores eram na sua maior parte instruídos; definitivamente todos os seus líderes eram. Uma mesa e uma cadeira dobráveis faziam parte dos seus apetrechos – até mesmo nas menores expedições de penetrar numa floresta ou subir em montanhas −, pois eles tinham que registrar os seus feitos e reportá-los à Corte para pedir reconhecimento e recompensa. A “Conquista” – o emprego deste termo era proibido – não foi uma atividade oficial, mas sim financiada pela iniciativa privada, sob uma licença da Coroa. Eles também administravam justiça local, por escrito, de acordo com a tradição espanhola. Assim que eles se assentavam, fundavam um povoado, dotado de um concelho e de um tribunal. A idade da conquista e da exploração gerou uma enorme quantidade de documentos. Uma vasta gama de crônicas, tratados, relatórios, registros de julgamentos, correspondências e memorandos lotam os arquivos espanhóis. Uma pesada burocracia. Por vezes uma ferramenta útil para neutralizar ambições de indivíduos, a burocracia também teria sido uma causa da estagnação. Conforme um vice-rei de Nápoles colocou em relação às suas instruções de Madrid: “Se alguém tivesse que esperar pela morte, iria desejar que ela viesse da Espanha, pois assim ela nunca chegaria.”

A força motriz por detrás dos conquistadores era bastante simples: o desejo de avançar a sua posição econômica e social. A religiosidade e o espírito de cruzados também tiveram os seus papéis. E um gênero literário emprestaria a esse empreendimento as paisagens mentais inspiradoras e um caráter peculiar: os romances de cavalaria, que, na ocasião, eram manias na Espanha. A “Patagônia” e a “Califórnia” são nomes de lugares totalmente fantasiosos, retirados diretamente dos romances de cavalaria.
***
O livro World without end tem uma ampla seção dedicada à expansão espanhola na Ásia, que começou com uma base em Manila. As relações comerciais que logo se estabeleceram com a China são bem conhecidas; essas foram seguidas de um padrão consistente através da rota Galeão de Manila ou Nau da China. Esse comércio consistia em produtos de luxo para atender as altas classes da América Espanhola, que, em troca, exportava a prata.

A primeira expedição espanhola oficial à China chegou em Fuzhou em julho de 1575. Ela foi recebida pelo governador de Fujian, Lin Yaohiu, que demonstrou a costumeira diplomacia chinesa, com uma mensagem inequivocamente obstinada envolta em palavras polidas. As autoridades espanholas em Manila corresponderam com uma falta de tato que iria provocar a irritação chinesa, e, daquele momento em diante, ambos os lados souberam que outras relações não iriam acontecer.
Lamentavelmente, o autor escolheu materiais do arquivo que revelam as maquinações de um governador e de um jesuíta para invadir a China. Elas não passavam de “planos” grotescos que, independentemente da quantidade de correspondências contidas no arquivo, não merecem mais que uma nota de rodapé. As instruções de Felipe II voltadas a manter as boas relações com a China eram claras:

“Sobre a conquista da China, que V. Exa. parece pensar que deveríamos perseguir agora, daqui nos parece que essa não é a melhor hora de discutir o assunto, mas que deveríamos ao invés procurar ser bons amigos dos chineses. Abstenha-se; não se junte aos inimigos corsários dos referidos chineses, nem lhes dê motivo para se indignar contra nós.”

No seu livro, Thomas parece ter cometido um pequeno erro na tradução do trecho acima, mostrando os corsários como aliados ao invés de (como no original) inimigos dos chineses. O livro tem diversas imprecisões desse tipo − por exemplo, a origem de algumas cidades, vilas e pessoas mudam de uma província para outra − coisas que deveriam ter sido apanhados antes da publicação.

As contribuições espanholas em relação à China fora na verdade mais pacíficas. A primeira expedição oficial havia sido comandada por Miguel de Luarca, um militar veterano, e o Frei Martin de Rada, um matemático e astrônomo, familiarizado com a língua dos otomi após a sua estadia na Nova Espanha. Ambos eram espanhóis do seu tempo, o soldado e o frei adquiriram livros na China e ficaram prazerosamente surpreendidos com o fato de que esses eram baratos. Baseado nos relatos deles e de outros pioneiros espanhóis e portugueses, Juan González de Mendoza escreveu The History of the great and mighty Kingdom of China, publicado primeiramente em Roma em 1585 e logo em seguida traduzido para as principais línguas europeias. Embora Hugh Thomas admita que o livro de Mendoza tenha sido um bestseller durante cinquenta anos, este foi muito mais. Pela primeira vez uma quantidade razoável de informações sobre a China chegou ao Ocidente. A China foi apresentada como sendo uma luz favorável ou como uma civilização urbana, consciente de suas realizações e interessada na educação. O livro continha descrições de escolas e hospitais, das riquezas do comércio e de estilos de vida. Infelizmente, tal versão europeia original foi mais tarde suplantada pelas visões posteriores da revolução industrial, contaminada por insultos raciais de uma China então em declínio.

Um legado importante, o primeiro mapa da China produzido no Ocidente foi publicado em 1584, Cum privilegio Imperatoris, de Abraham Ortelius (reproduzido na China in European Maps: A Library Special Collection, compilado e editado por Min-min Chang). O mapa foi baseado no trabalho do geógrafo português Luís Jorge de Barbuda, também a serviço do rei. A Grande Muralha, os principais rios e as quinze províncias foram identificadas pela primeira vez. No verso foram impressos os primeiros caracteres chineses que chegaram na Europa, derivados de cartas do Frei Bernardino de Escalante.
Na mesma linha, em 1592 um outro frei espanhol em Manila, Frei Juan Cobo, fez a primeira tradução de um texto chinês – um livreto de Confúcio− em uma língua europeia, o castelhano espanhol; e ele também traduziu, pela primeira vez para o chinês, um resumo da ciência europeia, o Shi Lu.
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O primeiro encontro entre a Espanha e a América teve um custo humano que ainda não é totalmente conhecido. As epidemias europeias às quais a população indígena não tinha nenhuma imunidade causou a aniquilação de milhões. Não há como negar o abuso e a exploração; os relatos de primeira mão estão disponíveis, então e hoje, para todos lerem. Os assassinatos de Montezuma, Atahualpa e Tupac Amaru ressoam em todas as escolas de todo o mundo de fala espanhola. Nas suas salas de aula, a literatura de Alonso de Ercilla, Inca Garcilaso e da Sóror Juana Ines de la Cruz ainda é ensinada, e ninguém pergunta ou lembra de que raça eles eram. Por volta de 1535, a primeira imprensa do México estava montada e em funcionamento. Uma nota escrita pelo primeiro livreiro mexicano revela haver um estoque grande de La Celestina, um dos primeiros clássicos da literatura espanhola e, na verdade, uma crítica ácida dos costumes sociais. Em torno de 1570, a principal controvérsia em Lima foi aquela entre a Universidade Real de San Marcos e o Colégio Jesuíta de San Pablo. Muitas cópias da primeira edição de Don Quixote de 1605 foram despachadas para o Peru.

Parafraseando o grande historiador John H. Elliott, uma visão compreensiva do passado continua essencial.
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Juan José Morales escreve na revista espanhola Compromiso Empresarial. Ele já ocupou o cargo de Presidente da Câmara do Comércio da Espanha em Hong Kong, possui um mestrado em Relações Internacionais e Públicas pela Universidade de Hong Kong e também estudou relações internacionais na Universidade de Peking (Beida).

Cortesia de:
© The Asian Review of Books 9 Sep 2014 &
Juan José Morales. Fonte: http://www.asianreviewofbooks.com/new/?ID=2004#!

Tradução: Joaquina Pires-O’Brien
Revisão: Débora Finamore

Citation:
THOMAS, H. The global empire of Felipe II. London, Penguin Books. Resenha de: MORALES, J. J. (2015). a Espanha como primeiro império global da história

Norman Berdichevsky

The great joy of my hobby as a collector of banknotes has been the unexpected journey of discovery it has afforded me. I have made it a point to try and find appropriate souvenir banknotes for the destinations I have spoken about in my talks to passengers as a guest lecturer with the title of “Destination Enrichment Speaker” for a number of cruise lines. The fascinating information I have gained has enabled me to acquire an appreciation of personalities, landscapes and events that would have remained dry facts had I learned about them by simply looking necessary information to do research.

Being selected to appear on any country’s paper currency is a great honor although sometimes it is a cheap way to make partial and symbolic amends for past injustices and assuage guilt – witness the many American postage stamps honoring American Indian chiefs such as Sitting Bull and Crazy Horse or German stamps honoring outstanding German-Jewish personalities in the fields of science, music, literature and art.

I recently returned from a two week cruise to Spain and Portugal including Madeira, the Canary Islands and Lisbon. In my most recent university position as an instructor in the Hebrew language and Judaic Studies at the University of Central Florida in Orlando (2010-2013), I was proud to have utilized my knowledge of Spanish and Portuguese to develop a new course on The Sephardim – their Culture, History and Folklore.

In Madeira, I had the chance for a few minutes to encounter a dealer in coins and banknotes. One note quickly caught my attention featuring the portrait of Garcia de Orta on the face and a market scene in Goa on the reverse. The combination struck my attention as my wife and I had spent one of our most enjoyable holidays in Goa where we had been guests at the home of a descendant of the last Portuguese governor before the Indian take over in 1973.

Upon returning home, one of my first enjoyable tasks after getting over unpacking, jetlag, and sorting through the accumulated mail was to find out more about Garcia de Orta and why he must have had some connection with Goa. I was stunned, humbled and embarrassed by my ignorance in discovering that he had been one of the greatest scientists, physicians and linguists Portugal had produced and that as in the case with Germany, his homeland had for centuries repaid him, his family and descendants with ritual murder, hatred, persecution, humiliation, and contempt. To make the final score even worse, his elevation to the honors bestowed on him not only by banknotes, coins, and public gardens in his name in Lisbon and Goa, his memory had been manipulated during the last few years of the Salazar regime and its successors in order to justify Portugal’s attempts to hold on to its empire in India, Africa and Southeast Asia.

Garcia de Orta was born in 1501 four years after the expulsion of all the Jews in Portugal – both the native born and the refugees from the explusion of 1492 from Spain by Ferdinand and Isabella. He was the son of Fernão (Isaac) da Orta, a merchant, and Leonor Gomes. His siblings were three sisters, Violante, Catarina and Isabel. Their parents were Jews from the Spanish town of Valencia de Alcántara who were among the many refugees from the 1492 expulsion and who had paid a huge fee to be allowed to take up residence in Portugal.

All had been forcibly converted to Christianity in 1497, although the Portuguese monarchs were for a time not anxious to follow the strict requirements of the Inquisition and resented being regarded as under the thumb of Spain. Nevertheless, they eventually regarded their new Jewish subjects as a despised caste – the Cristãos Novos (New Christians). Many of them secretly maintained their Jewish faith but the Portuguese monarch King Manuel I proclaimed a twenty year “moratorium” on examining the fidelity of the “former Jews” to the Church, less out of real tolerance than simple opportunism. Portuguese records show that the approximately 120,000 Jews legally crossing the frontier in 1492 before the expiration of the official eight-months deadline and had to pay a fee of eight cruzeiros each. He also granted preferential permanent legal residence to 630 of the wealthiest and most talented Spanish-Jewish families. The exploitation of this elite was clearly a cynical move by the Portuguese king to take maximum advantage of the expulsion

Garcia studied medicine, arts and philosophy at the Universities of Alcalá de Henares and Salamanca – the two greatest institutions of learning in Spain. Following his father’s death, he graduated and returned to Portugal in 1523. He practiced medicine initially in his home town and then in 1526 in Lisbon, where he gained a professorship at the university in 1530.
By 1534, he sought to emigrate (normally forbidden to all the “New Christians”) to Goa, fearing the increasing power of the Portuguese Inquisition. He sailed for Portuguese India in 1534 as Chief Physician aboard the fleet of Martim Afonso de Sousa, later to be named Governor and who became a close friend and his protector. He accompanied Sousa on various campaigns and soon had a flourishing medical practice, becoming chief physician concurrently to Burhan Nizam Shah I of the Nizam Shahi dynasty of Ahmadnagar, and to several successive Portuguese Viceroys and governors of Goa.

Garcia de Orta married a rich New Christian relative, Brianda de Solis, in 1543 (another likely indication of his loyalty to his ancestral faith). The marriage however was unhappy, but the couple had two daughters. In 1549, his mother and two of his sisters, who had been imprisoned as Jews in Lisbon, managed to join him in Goa (probably due to his connections with Governor Sousa). According to a confession by his brother-in-law after his death, Garcia de Orta privately continued to assert that “the Law of Moses was the true law”.

In 1565, the Inquisition was introduced to the Indian Viceroyalty and an inquisitorial court was opened in Goa. Active persecution against Jews, secret Jews, Hindus and New Christians began although Garcia managed to escape its clutches and died in 1568. Nevertheless, his sister Catarina was arrested as a Jew in the same year and burned at the stake for Judaism in Goa in 1569. Garcia himself was “posthumously convicted of Judaism.” His remains were exhumed and burned in an auto da fé in 1580. The fate of his daughters is not known.

His work in Goa
Garcia de Orta’s learned all he could about Goa, its tropical environment, the neighboring regions and their culture. He met other physicians, and spice merchants from many parts of southern Asia and the Indian Ocean coasts. His fantastic ability in languages enabled him to work and do research in Portuguese, Spanish, Hebrew, Latin, Greek and Arabic and had some knowledge of Persian, and the local languages – Marathi, Konkani, Sanskrit and Kannada. Correspondents and agents sent him seeds and plants; he also traded in spices, drugs and precious stones. He kept a laboratory and botanical garden and produced the greatest source of knowledge about Eastern spices and drugs, Colóquios dos simples e drogas he cousas medicinais da Índia (“Conversations on the simples, drugs and medicinal substances of India”), published at Goa in 1563.

He was the first European to describe cholera and other Asiatic tropical diseases. He often challenged the traditional dependence on the texts of ancient authorities, Greek, Latin and Arabic. The book includes the first published verses by his friend the poet Luís de Camões, regarded as Portugal’s national poet.

Garcia de Orta’s work became recognized across Europe when translations appeared in Latin and other languages. Large parts of it were included in a similar work published in Spanish in 1578 by Cristóbal Acosta, Tractado de las drogas y medicinas de las Indias orientales (“Treatise of the drugs and medicines of the East Indies”). Public gardens in both Lisbon and Goa bear his name today.

It was the Portuguese who first achieved independence and national unity and then established a far flung colonial empire only to lose out later in large part to Spain resulting in a prolonged feeling towards its neighbor as an upstart and arrogant Big Brother (see PortVitoria 2012, “Six centuries of Iberian Rivalry” and comments on Marenhas Barreto’s book The Portuguese Columbus: Secret Agent of King John II Hardcover – June 1, 1992; Reginald A. Brown,Translator. Palgrave MacMillan. ISBN-13: 978-0312079482). The Portuguese kings of the early fourteenth century had the strongest relations with the Jewish community, who enjoyed the most far-reaching royal privileges in Europe.

Columbus established friendly relations with the nobility, wealthy men, high church and court officials immediately upon taking up permanent residence in Spain, which was unthinkable for an immigrant Genoese sailor. Strong Portuguese-Jewish links are hinted at by Columbus setting sail with conversos such as the interpreter Luis de Torres (with a knowledge of both Hebrew and Arabic) and the doctors on the Santa Maria, and several Portuguese seamen, including the pilot of the Niña, Sancho Roiz da Gama, who was related to the Portuguese Admiral Vasco de Gama.

The Jews as pawns in modern opportunistic Portuguese and Spanish schemes
Due to the defeat of Spain in the 1898 War with the United States and the loss of its last vestiges of empire – Cuba and Puerto Rico, and the Philippines, a number of intellectuals, writers and philosophers began to argue and agitate that the reactionary policies and heritage of the intolerant Inquisition had crippled Spain and expelled many of its most productive citizens. Foremost among them was a physician, Dr. Angel Pulido. In the summer of 1903 he made a trip along the Danube and was impressed and delighted by the conversational 15th century Spanish (variously known as Judeo-Español, Ladino or Hequetia in North Africa) he heard a group of Sephardim (the descendants of the 1492 expulsion) speaking.

Upon his return, he launched a campaign to restore Spain’s dignity, prosperity and conscience by readmitting the Jews and apologizing for their mistreatment in the past. He published numerous articles and several books – Los israelitas españoles y el idioma castellano, and Los españoles sin patria y la raza sefardí, and argued for close relations with the Sephardim to benefit Spain’s economy and trade throughout the Mediterranean. He even exercised considerable influence in getting King Alfonso XIII to influence Germany to intervene with the Turkish authorities on behalf of the Jewish community in Tel Aviv to rescind an order of their expulsion. Pulido’s work was also recognized in Portugal, where a republican revolution ended the monarchy as well as its close links with the Catholic Church in 1910 and also reconsidered the possible utility of encouraging relations with the Sephardi communities around the world.

The Portuguese Republic and an Opportunistic Scheme to Settle Jews in Angola
The Portuguese broke with the past overnight, introducing a new flag and a national anthem, separating church and state, and adopting a new constitution as well as ending the monarchy – all anathema to the ruling circles in Spain. Portugal’s republican leaders also toyed with the idea of offering parts of their African colonies, particularly in Angola open for Jewish colonization as both a practical solution to dramatically increasing the white population and to win support from liberal Jewish circles. By June, 1912 the Portuguese chamber of deputies passed the final version of a bill to authorize concessions to Jewish settlers. Its articles clearly indicate the republic’s desire to use Jewish immigration to consolidate its hold over Angola. Colonists wishing to settle the Benguela Plateau would immediately become naturalized Portuguese citizens at their port of entry upon payment of a nominal fee. The Jewish settlements would be required not to have any ‘religious character’ and Portuguese was to be the exclusive language of instruction in any schools the Jewish colonists might build. No practical financial support was enlisted and by the end of 1913, many officials of the Jewish Territorial Organization in London that had entertained the proposal had begun to turn against it in response to the steady progress being made in Palestine under the direction of the Zionist movement.

Restoration of Garcia de Orta’s reputation and promotion of “Lusotropicalism”!
By 1932, Portugal was no longer a liberal republic but an authoritarian state under the rule of conservative economist Antonio Salazar and those around him committed to traditional values and a reconciliation with the Catholic Church. Nevertheless, Salazar eventually found it both a cheap and convenient policy to resuscitate the memory of Portugal’s great Jewish philosophers, cartographers, astronomers and physicians such as Garcia de Orta. In addition to appealing more to American opinion and winning support for retention of Goa, Portugal’s leaders had a card to play in choosing to focus on rehabilitating Garcia de Orta,- the man whose very bones had been an affront to Portugal’s proclaimed Catholic identity in the 16th century. His humanitarian work in Goa was proclaimed to be the very essence of Portugal’s role as a tolerant civilization that embraced diverse peoples and geographic regions, all united by the Portuguese language and culture.

In order to support his colonial policies, Salazar adopted Gilberto Freyre’s notion of “Lusotropicalism”, maintaining that since Portugal had been a multicultural, multiracial nation since the 15th century, country would be dismembered by losing any of its overseas territories which would spell the end for Portuguese independence. Salazar had originally opposed Freyre’s ideas throughout the 1930s, partly because of his fear of miscegenation, and only adopted Lusotropicalism as a means of arguing Portugal’s case abroad. In this regard, Garcia de Orta, like the Angolan Scheme were small pawns in a larger political game. Portugal desperately tried to prevent the Indian seizure of Goa by proclaiming how it violated the noble idea of Lusotropicalism.
On August 15, 1955, 3000–5000 unarmed Indian activists attempted to enter Goa at six locations and were violently repulsed by Portuguese police officers, resulting in approximately 25 deaths. Public opinion in India against the presence of the Portuguese in Goa was mobilized and India shut its consul office in Goa. In 1956, Prime Minister Salazar argued in favor of a referendum in Goa to determine its future. India’s foreign Minister Nehru stated to the press that “Continuance of Goa under Portuguese rule is an impossibility” provoking an American response warning India that if and when India’s armed action in Goa was brought to the UN security council, it could expect no support from the US delegation. Nevertheless, the Portuguese military was resigned that to try and defend Goa was a suicide mission and surrendered quickly followed a full scale Indian invasion in December 1961.
Approval of the 20 escudo note with its portrait of Garcia de Orta and a picture of a market in Goa was given and introduced into circulation in 1968, the same year Salazar suffered a brain hemorrhage forcing his retirement. He died two years later. History had the last laugh – all of the remaining Portuguese colonial possessions won their independence in quick succession after Goa like a collapsing house of cards. The banknote celebrating the life of Garcia de Orta is an ironic reminder that the honor accorded him came four hundred years too late.


Norman Berdichevsky is an American specialist in human geography with a strong interest in Hispanic and Portuguese cultures. He is the author of several books and numerous articles and essays. He is on the Board of Editors of PortVitoria.

Citation:
Berdichevsky, N. The rise, fall and Rehabilitation of Garcia de Orta. PortVitoria, UK, v.10, Jan-Jun, 2015. ISSN 2044-8236, https://portvitoria.com

José Ortega y Gasset

“Lo característico del momento es que el alma vulgar, sabiéndose vulgar, tiene el denuedo de afirmar el derecho de la vulgaridad y lo impone donde quiera… Quien no sea como todo el mundo, quien no piense como todo el mundo, corre el riesgo de ser eliminado.” JOG

Hay un hecho que, para bien o para mal, es el más importante en la vida pública europea de la hora presente. Este hecho es el advenimiento de las masas al pleno poderío social. Como las masas, por definición, no deben ni pueden dirigir su propia existencia, y menos regentar la sociedad, quiere decirse que Europa sufre ahora la más grave crisis que a pueblos, naciones, culturas, cabe padecer. Esta crisis ha sobrevenido más de una vez en la historia. Su fisonomía y sus consecuencias son conocidas. También se conoce su nombre. Se llama la rebelión de las masas. Para la inteligencia del formidable hecho conviene que se evite dar desde luego a las palabras «rebelión», «masas», «poderío social», etc., un significado exclusiva o primariamente político. La vida pública no es sólo política, sino, a la par y aun antes, intelectual, moral, económica, religiosa; comprende los usos todos colectivos e incluye el modo de vestir y el modo de gozar.

Tal vez la mejor manera de acercarse a este fenómeno histórico consista en referirnos a una experiencia visual, subrayando una facción de nuestra época que es visible con los ojos de la cara. Sencillísima de enunciar, aunque no de analizar, yo la denomino el hecho de la aglomeración, del «lleno». Las ciudades están llenas de gente. Las casas, llenas de inquilinos. Los hoteles, llenos de huéspedes. Los trenes, llenos de viajeros. Los cafés, llenos de consumidores. Los paseos, llenos de transeúntes. Las salas de los médicos famosos, llenas de enfermos. Los espectáculos, como no sean muy extemporáneos, llenos de espectadores. Las playas, llenas de bañistas. Lo que antes no solía ser problema empieza a serlo casi de continuo: encontrar sitio.

Nada más. ¿Cabe hecho más simple, más notorio, más constante, en la vida actual? Vamos ahora a punzar el cuerpo trivial de esta observación, y nos sorprenderá ver cómo de él brota un surtidor inesperado, donde la blanca luz del día, de este día, del presente, se descompone en todo su rico cromatismo interior. ¿Qué es lo que vemos, y al verlo nos sorprende tanto? Vemos la muchedumbre, como tal, posesionada de los locales y utensilios creados por la civilización. Apenas reflexionamos un poco, nos sorprendemos de nuestra sorpresa. Pues qué, ¿no es el ideal? El teatro tiene sus localidades para que se ocupen; por lo tanto, para que la sala esté llena. Y lo mismo los asientos del ferrocarril, y sus cuartos el hotel. Sí; no tiene duda. Pero el hecho es que antes ninguno de estos establecimientos y vehículos solían estar llenos, y ahora rebosan, queda fuera gente afanosa de usufructuarlos. Aunque el hecho sea lógico, natural, no puede desconocerse que antes no acontecía y ahora sí; por lo tanto, que ha habido un cambio, una innovación, la cual justifica, por lo menos en el primer momento, nuestra sorpresa.

Sorprenderse, extrañarse, es comenzar a entender. Es el deporte y el lujo específico del intelectual. Por eso su gesto gremial consiste en mirar al mundo con los ojos dilatados por la extrañeza. Todo en el mundo es extraño y es maravilloso para unas pupilas bien abiertas. Esto, maravillarse, es la delicia vedada al futbolista, y que, en cambio, lleva al intelectual por el mundo en perpetua embriaguez de visionario. Su atributo son los ojos en pasmo. Por eso los antiguos dieron a Minerva la lechuza, el pájaro con los ojos siempre deslumbrados.

La aglomeración, el lleno, no era antes frecuente. ¿Por qué lo es ahora? Los componentes de esas muchedumbres no han surgido de la nada. Aproximadamente, el mismo número de personas existía hace quince años. Después de la guerra parecería natural que ese número fuese menor. Aquí topamos, sin embargo, con la primera nota importante. Los individuos que integran estas muchedumbres preexistían, pero no como muchedumbre. Repartidos por el mundo en pequeños grupos, o solitarios, llevaban una vida, por lo visto, divergente, disociada, distante. Cada cual -individuo o pequeño grupo- ocupaba un sitio, tal vez el suyo, en el campo, en la aldea, en la villa, en el barrio de la gran ciudad. Ahora, de pronto, aparecen bajo la especie de aglomeración, y nuestros ojos ven dondequiera muchedumbres. ¿Dondequiera? No, no; precisamente en los lugares mejores, creación relativamente refinada de la cultura humana, reservados antes a grupos menores, en definitiva, a minorías. La muchedumbre, de pronto, se ha hecho visible, se ha instalado en los lugares preferentes de la sociedad. Antes, si existía, pasaba inadvertida, ocupaba el fondo del escenario social; ahora se ha adelantado a las baterías, es ella el personaje principal. Ya no hay protagonistas: sólo hay coro.

El concepto de muchedumbre es cuantitativo y visual. Traduzcámoslo, sin alterarlo, a la terminología sociológica. Entonces hallamos la idea de masa social. La sociedad es siempre una unidad dinámica de dos factores: minorías y masas. Las minorías son individuos o grupos de individuos especialmente cualificados. La masa es el conjunto de personas no especialmente cualificadas. No se entienda, pues, por masas, sólo ni principalmente «las masas obreras». Masa es el «hombre medio». De este modo se convierte lo que era meramente cantidad -la muchedumbre- en una determinación cualitativa: es la cualidad común, es lo mostrenco social, es el hombre en cuanto no se diferencia de otros hombres, sino que repite en sí un tipo genérico. ¿Qué hemos ganado con esta conversión de la cantidad a la cualidad? Muy sencillo: por medio de ésta comprendemos la génesis de aquella. Es evidente, hasta perogrullesco, que la formación normal de una muchedumbre implica la coincidencia de deseos, de ideas, de modo de ser, en los individuos que la integran. Se dirá que es lo que acontece con todo grupo social, por selecto que pretenda ser. En efecto; pero hay una esencial diferencia. En los grupos que se caracterizan por no ser muchedumbre y masa, la coincidencia efectiva de sus miembros consiste en algún deseo, idea o ideal, que por sí solo excluye el gran número.

Para formar una minoría, sea la que fuere, es preciso que antes cada cual se separe de la muchedumbre por razones especiales, relativamente individuales. Su coincidencia con los otros que forman la minoría es, pues, secundaria, posterior, a haberse cada cual singularizado, y es, por lo tanto, en buena parte, una coincidencia en no coincidir. Hay cosas en que este carácter singularizador del grupo aparece a la intemperie: los grupos ingleses que se llaman a sí mismos «no conformistas», es decir, la agrupación de los que concuerdan sólo en su disconformidad respecto a la muchedumbre ilimitada. Este ingrediente de juntarse los menos, precisamente para separarse de los más, va siempre involucrado en la formación de toda minoría. Hablando del reducido público que escuchaba a un músico refinado, dice graciosamente Mallarmé que aquel público subrayaba con la presencia de su escasez la ausencia multitudinaria.

En rigor, la masa puede definirse, como hecho psicológico, sin necesidad de esperar a que aparezcan los individuos en aglomeración. Delante de una sola persona podemos saber si es masa o no. Masa es todo aquel que no se valora a sí mismo -en bien o en mal- por razones especiales, sino que se siente «como todo el mundo» y, sin embargo, no se angustia, se siente a saber al sentirse idéntico a los demás. Imagínese un hombre humilde que al intentar valorarse por razones especiales -al preguntarse si tiene talento para esto o lo otro, si sobresale en algún orden-, advierte que no posee ninguna cualidad excelente. Este hombre se sentirá mediocre y vulgar, mal dotado; pero no se sentirá «masa». Cuando se habla de «minorías selectas», la habitual bellaquería suele tergiversar el sentido de esta expresión, fingiendo ignorar que el hombre selecto no es el petulante que se cree superior a los demás, sino el que se exige más que los demás, aunque no logre cumplir en su persona esas exigencias superiores. Y es indudable que la división más radical que cabe hacer de la humanidad es ésta, en dos clases de criaturas: las que se exigen mucho y acumulan sobre sí mismas dificultades y deberes, y las que no se exigen nada especial, sino que para ellas vivir es ser en cada instante lo que ya son, sin esfuerzo de perfección sobre sí mismas, boyas que van a la deriva. Esto me recuerda que el budismo ortodoxo se compone de dos religiones distintas: una, más rigurosa y difícil; otra, más laxa y trivial: el Mahayana -«gran vehículo», o «gran carril»-, el Himayona -«pequeño vehículo», «camino menor»-. Lo decisivo es si ponemos nuestra vida a uno u otro vehículo, a un máximo de exigencias o a un mínimo.

La división de la sociedad en masas y minorías excelentes no es, por lo tanto, una división en clases sociales, sino en clases de hombres, y no puede coincidir con la jerarquización en clases superiores e inferiores. Claro está que en las superiores, cuando llegan a serlo, y mientras lo fueron de verdad, hay más verosimilitud de hallar hombres que adoptan el «gran vehículo», mientras las inferiores están normalmente constituidas por individuos sin calidad. Pero, en rigor, dentro de cada clase social hay masa y minoría auténtica. Como veremos, es característico del tiempo el predominio, aun en los grupos cuya tradición era selectiva, de la masa y el vulgo. Así, en la vida intelectual, que por su misma esencia requiere y supone la calificación, se advierte el progresivo triunfo de los seudointelectuales incualifícados, incalificables y descalificados por su propia contextura. Lo mismo en los grupos supervivientes de la «nobleza» masculina y femenina. En cambio, no es raro encontrar hoy entre los obreros, que antes podían valer como el ejemplo más puro de esto que llamamos «masa», almas egregiamente disciplinadas.

Ahora bien: existen en la sociedad operaciones, actividades, funciones del más diverso orden, que son, por su misma naturaleza, especiales, y, consecuentemente, no pueden ser bien ejecutadas sin dotes también especiales. Por ejemplo: ciertos placeres de carácter artístico y lujoso o bien las funciones de gobierno y de juicio político sobre los asuntos públicos. Antes eran ejercidas estas actividades especiales por minorías calificadas -calificadas, por lo menos, en pretensión-. La masa no pretendía intervenir en ellas: se daba cuenta de que si quería intervenir tendría, congruentemente, que adquirir esas dotes especiales y dejar de ser masa. Conocía su papel en una saludable dinámica social.

Si ahora retrocedemos a los hechos enunciados al principio, nos aparecerán inequívocamente como nuncios de un cambio de actitud en la mesa. Todos ellos indican que ésta ha resuelto adelantarse al primer piano social y ocupar los locales y usar los utensilios y gozar de los placeres antes adscritos a los pocos. Es evidente que, por ejemplo, los locales no estaban premeditados para las muchedumbres, puesto que su dimensión es muy reducida, y el gentío rebosa constantemente de ellos, demostrando a los ojos y con lenguaje visible el hecho nuevo: la masa que, sin dejar de serlo, suplanta a las minorías.

Nadie, creo yo, deplorará que las gentes gocen hoy en mayor medida y número que antes, ya que tienen para ello el apetito y los medios. Lo malo es que esta decisión tomada por las masas de asumir las actividades propias de las minorías no se manifiesta, ni puede manifestarse, sólo en el orden de los placeres, sino que es una manera general del tiempo. Así -anticipando lo que luego veremos-, creo que las innovaciones políticas de los más recientes años no significan otra cosa que el imperio político de las masas. La vieja democracia vivía templada por una abundante dosis de liberalismo y de entusiasmo por la ley. Al servir a estos principios, el individuo se obligaba a sostener en sí mismo una disciplina difícil. Al amparo del principio liberal y de la norma jurídica podían actuar y vivir las minorías. Democracia y ley, convivencia legal, eran sinónimos. Hoy asistimos al triunfo de una hiperdemocracia en que la masa actúa directamente sin ley, por medio de materiales presiones, imponiendo sus aspiraciones y sus gustos. Es falso interpretar las situaciones nuevas como si la masa se hubiese cansado de la política y encargase a personas especiales su ejercicio. Todo lo contrario. Eso era lo que antes acontecía, eso era la democracia liberal. La masa presumía que, al fin y al cabo, con todos sus defectos y lacras, las minorías de los políticos entendían un poco más de los problemas públicos que ella. Ahora, en cambio, cree la masa que tiene derecho a imponer y dar vigor de ley a sus tópicos de café. Yo dudo que haya habido otras épocas de la historia en que la muchedumbre llegase a gobernar tan directamente como en nuestro tiempo. Por eso hablo de hiperdemocracia.

Lo propio acaece en los demás órdenes, muy especialmente en el intelectual. Tal vez padezco un error; pero el escritor, al tomar la pluma para escribir sobre un tema que ha estudiado largamente, debe pensar que el lector medio, que nunca se ha ocupado del asunto, si le lee, no es con el fin de aprender algo de él, sino, al revés, para sentenciar sobre él cuando no coincide con las vulgaridades que este lector tiene en la cabeza. Si los individuos que integran la masa se creyesen especialmente dotados, tendríamos no más que un caso de error personal, pero no una subversión sociológica. Lo característico del momento es que el alma vulgar, sabiéndose vulgar, tiene el denuedo de afirmar el derecho de la vulgaridad y lo impone dondequiera. Como se dice en Norteamérica: ser diferente es indecente. La masa arrolla todo lo diferente, egregio, individual, calificado y selecto. Quien no sea como todo el mundo, quien no piense como todo el mundo, corre el riesgo de ser eliminado. Y claro está que ese «todo el mundo» no es «todo el mundo». «Todo el mundo» era, normalmente, la unidad compleja de masa y minorías discrepantes, especiales. Ahora «todo el mundo» es sólo la masa.


Biografia de José Ortega y Gasset
El ensaysta y filósofo español José Ortega y Gasset(1883-1955) nació en Madrid el 9 de mayo de 1883. Su padre, José Ortega y Munilla, dirigía el periódico “El Imparcial”, propiedad de la familia de su madre, Dolores Gasset, perteneciente a la burguesía liberal e ilustrada de finales del siglo XIX. La tradición liberal y la actividad periodística de su familia determinarán la futura actividad de Ortega en un doble ámbito: en su participación en la vida política española y en su actividad periodística. Ortega publica numerosos artículos de prensa, culturales y políticos; además, el estilo periodístico puede reconocerse también en sus obras más técnicas y filosóficas.

Tras sus primeros estudios en Madrid, Ortega comienza en 1891 en Málaga los estudios de Bachillerato en el colegio de los jesuitas de Miraflores del Palo. Allí entra en contacto con otros jóvenes de la burguesía malagueña. Su próxima estación será Deusto donde comienza sus estudios en 1898, estudios que continuará, poco después, en la Universidad de Madrid. Son los años de la guerra hispano-norteamericana, y de la consiguiente pérdida de las colonias (Cuba, Filipinas y Puerto Rico) que marcarán, como se sabe, la conciencia política y cultural de buena parte de los intelectuales españoles, elevando el tema de la decadencia de España al primer plano de la reflexión, así como el de la necesidad de una regeneración.

En 1902 obtiene la licenciatura en Filosofía y dos años después defiende su tesis doctoral. En 1905 viaja a Alemania (universidades de Leipzig, Berlín y Marburgo), donde entra en contacto con los neokantianos H. Cohen y P. Natorp, en 1906, asistiendo a sus cursos. Ambos ejercen una gran influencia en su pensamiento, aunque Ortega no se limitó a aceptar los principios neokantianos sin más, sino que adoptó una actitud crítica y constructiva ante ellos. En 1908 regresa a Madrid y en 1910 accede, por concurso, a la cátedra de Metafísica de la Universidad de Madrid. Ese mismo año contrae matrimonio con Rosa Spottorno y Topete.

Su actividad pública a partir de 1911 es agitada e incansable. Intenta llevar a la práctica sus ideas regeneracionistas. Con ese fin funda en 1914 la “Liga de Educación Política Española”; en 1915 la revista “España”; y en 1916 será cofundador del diario “El Sol”. Al mismo tiempo publica sus primeras obras, como las “Meditaciones del Quijote”, (en 1914), “El Espectador”, (en 1916), iniciando el período perspectivista de su filosofía, que predominará en su obra hasta 1923.

En 1923 se instaura en España la dictadura de Primo de Rivera. Ese año fundará la “Revista de Occidente”, de marcada oposición política a la dictadura, oposición que le llevará, en 1929, a dimitir de su cátedra en la Universidad de Madrid, continuando sus actividades filosóficas en lugares no vinculados anteriormente a la filosofía, como la Sala Rex y el Teatro Infanta Beatriz (actualmente el conocido restaurante Teatriz), impartiendo clases a modo de conferencia, algunas de las cuales serán recogidas posteriormente en su obra “¿Qué es filosofía?”, y cuyos contenidos corresponden ya al período racio-vitalista de su pensamiento, iniciado en 1923.

En 1930 vuelve a la cátedra de la Complutense, bajo la dictadura de Berenguer, más tolerante que la de Primo de Rivera, aunque continúa su actividad pública. Ese mismo año publicará “La rebelión de las masas”, una de sus obras más célebres. En 1931, junto con otros intelectuales de la talla de Gregorio Marañón o Pérez de Ayala funda la “Agrupación al Servicio de la República” y es elegido diputado a las Cortes Constituyentes de la recién proclamada II República por la provincia de León. Después de su experiencia parlamentaria retornará a la actividad académica publicando, en 1934, “En torno a Galileo”, y en 1935 “Historia como sistema”, siendo homenajeado ese mismo año por la Universidad de Madrid.

A raíz del golpe de estado de 1936 contra la II República, que dará lugar a la guerra civil española, Ortega se autoexilia, estableciendo su residencia primero en París, y luego en Holanda y Argentina, hasta 1942, año en que establecerá su residencia en Portugal. Al finalizar la segunda guerra mundial regresará a España, en 1945 y, aunque se le autoriza un ciclo de conferencias en el Ateneo de Madrid, no se le permite recuperar su cátedra de Metafísica, ante lo cual funda, en 1948, el “Instituto de Humanidades”, donde vuelve a impartir docencia ante un público no universitario. En 1950 realiza un último viaje a Alemania, decepcionado ante las dificultades de su estancia en España, siendo nombrado en 1951 Doctor Honoris Causa por las universidades de Marburgo y Glasgow. Regresará a España en 1955, donde muere el 18 de octubre en Madrid.
Fuente: http://www.rinconcastellano.com/sigloxx/ortega.html#

Nota
El presente artigo es el primero capítulo de lo livro La Rebellion de las Masas de José Ortega y Gasset, publicado em 1930. Fuente: http://bibliotecasolidaria.blogspot.com.es/2009/05/la-rebelion-de-las-masas-de-ortega-y.html

Citation:
Ortega y Gasset, J. El hecho de aglomeraciones. PortVitoria, UK, v.10, Jan-Jun, 2015. ISSN 2044-8236, https://portvitoria.com

José Ortega y Gasset

“A nota característica do nosso tempo é a triste verdade de que a alma medíocre, a mente lugar-comum, mesmo sabendo-se medíocre, tem a audácia de asseverar o seu direito à mediocridade, e continua se impondo onde quer que consiga.” JOG

Há um fato que, para bem ou para mal, é o mais importante na vida publica europeia da hora presente. Este fato é o advento das massas ao pleno poderio social. Como as massas, por definição, não devem nem podem dirigir sua própria existência, e menos reger a sociedade, quer dizer-se que a Europa sofre agora a mais grave crise que a povos, nações, culturas, cabe padecer. Esta crise sobreveio mais de uma vez na história. Sua fisionomia e suas consequências são conhecidas. Também se conhece seu nome. Chama-se a rebelião das massas. Para a inteligência do formidável fato convém que se evite dar, desde já, as palavras “rebelião”, “massas”, “poderio social”, etc. um significado exclusivo ou primariamente politico. A vida pública não e só politica, mas, ao mesmo tempo e ainda antes, intelectual, moral, econômica, religiosa; compreende todos os usos coletivos e inclui o modo de vestir e o modo de gozar.

Talvez a melhor maneira de aproximar-se a este fenômeno histórico consista em referir-nos a uma experiencia visual, sublinhando uma feição de nossa época que é visível com os olhos da cara Simplicíssima de enunciar, ainda que não de analisar, eu a denomino o fato da aglomeração, do “cheio”. As cidades estão cheias de gente. As casas cheias de inquilinos. Os hotéis cheios de hóspedes. Os trens, cheios de viajantes. Os cafés, cheios de consumidores. Os passeios, cheios de transeuntes. As salas dos médicos famosos, cheias de enfermos. Os espetáculos, desde que não sejam muito extemporâneos, cheios de espectadores. As praias, cheias de banhistas. O que antes não era problema, começa a sê-lo quase de continuo: encontrar lugar.

Nada mais. Há fato mais simples, mais notório, mais constante, na vida atual? Vamos agora puncionar o corpo trivial desta observação, e nos surpreendera ver como dele brota um repuxo inesperado, onde a branca luz do dia, deste dia, do presente, se decompõe em todo o seu rico cromatismo interior. Que e o que vemos e ao vê-lo nos surpreende tanto? Vemos a multidão, como tal, possuidora dos locais e utensílios criados pela civilização. Apenas refletimos um pouco, nos surpreendemos de nossa surpresa. Mas que, não é o ideal? O teatro tem suas localidades para que se ocupem; portanto, para que a sala esteja cheia. E do mesmo modo os assentos o vagão ferroviário e seus quartos o hotel. Sim; não há duvida. Mas o fato é que antes nenhum destes estabelecimentos e veículos costumavam estar cheios, e agora transbordam, fica fora gente afanosa de usufruí los. Embora o fato seja lógico, natural, não se pode desconhecer que antes não acontecia e agora sim; portanto, que houve uma mudança, uma inovação, a qual justifica, pelo menos no primeiro momento, nossa surpresa.

Surpreender-se, estranhar, e começar a entender. E o esporte e o luxo especifico do intelectual. Por isso sua atitude gremial consiste em olhar o mundo com os olhos dilatados pela estranheza. Tudo no mundo é estranho e é maravilhoso para umas pupilas bem abertas. Isso, maravilhar-se, e a delicia vedada ao futebolista e que, ao contrário, leva o intelectual pelo mundo em perpetua embriaguez de visionário.Seu atributo são os olhos em pasmo. Por isso, os antigos deram a Minerva a coruja, o pássaro com os olhos sempre deslumbrados.

A aglomeração, ou cheio, antes não era frequente. Por que o e agora? Os componentes dessas multidões não surgiram do nada. Aproximadamente, o mesmo numero de pessoas existia há quinze anos. Depois da guerra pareceria natural que esse número fosse menor. Aqui topamos, entretanto, com a primeira nota importante. Os indivíduos que integram estas multidões preexistiam, mas não como multidão. Repartidos pelo mundo em pequenos grupos, ou solitários, levavam uma vida, pelo visto, divergente, dissociada, distante. Cada qual – indivíduo ou pequeno grupo – ocupava o lugar, talvez o seu, no campo, na aldeia, na vila, no bairro da grande cidade. Agora, de repente, aparecem sob a espécie de aglomeração, e nossos olhos vem por toda a parte multidões. Por toda a parte? Não, não; precisamente nos lugares melhores, criação realmente refinada da cultura humana, reservados antes a grupos menores, em definitiva, a minorias. A multidão, de repente, tornou-se visível, e instalou-se nos lugares preferentes da sociedade. Antes, se existia, passava inadvertida, ocupava o fundo do cenário social; agora adiantou-se ate as gambiarras, ela e o personagem principal. Já não há protagonistas: só há coro.

O conceito de multidão é quantitativo e visual. Traduzamo-lo, sem alterá-lo, a terminologia sociológica. Então achamos a ideia de massa social. A sociedade é sempre uma unidade dinâmica de dois fatores: minorias e massas. As minorias são indivíduos ou grupos de indivíduos especialmente qualificados. A massa é o conjunto de pessoas não especialmente qualificadas. Não se entenda, pois, por massas só nem principalmente “as massas operárias”. Massa é “o homem médio”. Deste modo se converte o que era meramente quantidade – a multidão – numa determinação qualitativa: é a qualidade comum, é o monstrengo social, é o homem enquanto não se diferencia de outros homens, mas que repete em si um tipo genérico. Que ganhamos com esta conversão da quantidade para a qualidade? Muito simples: por meio desta compreendemos a gênese daquela. É evidente, até acaciano, que a formação normal de uma multidão implica a coincidência de desejos, ideias, de modo se ser nos infivíduos que a integram. Dir-se-á que é o que acontece com todo grupo social, por seleto que pretenda ser. Com efeito; mas há uma diferença essencial. Nos grupos que se caracterizam por não ser multidão e massa, a coincidência efetiva de seus membros consiste em algum desejo, ideia ou ideal, que por si exclui o grande numero.

Para formar uma minoria, seja qual seja, e preciso que antes cada qual se separe da multidão por razoes essenciais, relativamente individuais. Sua coincidência com os outros que formam a minoria e, pois, secundário, posterior a haver-se cada qual singularizado, e é, portanto, em boa parte uma coincidência em não coincidir. Há casos em que esse caráter singularizador do grupo aparece a céu descoberto: os grupos ingleses que se chamam a si mesmos “não conformistas”, isto e, a agrupação dos que concordam só em sua desconformidade a respeito da multidão ilimitada. Este ingrediente de juntarem-se os menos precisamente para separar-se dos demais vai sempre misturado na formação de toda minoria. Falando do reduzido publico que ouvia um musico refinado, diz graciosamente Mallarmé que aquele publico salientava com a presença de sua escassez a ausência multitudinária.

A rigor, a massa pode definir-se, como fato psicológico, sem necessidade de esperar que apareçam os indivíduos em aglomeração. Diante de uma só pessoa podemos saber se e massa ou não. Massa e todo aquele que não se valoriza a si mesmo – no bem ou no mal – por razoes especiais, mas que se sente “como todo o mundo”, e, entretanto, não se angustia, sente-se a vontade ao sentir-se idêntico aos demais. Imagine-se um homem humilde que ao tentar valorizar-se por razoes especiais – ao perguntar de si para si se tem talento para isto ou para aquilo, se sobressai em alguma ordem – adverte que não possui nenhuma qualidade excelente. Este homem sentir-se-á medíocre e vulgar, e mal dotado; mas não se sentira “massa”. Quando se fala de “minorias seletas”, a velhacaria habitual costuma tergiversar o sentido desta expressão, fingindo ignorar que o homem seleto não e o petulante que se supõe superior aos demais, mas o que exige mais de si que os demais, embora não consiga cumprir em sua pessoa essas exigências superiores. E é indubitável que a divisão mais radical que cabe fazer na humanidade, e esta em duas classes de criaturas: as que exigem muito de si e acumulam sobre si mesmas dificuldades e deveres, e as que não exigem de si nada especial, mas que para elas viver e ser em cada instante o que já são, sem esforço de perfeição em si mesmas, boias que vão a deriva. Isto me lembra que o budismo ortodoxo se compõe de duas religiões distintas: uma, mais rigorosa e difícil; outra, mais frouxa e trivial; ou Mahayana – “grande veiculo” ou “grande carril” – e o Hinayana – “pequeno veiculo”, “caminho menor”. 0 decisivo e se pomos nossa vida num ou no outro veiculo, a um máximo de exigências ou a um mínimo.

A divisão da sociedade em massas ou minorias excelentes não é, portanto, uma divisão em classes sociais, mas em classes de homens, e não pode coincidir com a hierarquização em classes superiores e inferiores. Claro está que nas superiores, quando chegam a sê-lo e enquanto o forem de verdade há mais verossimilitude em achar homens que adotam o “grande veículo”, enquanto as inferiores estão normalmente constituídas por indivíduos sem qualidade. Mas, a rigor, dentro de cada classe social há massa e minoria autêntica. Como veremos, é característico do tempo o predomínio, ainda nos grupos cuja tradição era seletiva, da massa e do vulgo. Assim, na vida intelectual, que por sua própria essência requer e supõe a qualificação, adverte-se o progressivo triunfo dos pseudointelectuais inqualificados, inqualificáveis e desclassificados por sua própria contextura. 0 mesmo nos grupos sobreviventes da “nobreza” masculina e feminina. A seu turno, não é raro encontrar hoje entre os obreiros, que antes podiam valer como o exemplo mais puro disto que chamamos “massa”, almas egregiamente disciplinadas.

Ora bem: existem na sociedade operações, atividades, funções da ordem mais diversa, que são, por sua mesma natureza, especiais, e, consequentemente, não podem ser bem executadas sem dotes também especiais. Por exemplo: certos prazeres de caráter artístico e luxuoso, ou bem as funções de governo e de juízo politico sobre os assuntos públicos. Antes eram exercidas estas atividades especiais por minorias qualificadas – qualificadas, pelo menos, em pretensão -. A massa não pretendia intervir nelas: percebia-se que se queria intervir teria congruentemente de adquirir esses dotes especiais e deixar de ser massa. Conhecia seu papel numa saudável dinâmica social.

Se agora retrocedermos aos fatos enunciados a princípio, eles nos aparecerão inequivocamente como anúncios de uma mudança de atitude na massa. Todos eles indicam que esta resolveu avançar para o primeiro plano social e ocupar os locais e usar os utensílios e gozar dos prazeres antes adstritos aos poucos. É evidente que, por exemplo, os locais não estavam premeditados para as multidões, posto que sua dimensão seja muito reduzida e o povo transborde constantemente deles, demonstrando aos olhos e com linguagem visível o fato novo: a massa, que, sem deixar de sê-lo, suplanta as minorias.

Ninguém, creio eu, deploraria que as pessoas gozem hoje em maior medida e numero que antes, já que tem para isso os apetites e os meios. O mal é que esta decisão tomada pelas massas de assumir as atividades próprias das minorias, não se manifesta, nem pode manifestar-se, só na ordem dos prazeres, mas que é uma maneira geral do tempo. Assim – antecipando o que logo veremos -, creio que as inovações políticas dos mais recentes anos não significam outra coisa senão o império político das massas. A velha democracia vivia temperada por uma dose abundante de liberalismo e de entusiasmo pela lei. Ao servir a estes princípios o indivíduo obrigava-se a sustentar em si mesmo uma disciplina difícil. Ao amparo do princípio liberal e da norma jurídica podiam atuar e viver as minorias. Democracia e Lei, e convivência legal, eram sinônimos. Hoje assistimos ao triunfo de uma hiperdemocracia em que a massa atua diretamente sem lei, por meio de pressões materiais, impondo suas aspirações e seus gostos. É falso interpretar as situações novas como se a massa se houvesse cansado da política e encarregasse a pessoas especiais seu exercício. Pelo contrário. Isso era o que antes acontecia, isso era a democracia liberal. A massa presumia que, no final das contas, com todos os seus defeitos e vícios, as minorias dos políticos entendiam um pouco mais dos problemas públicos que ela. Agora, por sua vez, a massa crê que tem direito a impor e dar vigor de lei aos seus tópicos de café. Eu duvido que tenha havido outras épocas da história em que a multidão chegasse a governar tão diretamente como em nosso tempo. Por isso falo de hiperdemocracia.

O mesmo acontece nas demais ordens, muito especialmente na intelectual. Talvez cometa eu um erro; mas o escritor, ao tomar da pena para escrever sobre um tema que estudou intensamente, deve pensar que o leitor médio, que nunca se ocupou do assunto, se o lê, não é com o fim de aprender algo dele, mas, pelo contrário, para sentenciar sobre ele quando não coincide com as vulgaridades que este leitor tem na cabeça. Se os indivíduos que integram a massa se acreditassem especialmente dotados, teríamos não mais que um caso de erro pessoal, mas não uma subversão sociológica. O característico do momento é que a alma vulgar, sabendo-se vulgar, tem o denodo de afirmar o direito de vulgaridade e o impõe por toda a parte. Como se diz na América do Norte: ser diferente é indecente. A massa atropela tudo que e diferente, egrégio, individual, qualificado e seleto. Quem não seja como todo o mundo, quem não pense como todo o mundo, corre o risco de ser eliminado. E claro está que esse “todo o mundo” não é “todo o mundo”. “Todo o mundo” era, normalmente, a unidade complexa de massa e minorias discrepantes, especiais. Agora todo o mundo e só a massa.


Biografia de José de Ortega y Gasset (por Nelson Jahr Garcia)
José de Ortega y Gasset nasceu em Madrid, a 9 de maio de 1883. A família de sua mãe era proprietária do jornal madrileno “El Imparcial” e seu pai jornalista e diretor desse mesmo diário. Essa relação com o jornalismo foi essencial para o desenvolvimento de sua formação intelectual e seu estilo de expressão literária. Grande parte de seus escritos filosóficos foram produzidos a partir do contato com a imprensa. Ortega, alem de considerado um dos maiores filósofos da língua espanhola também é lembrado como uma das maiores figuras do jornalismo espanhol do seculo XIX. Tendo adquirido as primeiras letras em Madrid foi enviado a cursar o bacharelado em um colégio jesuíta de Málaga. Embora reconhecendo o valor da educação jesuítica recebida, reagiu contra os tênues fundamentos da ciência adquirida, formulando um projeto pessoal de reforma da filosofia europeia. Terminando os estudos em Málaga iniciou seus estudos universitários em Deusto e depois na Universidade de Madrid, onde se doutorou em Filosofia. Buscando uma formação intelectual mais sólida continuou seus estudos em Marburgo, na Alemanha, onde prevalecia o neokantismo. Acabou por adotar uma atitude critica em relação aos seus mestres e a Kant, que se refletiu na afirmação: “Durante dez anos vivi no mundo do pensamento kantiano: eu o respirei como a uma atmosfera que foi, ao mesmo tempo, minha casa e minha prisão (…) Com grande esforço, consegui evadir-me da prisão kantiana e escapei de sua influência atmosférica.” A partir de 1910 iniciou uma vida pública repartida entre a docência universitária e atividades políticas e culturais extra-acadêmicas. Com o inicio da guerra civil espanhola, em julho de 1936, Ortega decidiu andar pelo mundo, viajando a França, Holanda, Argentina, Portugal, países onde proferiu inúmeras conferências. Suas obras se revestem de um caráter extremamente critico, as mais polemicas das quais foram: “Meditaciones del Quijote”, “Que es filosofia?”, “En torno a Galileo”, “Historia como sistema”, “Rebelión de las masas”, “Obras completas”. Foi também o cofundador do diário “El Sol” e fundador e diretor da “Revista de Ocidente”. Ortega y Gasset faleceu em Madrid no dia 18 de outubro de 1955.


Nota
O presente artigo é o primeiro capítulo do livro A rebelião das massas de José Ortega y Gasset, publicado em 1929. Tradução para o português de Herrera Filho. Editora Ridendo Castigat More, versão eBooksBrasil.com.

Citation:
Ortega y Gasset, J. O fato das aglomerações. PortVitoria, UK, v.10, Jan-Jun, 2015. ISSN 2044-8236,

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José Ortega y Gasset

“The characteristic note of our time is the dire truth that, the mediocre soul, the commonplace mind, knowing itself to be mediocre, has the gall to assert its right to mediocrity, and goes on to impose itself where it can.” JOG

There is one fact which, whether for good or ill, is of utmost importance in the public life of Europe at the present moment. This fact is the accession of the masses to complete social power. As the masses, by definition, neither should nor can direct their own personal existence, and still less rule society in general, this fact means that actually Europe is suffering from the greatest crisis that can afflict peoples, nations, and civilisation. Such a crisis has occurred more than once in history. Its characteristics and its consequences are well known. So also is its name. It is called the rebellion of the masses. In order to understand this formidable fact, it is important from the start to avoid giving to the words “rebellion,” “masses,” and “social power” a meaning exclusively or primarily political. Public life is not solely political, but equally, and even primarily, intellectual, moral, economic, religious; it comprises all our collective habits, including our fashions both of dress and of amusement.

Perhaps the best line of approach to this historical phenomenon may be found by turning our attention to a visual experience, stressing one aspect of our epoch which is plain to our very eyes. This fact is quite simple to enunciate, though not so to analyse. I shall call it the fact of agglomeration, of “plenitude.” Towns are full of people, houses full of tenants, hotels full of guests, trains full of travellers, cafes full of customers, parks full of promenaders, consulting-rooms of famous doctors fun of patients, theatres full of spectators, and beaches full of bathers. What previously was, in general, no problem, now begins to be an everyday one, namely, to find room.

That is all. Can there be any fact simpler, more patent more constant in actual life? Let us now pierce the plain surface of this observation and we shall be surprised to see how there wells forth an unexpected spring in which the white light of day, of our actual day, is broken up into its rich chromatic content. What is it that we see, and the sight of which causes us so much surprise? We see the multitude, as such, in possession of the places and the instruments created by civilisation. The slightest reflection will then make us surprised at our own surprise. What about it? Is this not the ideal state of things? The theatre has seats to be occupied- in other words, so that the house may be full- and now they are overflowing; people anxious to use them are left standing outside. Though the fact be quite logical and natural, we cannot but recognise that this did not happen before and that now it does; consequently, there has been a change, an innovation, which justifies, at least for the first moment, our surprise.
To be surprised, to wonder, is to begin to understand. This is the sport, the luxury, special to the intellectual man. The gesture characteristic of his tribe consists in looking at the world with eyes wide open in wonder. Everything in the world is strange and marvellous to well-open eyes. This faculty of wonder is the delight refused to your football “fan,” and, on the other hand, is the one which leads the intellectual man through life in the perpetual ecstasy of the visionary. His special attribute is the wonder of the eyes. Hence it was that the ancients gave Minerva her owl, the bird with ever-dazzled eyes.

Agglomeration, fullness, was not frequent before. Why then is it now? The components of the multitudes around us have not sprung from nothing. Approximately the same number of people existed fifteen years ago. Indeed, after the war it might seem natural that their number should be less. Nevertheless, it is here we come up against the first important point. The individuals who made up these multitudes existed, but not qua multitude. Scattered about the wotld in small groups, or solitary, they lived a life, to all appearances, divergent, dissociate, apart. Each individual or small group occupied a place, its own, in country, village, town, or places, the relatively refined creation of human culture, previously reserved to lesser groups, in a word, to minorities. The multitude has suddenly become visible, installing itself in the preferential positions in society. Before, if it existed, it passed unnoticed, occupying the background of the social stage; now it has advanced to the footlights and is the principal character. There are no longer protagonists; there is only the chorus.

The concept of the multitude is quantitative and visual. Without changing its nature, let us translate it into terms of sociology. We then meet with the notion of the “social mass.” Society is always a dynamic unity of two component factors: minorities and masses. The minorities are individuals or groups of individuals which are specially qualified. The mass is the assemblage of persons not specially qualified. By masses, then, is not to be understood, solely or mainly, “the working masses.” The mass is the average man. In this way what was mere quantity- the multitude- is converted into a qualitative determination: it becomes the common social quality, man as undifferentiated from other men, but as repeating in himself a generic type. What have we gained by this conversion of quantity into quality? Simply this: by means of the latter we understand the genesis of the former. It is evident to the verge of platitude that the normal formation of a multitude implies the coincidence of desires, ideas, ways of life, in the individuals who constitute it. It will be objected that this is just what happens with every social group, however select it may strive to be. This is true; but there is an essential difference. In those groups which are characterised by not being multitude and mass, the effective coincidence of its members is based on some desire, idea, or ideal, which of itself excludes the great number.
To form a minority, of whatever kind, it is necessary beforehand that each member separate himself from the multitude for special, relatively personal, reasons. Their coincidence with the others who form the minority is, then, secondary, posterior to their having each adopted an attitude of singularity, and is consequently, to a large extent, a coincidence in not coinciding. There are cases in which this singularising character of the group appears in the light of day: those English groups, which style themselves “nonconformists,” where we have the grouping a necessary ingredient in the formation of every minority. Speaking of the limited public which listened to a musician of refinement, Mallarme wittily says that this public by its presence in small numbers stressed the absence of the multitude.

Strictly speaking, the mass, as a psychological fact, can be defined without waiting for individuals to appear in mass formation. In the presence of one individual we can decide whether he is “mass” or not. The mass is all that which sets no value on itself- good or ill- based on specific grounds, but which feels itself “just like everybody,” and nevertheless is not concerned about it; is, in fact, quite happy to feel itself as one with everybody else. Imagine a humble-minded man who, having tried to estimate his own worth on specific grounds- asking himself if he has any talent for this or that, if he excels in any direction- realises that he possesses no quality of excellence. Such a man will feel that he is mediocre and commonplace, ill-gifted, but will not feel himself “mass.” When one speaks of “select minorities” it is usual for the evil-minded to twist the sense of this expression, pretending to be unaware that the select man is not the petulant person who thinks himself superior to the rest, but the man who demands more of himself than the rest, even though he may not fulfil in his person those higher exigencies. For there is no doubt that the most radical division that it is possible to make of humanity is that which splits it into two classes of creatures: those who make great demands on themselves, piling up difficulties and duties; and those who demand nothing special of themselves, but for whom to live is to be every moment what they already are, without imposing on themselves any effort towards perfection; mere buoys that float on the waves. This reminds me that orthodox Buddhism is composed of two distinct religions: one, more rigorous and difficult, the other easier and more trivial: the Mahayana- “great vehicle” or “great path”- and the Hinayana- “lesser vehicle” or “lesser path.” The decisive matter is whether we attach our life to one or the other vehicle, to a maximum or a minimum of demands upon ourselves.

The division of society into masses and select minorities is, then, not a division into social classes, but into classes of men, and cannot coincide with the hierarchic separation of “upper” and “lower” classes. It is, of course, plain that in those “upper” classes, when and as long as they really are so, there is much more likelihood of finding men who adopt the “great vehicle,” whereas the “lower” classes normally comprise individuals of minus quality. But, strictly speaking, within both these social classes, there are to be found mass and genuine minority. As we shall see, a characteristic of or times is the predominance, even in groups traditionally selective, of the mass and the vulgar. Thus, in the intellectual life, which of its essence requires and presupposes qualification, one can note the progressive triumph of the pseudo-intellectual, unqualified, unqualifiable, and, by their very mental texture, disqualified. Similarly, in the surviving groups of the “nobility”, male and female. On the other hand, it is not rare to find today amongst working men, who before might be taken as the best example of what we are calling “mass”, nobly disciplined minds.

There exist, then, in society, operations, activities, and functions of the most diverse order, which are of their very nature special, and which consequently cannot be properly carried out without special gifts. For example: certain pleasures of an artistic and refined character, or again the functions of government and of political judgement in public affairs. Previously these special activities were exercised by qualified minorities, or at least by those who claimed such qualification. The mass asserted no right to intervene in them; they realised that if they wished to intervene they would necessarily have to acquire those special qualities and cease being mere mass. They recognised their place in a healthy dynamic social system.If we now revert to the facts indicated at the start, they would appear clearly as the heralds of a changed attitude in the mass. They all indicate that the mass has decided to advance to the foreground of social life, to occupy the places, to use the instruments and to enjoy the pleasures hitherto reserved to the few. It is evident, for example, that the places were never intended for the multitude, for their dimensions are too limited, and the crowd continuously overflowing thus manifesting to our eyes and in the clearest manner the new phenomenon: the mass, without ceasing to be mass, is supplanting the minorities.

No one, I believe, will regret that people are to-day enjoying themselves in greater measure and numbers than before, since they have now both the desire and the means of satisfying it. The evil lies in the fact that this decision taken by the masses to assume the activities proper to the minorities is not, and cannot be, manifested solely in the domain of pleasure, but that it is a general feature of our time. Thus – to anticipate what we shall see later – I believe that the political innovations of recent times signifies nothing less than the political domination of the masses. The old democracy was tampered by a generous dose of liberalism and of enthusiasm for law. By serving these principles the individual bound himself to maintain a severe discipline over himself. Under the shelter of liberal principles and the rule of law, minorities could live and act. Democracy and law – life in common under the law – were synonymous. Today we are witnessing the triumphs of a hyperdemocracy in which the mass acts directly, outside the law, imposing its aspirations and its desires by means of material pressure. It is a false interpretation of the new situation to say that the mass has grown tired of politics and handed over the exercise of it to specialised persons. Quite the contrary. That was what happened previously; that was democracy. The mass took it for granted that after all, in spite of their defects and weaknesses, the minorities undertook a little more of public problems than it did itself. Now, on the other hand, the mass believes that it has the right to impose and to give force of law to notions born in the café. I doubt whether there have been other periods of history in which the multitude has come to govern more directly than in our own. That is why I speak of hyperdemocracy.

The same thing is happening in other orders, particularly in the intellectual. I may be mistaken, but the present-day writer, when he takes his pen in hand to treat a subject which he has studied deeply, has to bear in mind that the average reader, who has never concerned himself with this subject, if he reads does so with the view, not of learning something from the writer, but rather, of pronouncing judgement on him when he is not in agreement with the commonplaces that the said reader carries in his head. If the individuals who make up the mass believed themselves specially qualified, it would be a case merely of personal error, not a sociological subversion. The characteristic of the hour is that the commonplace mind, knowing itself to be commonplace, has the assurance to proclaim the rights of the commonplace and to impose them wherever it will. As they say in the United States: “to be different is to be indecent.’ The mass crushes beneath it everything that is different, everything that is excellent, individual, qualified and select. Anybody who is not like everybody, who does not think like everybody, runs the risk of being eliminated. And it is clear, of course, that this “everybody” is not “everybody”. “Everybody was normally the complex unit of the mass and the divergent, specialised minorities. Nowadays, “everybody” is the mass alone.


Author’s Biography
José Ortega y Gasset (1883–1955) was born in Madrid on 9 May 1884. His father, José Ortega y Munilla, administered the newspaper “El Imparcial”, which belonged to the family of his mother, Dolores Gasset. Although his family’s liberal tradition and newspaper activities propelled Ortega into Spanish politics and newspaper activities, he was also drawn into academic studies. He was educated at a Jesuit college and the University of Madrid, where he received his doctorate in philosophy in 1904. Ortega spent the next five years at German universities in Berlin and Leipzig and at the University of Marburg. Appointed professor of metaphysics at the University of Madrid in 1910, he taught there until the outbreak of the Spanish Civil war in 1936. He is considered one of the most distinguished Spanish philosophers of the twentieth century. Among his many books are: Meditations on Quixote (1914), Invertebrate Spain (1921), The theme of our time (1923), Ideas on the novel (1924), The dehumanization of art (1925), What is philosophy? (1929), The revolt of the masses (1929), En torno a Galileo (1933), History as a system (1934), Man and people (1939–40), The origin of philosophy (1943), The idea of principle in Leibnitz and the Evolution of deductive theory (1948). He also wrote hundreds of essays, newspaper and magazine articles, the most important of which are collected in twelve volumes, several of which have been translated into English, French and German. In addition to beinf a philosopher Ortega was also active as a journalist and as a politician. In 1923 he founded the Revista de occidente, a review of books that was instrumental in bringing Spain in touch with Western, and specifically German thought. Ortega’s work as editor and publisher helped to end Spain’s isolation from contemporary western culture. In his hat of politician, Ortega led the republican intellectual opposition under the dictatorship of Primo de Rivera (1923-1936), and he played a role in the overthrow of King Alfonso XIII in 1931. Elected deputy for the province of León in the constituent assembly of the second Spanish republic, he was the leader of a parliamentary group of intellectuals know as La Agrupación al servicio de la república (“In the service of the republic”) and was named civil governor of Madrid. Such a commitment obliged him to leave Spain at the outbreak of the Civil War, and he spent years of exile in Argentina and Europe. He settled in Portugal in 1945 and began to make visits to Spain. In 1948 he returned to Madrid and founded the Institute of Humanities, at which he lectured.
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Note
The present article is the first chapter of the José Ortega y Gasset’s 1929 book The revolt of the masses. Translator unknown. W.W. Norton & Company, New York. 1993 reprint from.First published in 1964. Reissued in 1993.
Citation:
Ortega y Gasset, J. The coming of the masses. PortVitoria, UK, v.10, Jan-Jun, 2015. ISSN 2044-8236, https://portvitoria.com