Neera K. Badhwar e Russell E. Jones
É surpreendente que Aristóteles dedique vinte por cento da Ética a Nicômaco (EN) a uma discussão sobre amizade – mais do que às virtudes de coragem, temperança, generosidade, magnificência, magnanimidade, brandura, graça, veracidade, sagacidade e mortificação apropriada, combinadas; e mais do que o dobro do espaço à justiça ou à virtude intelectual. Isso é um forte contraste com o espaço dedicado hoje em dia à amizade na maioria das obras sobre ética. Talvez isso não nos devesse surpreender: Aristóteles enfatiza corretamente que é da própria natureza dos humanos viver em associação com os outros (Política I.2). “Ninguém escolheria viver sem amigos”, ele nos garante, “nem mesmo se ele tivesse todas as outras coisas boas” (1155a5-6).i Além disso, porque as virtudes são parcialmente constitutivas da mais alta forma de amizade, a amizade baseada no caráter virtuoso, uma discussão sobre esse tipo de amizade envolve uma discussão das virtudes em um contexto que deixa claro como elas nos beneficiam.
Aristóteles chama essa forma mais elevada de amizade, a baseada no caráter dos amigos, de ‘completa’ (teleion). É o caso paradigmático da amizade, o caso central, em cuja referência as amizades incompletas, de utilidade ou prazer, são compreendidas. Por isso, nós nos concentramos no caso central, a fim de esclarecer a explicação de Aristóteles sobre a amizade de maneira mais ampla (Seção I). É uma questão de alguma controvérsia no tocante a quão distantes do caso central as outras formas de amizade divergem, e em que aspectos.ii Sobre a interpretação que adotamos e discutimos a seguir, o que torna as outras formas de amizade incompletas não é que elas não tenham a marca chave da amizade, a boa vontade mutuamente reconhecida. Na verdade, esses amigos desejam coisas boas uns para os outros, e, até o fazem pelo bem do outro e não simplesmente pelo que ganham com o relacionamento. No entanto, essas amizades são incompletas porque a sua base – prazer ou lucro, em vez de bom caráter – é incidental à identidade dos amigos. Embora não o façam plenamente, eles percebem algo do que admiramos no caso central da amizade de caráter [também conhecida como amizade de virtude, amizade de excelência ou amizade perfeita. NT].
O caso central em si levanta várias questões difíceis que discutiremos abaixo. Um diz respeito à base do relacionamento (Seção II). Aristóteles, às vezes, é levado a sustentar que a única coisa que tais amigos precisam para compartilhar uma vida e amar uns aos outros é a virtude. Mas essa visão levanta a questão de por que não podemos amar apenas uma pessoa virtuosa que cruza nosso caminho.iii Além disso, vários textos na EN mostram que no eu amável há mais do que a virtude como tal, e há mais em uma vida compartilhada do que a atividade virtuosa compartilhada como tal.
Outra questão concernente ao caso central decorre do fato de que Aristóteles frequentemente traça uma imagem idealizada de pessoas virtuosas e amizades baseadas na virtude, um quadro que o leva a observar que tais amizades são raras porque a virtude é rara (1156b24-5). Isso confinaria a maioria de nós a formas menores de amizade. Como veremos, no entanto, Aristóteles também costuma pintar um retrato não ideal da pessoa virtuosa e da amizade de caráter [ou de virtude], tecendo essa imagem mais realista com sua imagem idealizada (Seção III). Essa concepção realista, argumentamos, nos permite participar da forma completa de amizade em graus variados, dependendo do grau em que somos virtuosos.
Também discutimos duas implicações importantes do reconhecimento de Aristóteles de amizades de caráter imperfeito (Seção IV). Uma delas é que tais amizades geram a necessidade de virtudes de resposta adequada a essas imperfeições. Mostramos que Aristóteles discute essas virtudes, embora o fato de que ele o faça sem nomeá-las, infelizmente tenha resultado em sua marginalização por [parte de seus] intérpretes. Outra implicação é que a teoria da amizade de Aristóteles pode reconhecer uma amizade conjugal virtuosa na qual os cônjuges têm virtudes e papéis diferentes, mas complementares, como uma amizade entre iguais. O próprio Aristóteles falha em reconhecer isso, mantendo, em vez disso, a ideia de que os maridos virtuosos são naturalmente superiores às esposas virtuosas. Vale observar que o seu erro surge de um relato equivocado da natureza humana, não especificamente de sua teoria da amizade. O resultado de nossa discussão é que, embora o próprio Aristóteles seja responsável por obscurecer certas características positivas de sua teoria da amizade, a sua visão é mais realista e mais plausível do que é às vezes reconhecida, e admite desenvolvimento e adaptação ao mesmo tempo em que permanece completamente aristotélica.
I. A concepção básica de amizade de Aristóteles
A concepção de philia de Aristóteles, geralmente traduzida como amizade, é mais ampla que a nossa, incluindo não apenas nossas relações com amigos ou parceiros em vários empreendimentos, mas também entre pais e filhos, entre irmãos, e entre relacionamentos maritais e eróticos. Envolve pessoas que chamamos de amigos e aquelas que chamamos de amantes, e inclui relacionamentos nos quais o afeto que cada um sente em relação ao outro é naturalmente expresso usando o termo ‘amor’, como nas relações familiares e eróticas, bem como aqueles como parcerias de negócios, em que o carinho é expresso com termos como ‘sentimento amigável’ ou o ‘gostar’. Seguindo Aristóteles, nós nos referimos a todos esses relacionamentos por um termo genérico, amizade, porque existe um núcleo comum a todos eles. De fato, uma pequena investigação revela que os vários termos os quais habitualmente usamos são apenas variações de um tema, e a concepção central de amizade que está em jogo é realmente bastante familiar. O que torna um relacionamento uma amizade é a mútua philēsis, isto é, o afeto ou amor ou gosto que se manifesta no desejo e realização de coisas boas entre si, pelo bem de cada um, e não apenas pelo nosso (1155b31-32). Mas o carinho, o amor ou o gosto podem existir sem amizade: pode-se amar alguém que não tem ideia da existência daquele que a ama, ou que não retribui o amor recebido, enquanto a amizade exige reciprocidade. Há amor não correspondido, mas não há amizade não correspondida. Pode-se também amar o vinho, o dinheiro ou a honra, mas a pessoa deseja isso para o próprio bem, ao passo que, na amizade, cada um deseja isso pelo bem do outro. Ademais, o afeto ou desejo de amizade é ativo, envolve cada amigo tentando trazer coisas boas para o outro, em vez de um mero sentimento ou atitude, o que pode ocorrer a todas as pessoas decentes em todos os lugares. Essa qualidade ativa de amizade não se limita à ação em nome do amigo como benfeitor do beneficiário, embora, é claro, haja um lugar para isso. Muito mais crucialmente, a amizade envolve o tempo gasto juntos em atividades compartilhadas. Os amigos fazem mais do que agir em nome um do outro, pois podemos agir em nome de uma vítima de desastre que nunca encontramos; e o tempo que passam juntos vai além da mera proximidade, pois até as vacas passam tempo juntas no cocho (1170b12-14). Amigos se envolvem uns com os outros em atividades compartilhadas.iv
Dentro desta ampla caracterização, no entanto, há espaço para muita variação. Observe, por exemplo, como diferentes amizades simétricas entre companheiros de idade e status semelhantes são de amizades assimétricas entre pessoas de status diferentes, como pais e filhos, mesmo que continuem sendo caracterizadas pela boa vontade mútua e pelo tempo que passam juntos. Aristóteles explora muitas dessas variações, mas a que mais lhe interessa é a variedade em que se fundamenta uma amizade. Os fundamentos da amizade são, em geral, três: utilidade, prazer e virtude. Além das relações familiares, escolhemos principalmente nossos amigos e, quando escolhemos as poucas pessoas com quem nos engajamos em várias atividades, fazemos isso por um ou mais desses motivos.
Considere-se, primeiro, a utilidade. Muitos de nossos relacionamentos se formam porque cada um de nós pode ser útil ao outro de maneiras específicas. Por exemplo, considere John, que vende vinho para Sally. John é útil para Sally, fornecendo-lhe vinho, enquanto Sally é útil para John, contribuindo para a rentabilidade de sua loja e, portanto, para seu sustento. Observe que, mesmo que a utilidade de cada um para o outro seja o que dá origem à amizade, é natural, em tal amizade, desejar que o outro obtenha vários bens para o próprio bem, e não apenas na medida em que os outros bens obtidos por ele o tornarão mais útil para você.v Então, se John está sendo considerado para um prêmio do Better Business Bureau pelo seu excelente serviço ao cliente, Sally pode desejar que ele o receba, mesmo reconhecendo que tal honra, embora seja um reflexo da utilidade de João para ela (e para outros como ela), dificilmente aumentará essa utilidade. Mesmo assim, a amizade é baseada na utilidade: se John parar de vender vinho, ou se Sally parar de comprar, a amizade se dissolverá.
Outras amizades são baseadas no prazer. Suponha que Sally e Brady gostem de provar vinho, analisá-lo e aprender sobre suas várias propriedades e métodos de produção. Eles podem, então, ter o hábito de provar juntos o vinho que Sally adquire de João. O que fundamenta a amizade deles é esse prazer compartilhado. Novamente, mesmo que seja o prazer compartilhado da degustação de vinhos que dá origem à amizade, é natural que eles desejem bens um para o outro que não tenham relação com sua atividade conjunta. Suponha que Sally queira viajar para visitar sua família. Brady pode coerentemente desejar esse bem para ela, mesmo que isso impeça temporariamente a atividade compartilhada de degustação de vinhos. Mesmo assim, a amizade é baseada no prazer. Talvez se aprofunde com o tempo ou se expanda para abranger outras atividades agradáveis. Mas, se a amizade deles permanecer baseada principalmente no prazer compartilhado da degustação de vinhos, e, se um dos dois perder o interesse por essa atividade, a base para o relacionamento desaparecerá e, assim, a amizade se dissolverá.
Uma maneira pela qual uma amizade pode se aprofundar ao longo do tempo é para aqueles que podem ter começado a passar tempo um com o outro principalmente com base na utilidade ou prazer, para começar a apreciar um ao outro pelas boas qualidades que vão além daquelas que estão envolvidas em suas atividades úteis ou prazerosas. Brady pode ter apreciado Sally pela sua profunda lembrança de fatos enológicos, pelo seu discernimento das sutilezas do sabor e pela sua curiosidade. Todas essas qualidades formam um ótimo parceiro de degustação de vinhos. No entanto, quando passam algum tempo juntos, Brady pode apreciar a generosidade de Sally, a maneira sábia e corajosa como ela lida com circunstâncias difíceis, e sua infalível justiça em suas relações com as pessoas. Isto é, ele pode vir a apreciar qualidades que vão além de fazer de Sally uma boa companheira de degustação de vinho, qualidades que a tornam uma boa pessoa. Se esse reconhecimento do bom caráter for mútuo, e eles desenvolverem afeição um pelo outro por causa disso, a amizade passa a ser fundamentada na virtude.vi Esse embasamento agrega novo valor ao relacionamento. Considerando que antes, Brady e Sally podem ter avançado em seu conhecimento do vinho juntos, encorajando um ao outro em sua atividade conjunta, agora eles podem avançar juntos de maneiras muito mais importantes, encorajando a virtude um no outro. Além disso, ao reconhecer o bom caráter um do outro, cada um deles pode entender melhor o seu próprio. E como esse tipo de amizade se baseia nos traços mais centrais de cada pessoa, ela tenderá a ser duradoura, ameaçada apenas por uma mudança fundamental para um caráter pior, ou por uma longa separação.
Este último tipo de amizade, muitas vezes chamado de amizade de caráter [ou de virtude], é para Aristóteles o caso paradigmático da amizade; assim, ao entender o caso paradigmático, podemos entender melhor os outros. Ele a considera paradigmática não apenas porque está fundamentada em traços centrais, duradouros e importantes das pessoas envolvidas, como também porque a amizade baseada na virtude se revela útil e agradável em adição (1156b7-24). Assim, diferentemente das outras formas, tem o potencial de abranger tudo de bom sobre a amizade. Como é o tipo central de amizade, é teoricamente mais significativo, por isso seguimos a orientação de Aristóteles e concentramos a maior parte de nossa atenção na amizade de caráter.
Em amizades de caráter, distintas das amizades de utilidade e de prazer, Aristóteles diz que gostamos da outra pessoa e desejamos coisas boas para ela por conta dessa pessoa (1156b9-11).vii Aqui ele não quer dizer que é somente em amizades de caráter que um amigo se importa com o outro pelo bem do outro; Aristóteles é enfático ao afirmar que tal carinho é uma marca de amizade em geral, embora, é claro, os relacionamentos possam diferir marcadamente na qualidade e na intensidade desse cuidado.viii Quando ele diferencia as amizades de caráter, dizendo que apenas amigos de caráter (ou talvez no mais alto grau) desejam coisas boas uns para os outros por conta de quem eles realmente são, ele está marcando as boas qualidades de caráter de uma pessoa como mais centrais para quem ela realmente é do que aquelas qualidades – como amar filmes noir ou ser bons em banheiros – que meramente a façam agradável ou útil para sua amiga. O pensamento de Aristóteles consiste no fato de que o que é ser útil ou agradável para outra pessoa depende das necessidades, desejos ou recursos incidentais de cada um. Se duas pessoas são agradáveis uma com a outra, isso se baseia no fato de que seus vários desejos, hobbies, características físicas ou afins respondem uns aos outros de maneira agradável. Contudo, essas são conexões contingentes: quando a necessidade ou recurso desaparece, ou os desejos ou interesses mudam, o fundamento da utilidade ou da amizade prazerosa se dissolve.ix Por outro lado, o bom caráter, segundo Aristóteles, é a compreensão do que um ser humano é por natureza.x Portanto, desenvolver-se em virtude é progredir no sentido de tornar-se cada vez mais plenamente aquilo que de fato somos. Ou, colocando de uma forma um pouco menos paradoxal: na medida em que a pessoa é virtuosa, ela percebe o próprio potencial, como ser humano, como sendo aquilo que é em essência.
Dizer tudo isto é explicar por que desejamos bens para a outra pessoa: porque, no caso de uma amizade de caráter, ela é boa. O mesmo tipo de resposta é apropriado para as outras formas de amizade. Desejamos bens para nossa amiga porque ela é agradável ou porque ela é útil. É crucial reconhecer que esta é a resposta para uma questão específica: Qual é a base do nosso benquerer? Essa base é exatamente o que produz o sentimento amigável que guia e sustenta nosso relacionamento. Sua bondade, sua simpatia ou sua utilidade não servirão como resposta a uma pergunta diferente, relativa ao objeto das nossas querenças. Não estamos desejando que ela esteja bem apenas, e nem sobretudo, para que ela continue a ser útil ou agradável para nós, embora, ao mesmo tempo, não desejamos para ela bens a impeçam de ser útil ou agradável para nós. Mesmo no caso de amizade de caráter, Aristóteles observa que não queremos que um amigo se torne um deus, porque a amizade não poderia sobreviver a tal transformação (1159a5-12). Assim, embora a natureza do relacionamento e o desejo de sua continuidade imponham restrições aos bens que podemos desejar para um amigo, desejamos, no entanto, coisas boas para ele, para seu próprio bem. É por isso que Aristóteles pode definir a própria amizade, e não apenas a amizade de caráter, por esse tipo de desejo, enquanto divide a amizade em três tipos por seus vários fundamentos: ‘As pessoas amam por três coisas [motivos]. . . Mas eles dizem que é preciso desejar coisas boas para um amigo pelo bem do amigo [objeto]. . . Então eles devem ter boa vontade e desejar coisas boas uns para os outros [objeto]. . . por causa de uma ou outra das [três] coisas que dissemos [motivos] ‘(1155b27-1156a5; cf. Retórica 1380b36-1381a2).xii
O que diferencia a amizade de caráter dos outros tipos de amizade é, portanto, uma questão de fundamentos, não de desejar coisas boas para o benefício do outro. E, os fundamentos fazem uma grande diferença na qualidade da amizade. A virtude é mais estável que o prazer ou a utilidade. Ela é mais essencial para quem devemos nos dar, considerando quem somos como seres humanos – ou, para colocar o mesmo ponto de forma ligeiramente diferente, para quem devemos nos dar, considerando quem somos. Mas louvar a amizade de caráter acima de tudo não é repudiar as outras formas, que são amizades genuínas marcadas por uma preocupação pelo bem do amigo.
II. A vida compartilhada: Mais do que vida de virtude compartilhada
Aristóteles sustenta que os amigos de caráter [ou amigos de virtude] amam e desejam o bem um ao outro por causa de suas virtudes. Isto pode ser usado para sugerir que tudo o que determina se duas pessoas desenvolvem e mantêm uma amizade de caráter são suas virtudes. Mas tal visão é problemática, porque parece implicar que, além das restrições de tempo, não há razão para que não possamos amar e ser amigos de qualquer boa pessoa que cruze nosso caminho. Claramente, no entanto, embora não existam barreiras psicológicas para admirar todas as pessoas virtuosas, há muitas barreiras para amar e desejar fazer amizade com todas as pessoas virtuosas. A experiência ensina que simplesmente não é o caso de que todas as pessoas virtuosas possam ser ‘eus mútuos’, como Aristóteles insiste que devem ser para que sejam amigos de caráter.
Uma resposta comum é que, a história compartilhada com um amigo virtuoso é que torna o amigo insubstituível. Todavia, isso ainda pressupõe que, antes que haja uma história compartilhada, qualquer pessoa virtuosa bastará para qualquer outra pessoa virtuosa. Além disso, se a única vertente importante em uma história compartilhada é o caráter virtuoso e as ações virtuosas abstratamente consideradas, pode-se transferir o amor e a amizade para uma pessoa mais virtuosa sem perda. Não faz mais sentido ficar com o velho amigo quando surge uma perspectiva melhor, da mesma forma que ficar com o antigo livro de geografia quando surge um melhor. Todavia, tratar amigos como livros desatualizados parece contrário ao espírito da amizade. Uma concepção plausível de amizade deve, portanto, reconhecer que há mais em uma vida compartilhada do que a atividade virtuosa compartilhada.
Há outro problema com a sugestão de que tudo o que é necessário para a amizade de caráter é a virtude. Como Lawrence Blum coloca, essa visão de amizade é implausivelmente ‘supermoralizada’, porque “o gosto compartilhado e o cuidado (e reconhecimento mútuo destes pelos amigos) e as atividades compartilhadas nas quais eles são expressos…. embora não estejam desvinculados do caráter moral de uma pessoa, também não estão fundamentados nelas”.xiii Essa queixa perde um pouco de sua força quando se reconhece que a concepção de virtude de Aristóteles é muito mais abrangente do que a de muitos filósofos contemporâneos. Para Aristóteles, a virtude é exigida em todas as áreas importantes da vida: nas relações sexuais, no manejo do dinheiro e, até mesmo, nas atividades de comer, beber e conversar. Assim, por exemplo, a inteligência, em oposição à bufonaria e à vulgaridade, é uma virtude nas relações amistosas (1128a1-12), e a phronesis ou sabedoria prática são exigidas tanto para aquelas preocupações que são basicamente relativas a si mesmas quanto para aquelas que são primariamente relativas a outras. Como Martha Nussbaum assinala, uma das distinções do pensamento de Aristóteles está em ver a expressão da excelência humana no cenário aparentemente trivial do cotidiano; então, os seres humanos que amam o outro pela sua excelência vão querer compartilhar mesmo naquilo que é simples e mundano.”xiv Nancy Sherman chega a ponto de dizer que “a força física e um bom nascimento” são virtudes para Aristóteles.xv
Este último, no entanto, é controverso, e nós não precisamos dele para salvar a explicação de Aristóteles da acusação de ser supermoralizada. Mostramos abaixo que uma imagem mais rica e mais plausível da amizade, embora nem sempre reconhecida por comentaristas ou críticos, está implícita no relato de Aristóteles sobre uma vida compartilhada, precisando apenas ser destacada. A atenção às circunstâncias externas e aos traços de personalidade que Aristóteles considera importantes para uma vida compartilhada, mostram o realismo psicológico de seu relato, e explicam por que não podemos ser amigos de qualquer pessoa virtuosa, e, por que os amigos de caráter não são fungíveis.
Aristóteles afirma que, embora os amigos de caráter amem e desejem o bem uns aos outros por causa de suas virtudes, grandes desigualdades de idade (1161b34-35), riqueza ou status (1158b34-1159a4) podem impedir que duas pessoas boas se tornem amigas. Isso ocorre porque os amigos precisam ‘viver juntos’ – isto é, passar tempo juntos em conversas e outras atividades – a fim de ir além do simples sentimento de amizade para a amizade genuína (1170b11-14), e uma grande diferença de idade, riqueza ou status é geralmente uma barreira para passar tempo juntos. A necessidade de atividades e conversas compartilhadas também implica que grandes distâncias tornam difícil, senão impossível, manter a amizade, (1157b10-14) – pelo menos na ausência de sistemas modernos de telecomunicações. Atividades compartilhadas levam tempo, e, assim, a falta de tempo também limita o número de amizades de caráter que podemos ter (1171a1-10).
A alegação de Aristóteles de que grandes desigualdades em idade, riqueza ou status podem impedir que duas pessoas boas compartilhem uma vida sugere que há mais na identidade de um amigo como amigo, e mais na sua ‘desejabilidade’ como amigo do que meras virtudes, consideradas abstratamente. Para passar tempo juntos, os amigos devem sentir prazer um com o outro e nas mesmas coisas (1157b22-24). As pessoas que não desfrutam das mesmas coisas não podem compartilhar conversas e atividades de maneira consistente. Presumivelmente, é por isso que uma grande desigualdade de idade, riqueza ou status, como a que existe entre governante e cidadão, pode impedir a amizade (1158b33-1159a3). Grandes diferenças em riqueza e status geralmente significam uma diferença nos interesses, preocupações e prazeres de duas pessoas. Com a idade, também, os nossos interesses e atividades tendem a mudar, e nem sempre de forma a complementar os interesses e atividades de alguém muito mais jovem. Podemos suportar o que é doloroso por um tempo, mas não continuamente. Fazendo um chiste em relação a seu mentor, Aristóteles insiste que “mesmo ‘a forma do bem’ [de Platão] seria uma companhia insuportável, se fosse constantemente dolorosa” (1158a24-25).xvi Ele faz um ponto semelhante na Ética Eudemiana (EE): um amigo deve ser “não simplesmente bom, mas bom para você, se ele vai ser seu amigo” (1238a3-4; ver também Magna Moralia (MM) 1209b38-1210a6).
À luz dessas e de outras declarações semelhantes, a alegação de John Cooper de que embora um amigo de caráter “espera prazer e vantagem de sua associação com seu amigo”, ele “associa-se a uma pessoa boa por causa de sua bondade”, e não porque proporciona prazer ou vantagem, subestima, desse modo, a importância do prazer e da vantagem na amizade de caráter.xvii As virtudes do amigo virtuoso, como são expressas em suas conversas e ações, devem ser prazerosas para o amigo, a fim de começar a amizade e mantê-la. Por que outra razão A escolhe o B virtuoso como amigo, ao invés de alguma outra pessoa virtuosa da mesma idade, status e riqueza? Além disso, se A é atraído por B porque essa pessoa é boa e é uma companhia prazerosa, ele também deve acreditar, mesmo que apenas tacitamente, que essa pessoa irá inspirá-lo a se tornar uma pessoa melhor e a estar presente nas horas de necessidade, pois tais são as virtudes de amizade. Assim, ele deve estar tacitamente ciente da vantagem de ter B como um amigo. À medida que a sua amizade se desenvolve, ele também deve descobrir que ela fornece a ele uma autoconsciência prazerosa (IX.9) e autoconhecimento (MM 1213a10-26). Se ela não o fizer, a amizade deles não será uma amizade de caráter. Portanto, devemos concluir que, para Aristóteles, quando A escolhe B porque ela é boa, ele a escolhe simultaneamente porque a sua bondade é ao mesmo tempo prazerosa e vantajosa para si.xviii
Aristóteles enfatiza que um amigo de caráter é “aquele que passa tempo e escolhe as mesmas coisas” que o seu amigo (1166a6-7). Isso deixa claro que ele não tem em mente que os amigos escolhem as mesmas coisas simplesmente no sentido mais amplo de que ambos escolhem o que é certo ou virtuoso. Em vez disso, ele quer dizer que eles propositadamente escolhem os mesmos projetos e atividades; eles escolhem agir juntos. Em outras palavras, os amigos de caráter não estão apenas em harmonia ao tomar decisões virtuosas no curso de suas próprias atividades, eles estão em harmonia sobre o envolvimento em (muitas das) mesmas atividades. Assim, um amigo “lamenta e se alegra com seu amigo” (1166a7-8) tanto porque se importa com seu amigo e se identifica com ele, quanto porque, em alguns casos, ele se preocupa com os mesmos projetos que seu amigo, cujo fracasso ou sucesso resulta em sua angústia ou prazer. No IX.6, Aristóteles enfatiza a importância da homonomia ou mesmice da mente sobre questões práticas entre amigos (cf. EE 1241a15-30). Sherman aponta que homonomia é uma extensão da ideia de que os amigos escolham uns aos outros por conta de quem são, de seus caracteres, e, ao fazê-lo, comprometam-se a criar uma vida eudemônica juntos.xix Assim, a sua homonomia pode consistir nos dois amigos decidindo juntos que tipo de presente de casamento comprar para um conhecido ou, para tomar emprestado de Sherman, como responder a alguém que os ofendeu, de modo que qualquer que seja a felicidade ou desapontamento resultante de sua resposta seja compartilhado, assim como a responsabilidade por isso. Esses exemplos ilustram a declaração de Aristóteles de que conviver para os seres humanos é “compartilhar conversa e pensamento”, e não compartilhar o mesmo espaço (1170b12-14). O acordo dos amigos sobre suas vidas juntos também pode – e muitas vezes isso acontece – se estender à adoção de algumas atividades preexistentes, ou à adoção de novas atividades.xx
É esse entrelaçamento de vidas, em toda a sua particularidade, que constitui uma amizade. Uma “história compartilhada”, diz Talbott Brewer, “pode mudar tanto a experiência subjetiva quanto a ontologia objetiva das atividades atuais…. a experiência subjetiva dos companheiros de longa data pode ser dourada (ou manchada) pela presença persistente do passado.”xxi Da mesma forma, os amigos “continuamente improvisam maneiras mutuamente atraentes de conversar e interagir”, ampliando e refinando “uma sensibilidade avaliativa compartilhada – por exemplo, um senso compartilhado do que vale a pena fazer ou dizer, do que é engraçado, do que é mortalmente sério, do que agradavelmente irônico.” São esses “seres e feitos” compartilhados que tornam os amigos insubstituíveis.xxii
Se Aristóteles pode reconhecer a importância de os amigos terem interesses e atividades semelhantes ou complementares, não há nenhuma razão baseada em princípios para que ele não possa reconhecer a importância de os amigos terem traços de personalidade semelhantes ou complementares. Aqui estamos nos aventurando além do texto, mas não contra o mesmo. Faz parte da experiência comum que os traços de personalidade – o senso de humor de uma pessoa, a sua maneira de conversar, o seu estilo de raciocínio e até mesmo o estilo de seu caráter – desempenham um papel importante em estimular e preservar a amizade. Considere, por exemplo, duas pessoas boas que diferem das seguintes maneiras: uma é solitária, a outra gregária e extrovertida; um tem um humor seco, o outro conta histórias engraçadas; um tende a ser lento, sério e inquisitivo, ao lidar com questões cotidianas, e o outro é rápido e intuitivo; um busca situações que exigem, especialmente, coragem física, e o outro situações que exigem generosidade. Eles podem se complementar e se dar bem, descobrindo que suas diferenças enriquecem suas vidas. Como no caso de interesses e atividades, nem todos os traços de personalidade precisam ser compartilhados para os amigos se darem bem, ou para terem a compreensão mútua e a harmonia necessárias para serem “outros eus” um do outro. No entanto, pessoas com traços de personalidade ou estilo de personalidade muito diferentes também podem colidir entre si e se irritar um ao outro se não entenderem de onde o outro está vindo e não conseguirem se comunicar. E não precisa haver nada de racional ou irracional em relação à resposta: ambas as respostas podem ser fatos básicos com causas, mas não razões, nas psicologias das duas pessoas. E assim, se os amigos tentam explicar por que eles se amam, em vez de alguém com características e interesses semelhantes, tudo o que eles podem dizer é que são porque são quem são.xxiii
Em suma, o reconhecimento da virtude de cada um é o reconhecimento da possibilidade de amizade, mas para a possibilidade virar realidade, devemos gostar de passar tempo juntos, e tal gozo requer interesses e traços de personalidade comuns ou complementares. É em uma vida compartilhada que a possibilidade de amizade gradualmente se realiza, à medida que os amigos passam a amar a pessoa que é revelada e constituída pelas atividades e interações virtuosas particulares que compõem a sua amizade.
Essa análise da amizade de caráter é intuitivamente plausível e consistente com o texto. Ele explica o que torna os amigos insubstituíveis um ao outro e também explica por que não consideramos simplesmente qualquer pessoa virtuosa como candidata à amizade. Assim, também fornece uma resposta a uma pergunta diferente: por que devemos ter amigos íntimos para viver a ‘eudemonia’? Essa questão é levantada por Richard Kraut, o qual lamenta o fato de que Aristóteles não explica satisfatoriamente por que não basta, para viver a ‘eudemonia’, agir virtuosamente em relação a outros membros virtuosos de nossa comunidade. Ele pergunta: por que a cooperação ocasional com cada um deles “em um espírito de boa vontade e admiração … não fornece espaço suficiente para atividades virtuosas e uma vida bem vivida?” De acordo com Kraut, a resposta de Aristóteles de que um amigo é outro eu (IX.4), e de que precisamos nos perceber em outro para viver a ‘eudemonia,’ não responde a pergunta, pois não há razão para que “a percepção da atividade virtuosa em concidadãos não seja um substituto adequado para a percepção da virtude em seus amigos”.xxiv Mas Kraut não captura a resposta ou as respostas que Aristóteles fornece, porque ele assume que o ‘eu’ de uma pessoa virtuosa é definido pelas suas virtudes, concebidas abstratamente, e assim toda pessoa virtuosa é um ‘eu’ para todas as outras pessoas virtuosas. Nessa visão, o ‘eu’ virtuoso de A e a atividade virtuosa na situação S, são substituíveis sem perda pelo ‘eu’ virtuoso de B e pela atividade virtuosa na situação S, que, por sua vez, são substituíveis sem perda por C … e assim por diante. No entanto, como argumentamos, o texto não suporta essa interpretação da visão de Aristóteles (e, afirmamos, nem é uma visão que descreve com exatidão a atividade virtuosa real e os ‘eus’ virtuosos). Atividades virtuosas e ‘eus’ virtuosos estão incorporados nas particularidades da vida das pessoas, incluindo seus interesses e traços de personalidade, e os ‘eus’ que os amigos criam em uma vida compartilhada não são substituíveis sem perda por outros ‘eus’.
Evidentemente, a nossa explicação sobre por que escolhemos os amigos e por que eles se tornam insubstituíveis não é a única. Elijah Millgram engenhosamente interpreta Aristóteles como sustentando que amamos apenas as pessoas virtuosas que ‘criamos’, porque somente as nossas criações podem ser ‘outros eus’. Como evidência para essa interpretação, Millgram aponta as muitas passagens nas quais Aristóteles argumenta que nós amamos as nossas produções ou criações porque nos realizamos através delas. É por isso que os pais amam seus filhos (1161b22-29), os artesãos amam seus produtos (1167b33-35) e os poetas amam seus poemas (1168a1-2). Da mesma forma, Millgram argumenta que devemos entender Aristóteles dizendo que amamos os nossos amigos porque, através de nossa influência causal sobre eles, nos realizamos através deles, tornando-os assim nossos ‘outros eus’.
No entanto, isso, não explica o que dá início a uma amizade de caráter, ou seja, por que os amigos de caráter começam a se tornar amigos antes de terem uma influência moral salutar entre si por meio de conversas e atividades conjuntas. A resposta de Millgram é que eles podem ter uma influência tão involuntária uns sobre os outros através de suas ações virtuosas, ou através de “boa vontade espontânea”, mesmo antes de serem amigos. xxvi
O ponto sobre a influência involuntária é certamente verdadeiro, mesmo que o próprio Aristóteles nunca o faça. Mas essa influência não é suficiente para justificar a afirmação de que eles criaram o ‘eu’ um do outro em qualquer sentido, mas sim no sentido mais marginal. Mais importante, pelas razões que demos acima, essa influência mútua não é necessária nem suficiente para a atração recíproca que pode levar ao amor mútuo de amizade. A pode influenciar e ser influenciado por B, C e D até certo ponto sem ser atraído por eles, e A e E podem ser atraídos um pelo outro sem ter qualquer influência um sobre o outro. De fato, Aristóteles argumenta explicitamente que “geralmente a boa vontade se dá por causa de algum tipo de virtude e decência, sempre que uma pessoa parece à outra ser boa ou corajosa ou algo desse tipo” (1167a18-20). A boa vontade torna-se amizade quando perdura e os dois passam a se conhecer (1167a10-12; compare com 1156b25-32). Nenhuma menção aqui ou em outro lugar de que as pessoas têm que ter influenciado um ao outro antes de se tornarem amigos, a fim de se tornarem amigos.
Millgram acha que a visão que se atribui a Aristóteles é desagradável, e com razão. Felizmente, os textos não apoiam a sua interpretação. Os textos dizem que, na ausência de barreiras externas para uma vida compartilhada, tudo o que duas pessoas precisam para se tornar amigas é o reconhecimento da virtude e do prazer um do outro na companhia um do outro, um reconhecimento e prazer os quais lhes dizem que, em uma medida importante, eles já são os outros ‘eus’ um do outro, adequados para compartilhar uma vida juntos. Depois de começarem a passar tempo juntos, eles contribuem, de fato, para criar os ‘eus’ um do outro, moldando as sensibilidades e os interesses um do outro e inspirando um ao outro para se tornarem seres humanos melhores. E isso, como Millgram argumenta, fortalece o seu amor mútuo. Mas o seu amor mútuo precede essa criação recíproca, e não se limita, ao longo da sua amizade, àquelas características do ‘eu’ um do outro que eles ajudaram a criar.
III. A virtude não ideal e a amizade de caráter virtuoso
A afirmação de Aristóteles de que os amigos de caráter virtuoso inspiram uns aos outros a se tornar seres humanos cada vez melhores mostra que ele acredita que uma amizade de caráter não está limitada a pessoas perfeitamente virtuosas, mesmo que ele tenda a se concentrar na amizade dos perfeitamente virtuosos. Como Cooper argumenta que, desde que a base de uma amizade seja estabelecida sobre as qualidades virtuosas dos amigos, a amizade é de caráter, mesmo que ambos os amigos tenham falhas e reconheçam as falhas um do outro.xxvii Na verdade, um dos principais valores da amizade de caráter, como acabamos de salientar, é que nos permite tornar-nos pessoas melhores.xxviii Mas tal visão se encaixa mal com a maneira como Aristóteles é tipicamente entendido quando fala sobre pessoas virtuosas no resto da EN, onde ele parece predisposto a fazê-las perfeitamente virtuosas.
Argumentaremos que, assim como ele apresenta dois retratos de amizade de caráter, ele apresenta dois retratos da pessoa virtuosa: um retrato idealizado e um retrato realista. Começaremos discutindo as amizades de caráter entre pessoas imperfeitamente virtuosas e, então, procederemos a uma discussão sobre pessoas perfeitamente e imperfeitamente virtuosas. Isso nos ajudará a esclarecer tanto sua visão da amizade de caráter quanto sua visão da pessoa virtuosa. O amigo imperfeitamente virtuoso aparece em vários lugares na discussão de Aristóteles sobre amizade. Em VIII.13-14, Aristóteles afirma que dentro de cada um dos três tipos de amizade, pode haver amizades de iguais e desiguais. Ele inclui explicitamente os amigos de caráter nessa generalização, enfatizando que os igualmente bons podem tornar-se amigos uns dos outros e que uma pessoa melhor pode tornar-se amiga de uma pior (1162a34-b1). Assim, amizades de caráter podem existir entre pessoas desigualmente boas .
Em IX.3, Aristóteles discute dois casos de amizade de caráter imperfeito. Primeiro, ele considera se você deve permanecer amigo de uma pessoa virtuosa que mudou para pior. Sua resposta, em resumo, é que, embora seja compreensível para você interromper a amizade, e embora você claramente deva romper a amizade se a maldade de seu amigo for incurável, a sua amizade passada lhe dará uma boa razão – e talvez até mesmo uma obrigação – para tentar redimi-lo. De fato, se você considerar óbvio que deve ajudar a restaurar os bens materiais de seu amigo, é ainda mais óbvio que você deva ajudar a restaurar o caráter de seu amigo, já que o caráter não apenas é mais importante que os bens materiais, como também é mais importante para a amizade de vocês. (1165b19-21). Então, não só é possível ter uma amizade de caráter com alguém que é imperfeitamente virtuoso, mas essa amizade lhe dá motivos para ficar ao lado dele, mesmo quando ele se tornou mau, a fim de resgatar o seu caráter e a sua amizade.
Em segundo lugar, suponha que você seja amigo caráter de alguém, mas você progride grandemente em virtude enquanto o amigo não o faz, de modo que haja uma diferença significativa em seus caracteres. Por acaso a amizade existente lhe dá motivos para manter a amizade, mesmo que você não formasse agora uma nova amizade caráter com essa pessoa? Aristóteles se aturde com essa possibilidade, reconhecendo que você não pode permanecer amigo de alguém de que gosta e que valoriza coisas diferentes de você (1165b26-30), mas também notando que a amizade passada é relevante para como você trata a pessoa agora (31-36). Novamente, o ponto para os nossos propósitos é que Aristóteles não tem em mente o virtuoso perfeito; afinal, para que um progrida muito além do outro, isso significa que ambos estavam longe da virtude ideal no início da amizade. Mas isso não significa que eles não eram amigos por causa do caráter.
Tais casos de virtude desigual, ou de progresso desigual na virtude, servem bem o suficiente para mostrar que Aristóteles admite amizades de caráter imperfeito. Contudo, o caso mais interessante é aquele em que duas pessoas boas progridem juntas em virtude. No final do Livro IX, na sua última palavra na discussão da amizade no NE, Aristóteles nos diz que as pessoas boas se tornam ainda melhores quando se tornam amigas de outras pessoas boas, porque elas se corrigem e são moldadas uma pela outra. 1172a11-13). Este comentário ecoa um aparte anterior em 1170a11-12, onde Aristóteles observa que aqueles que vivem entre pessoas boas recebem uma espécie de ‘treinamento em virtude’. E ele não está lá falando sobre o desenvolvimento da primeira infância, mas sim sobre por que a boa pessoa precisa de amigos. A preocupação que as pessoas boas têm pelo caráter próprio e pelo dos outros se manifesta também na evitação de atividades erradas: ambos desencorajam seus amigos a praticar atividades erradas e ativamente obstruem isso quando necessário (1159b5-7).xxix De fato, na Magna Moralia, Aristóteles (ou um aristotélico) sugere que os amigos virtuosos precisam um do outro para desenvolver o autoconhecimento e a virtude, visto que tendemos a ser cegos para nossas próprias falhas (1213a10-26).xxx
O relato de Aristóteles de amigos imperfeitamente virtuosos levanta a questão de como podemos reconciliá-lo com a discussão da virtude em livros anteriores da EN, onde muitas vezes parece que os virtuosos não têm falhas. Para dar apenas um exemplo, em I.10, Aristóteles admite que as circunstâncias podem desviar, de uma maneira menor ou maior, a felicidade dos virtuosos, mas não a sua virtude. Mesmo no meio de um grande infortúnio, a sua bondade ‘brilha’ (1100b30); eles nunca (1100b34) farão errado, mas sempre (1100b19) o que é certo. Isso se encaixa bem com a afirmação de Aristóteles de que a sabedoria prática está preocupada com tudo o que é bom ou ruim para os seres humanos, está ligada à presença de cada virtude moral, e, por sua vez, à presença de todas as virtudes morais (1144b30-1145a6). Mas se a sabedoria prática é global desta maneira, e as virtudes são unidas ou recíprocas, cada qual apoiando e sendo apoiada pelas outras, não há espaço para qualquer falha ou fragilidade de caráter que possa levar à ruína da pessoa virtuosa. Em suma, a pessoa virtuosa parece ser perfeita, caracteristicamente deliberando bem e escolhendo os meios certos para os fins corretos em todas as áreas da vida humana. Essa habilidade implica na posse de (i) princípios morais corretos; (ii) verdadeiras generalizações empíricas sobre, por exemplo, a melhor maneira de criar bons filhos, a igualdade ou desigualdade de mulheres e homens em suas faculdades intelectuais ou morais, e os tipos de leis e instituições que possam promover ou dificultar o bem comum; e (iii) a capacidade de aplicar esses princípios e generalizações às circunstâncias específicas em questão (1141b8-21).
No entanto, há boas razões para acreditar que ninguém é perfeitamente virtuoso, e o próprio Aristóteles ocasionalmente revela que ele reconhece isso.xxxi Por exemplo, em 1109b14-20, Aristóteles observa que atingir a média em relação à raiva é difícil – tão difícil, na verdade, que os pequenos desvios, embora errados, não são censuráveis. Como o mesmo também é verdade para as outras virtudes, isso sugere que não é de todo incomum que as pessoas virtuosas estejam aquém da perfeição. Aristóteles, inclusive, chega a sugerir que a própria virtude pode tornar alguém propenso a um certo tipo de erro: a generosidade de uma pessoa generosa faz dela um alvo fácil para os injustos, que fazem de tudo para separá-lo de seu dinheiro (1121a1-7). O argumento de Aristóteles aqui não é que a generosidade é inerentemente excessiva – isso contradiz sua própria doutrina da média, sobre a qual uma virtude não pode ser nem excessiva nem deficiente. O seu ponto é que, em algumas circunstâncias, as pessoas injustas podem tirar proveito de uma pessoa generosa, porque o último “não honra o dinheiro”, estando mais preocupado em gastar corretamente do que em não gastar de maneira errada. Talvez o homem generoso considere a possibilidade de que estão se aproveitando dele, mas opta por errar ao lado de ajudar. Ou talvez a pessoa generosa seja inocente sobre os modos dos predadores, porque ele não pode conceber plenamente tais pessoas. De qualquer forma, o erro dele é menor.
Muito mais revelador são as frequentes sugestões de Aristóteles de que a virtude vem em graus: uma pessoa virtuosa pode ser mais ou menos justa, corajosa ou comedida (1173a20-22; ver também 1117b9-11, 1120b9-11, 1123b26-30, 1168a33-35, 1172a10-14). E mais surpreendentemente, Aristóteles declara que um covarde na guerra pode ser generoso com o dinheiro, uma afirmação que aparentemente contradiz sua própria visão de que as virtudes estão unidas (1115a20-22). Presumivelmente, porque a declaração admite uma interpretação alternativa. Uma vez que generosidade implica sabedoria prática e covardia implica uma ausência de sabedoria prática, alguém que é ao mesmo tempo generoso e covarde tem sabedoria prática com relação ao dinheiro, mas não com relação ao perigo físico.xxxi Segue-se, então, que a sabedoria prática e, portanto, a virtude não são globais. Nesta interpretação, é possível que pessoas diferentes sejam praticamente sábias em diferentes domínios de suas vidas, e que as virtudes sejam unidas dentro desses domínios.xxxiv
No restante deste artigo, queremos destacar algumas implicações dessa concepção não ideal do virtuoso. Se até mesmo os melhores indivíduos são falhos, reconhecer essas falhas em nós mesmos e em nossos amigos, e responder apropriadamente, é essencial tanto para o autoaperfeiçoamento quanto para ser um bom amigo. Tais amigos, como veremos, possuem virtudes que Aristóteles discute, mas não nomeia. Além disso, se a virtude não é global, então os amigos de caráter podem se complementar, destacando-se em diferentes arenas. Um caso especialmente interessante que Aristóteles discute é a amizade entre marido e mulher, que ele considera ser uma amizade entre parceiros desiguais, graças a sua suposição de que as mulheres são inerentemente inferiores aos homens. No entanto, se admitirmos essa falsa suposição, então, dada a sua sugestão de que as pessoas podem desenvolver a virtude em diferentes domínios, a amizade conjugal pode ser uma amizade de iguais.
IV. As virtudes de amigos imperfeitamente virtuosos
Uma pessoa virtuosa que é imperfeitamente virtuosa deve, em primeiro lugar, ter um projeto de se tornar uma pessoa melhor. As pessoas que não se importam com o próprio caráter não podem ser virtuosas, não simplesmente porque a virtude pressupõe o cuidado e a tentativa de se tornar virtuoso, mas também porque faz parte de ser (imperfeitamente) virtuoso ter o desejo efetivo de melhorar. No mínimo, então, os amigos virtuosos devem estar abertos ao aperfeiçoamento, e não enganar a si mesmos ou aos seus amigos sobre os seus defeitos, e tampouco serem descarados e desavergonhados para com eles. Alguém que é descarado e desavergonhado sobre as suas falhas de caráter não é virtuoso, mas vicioso, (1128b31-32) – embora isso não significa, Aristóteles é rápido em apontar, que o indivíduo propenso a envergonhar-se de atos vergonhosos seja virtuoso (1128b32- 33).
Outra virtude de indivíduos imperfeitamente virtuosos diz respeito à sua atitude em relação aos seus próprios erros menores. Por exemplo, uma pessoa generosa que se desvia da devida doação será penalizada, “mas de maneira comedida e apropriada” (1121a1-2). Em outras palavras, ele vai sentir algum arrependimento ou vergonha pelos seus fracassos, mas não vai bater em si mesmo. Isso, é claro, também se generaliza para outros fracassos de virtude. Além disso, desde que ele ama o seu amigo da mesma maneira que ele ama a si mesmo (IX.4), um amigo bom e virtuoso não irá, Aristóteles concordaria, bater em seu amigo também. Em vez disso, como um igual ao outro, ele tentará encorajar a bondade de seu amigo sem fazê-lo se sentir diminuído ou humilhado. Por sua vez, ele vai acolher em vez de se ressentir das correções de seu amigo, porque ele quer melhorar e ele confia que seu amigo é uma testemunha confiável e o trata com justiça.xxxv Nesse sentido, o amor de amigos virtuosos também é, em parte, um poder no sentido de reconhecer e extrair a bondade potencial de cada um. O amor deles é, portanto, tanto discernente quanto imaginativo, tanto um respondedor notável quanto um buscador otimista e, também, uma parteira de valor. O espírito de busca de tal amor torna a amizade de caráter generosa e confiante, permitindo a um amigo apostar na realização do potencial de seu amigo e agir na expectativa de sua realização. E o amigo, na medida em que é um amigo, vai retribuir essa confiança e generosidade cumprindo as expectativas do amigo.
Mas e se um amigo virtuoso se tornar vicioso? Como vimos, Aristóteles acha que devemos tentar resgatar o amigo, porque o caráter é importante demais para ser deixado de lado dessa maneira. Um amigo amoroso deve fazer o seu melhor para ajudar o outro a se tornar melhor, e apenas desistir se ele falhar (1165b13-22).
Essas passagens fornecem uma visão mais completa do ‘amor’ que é “uma virtude de amigos” (1159a34-35): o amor que é expresso em fazer o bem ao amigo, desejando-lhe bem por si mesmo, e compartilhando as suas alegrias e tristezas. É revelador que Aristóteles considere essas atitudes como características tanto do amor aos amigos de caráter quanto do amor de mãe pelos seus filhos. E embora ele não diga isso, a disposição de um amigo amoroso para perdoar as falhas de um amigo e ajudá-lo a melhorar, ser leal a ele, a menos que ele tenha se tornado incuravelmente ruim, também é como o amor de uma mãe. Um amigo amoroso é também justo em não aplicar um padrão mais elevado a um amigo do que a si próprio, e está aberto às correções de seu amigo sem ressentimento ou melindre. O que torna essas disposições virtudes é o fato de que elas incorporam um reconhecimento e um entendimento adequado ao fato de que, assim como nós mesmos, os nossos amigos são imperfeitos, mas capazes de melhorar e que, em geral, os amigos devem mais aos amigos do que aos outros. (1160a3-8, 1162a29-33).
Com esse rico retrato de amizades boas, mas imperfeitas, diante de nós, queremos finalmente voltar ao relato de Aristóteles sobre a amizade conjugal. Como a maioria de seus contemporâneos, Aristóteles pensava que as mulheres são inerentemente inferiores aos homens em virtude e intelecto. Isto implica que, mesmo que ambos, esposa e marido, sejam virtuosos e, portanto, compartilhem uma amizade de caráter, eles não podem ter uma amizade de iguais. Nenhuma quantidade de educação ou experiência pode superar os defeitos naturais da mulher e torná-la adequada para a participação na esfera pública ou para assumir a liderança no privado.xxxvi A razão prática defeituosa da esposa virtuosa implica que uma de suas virtudes é ser guiada pelo seu marido (Política 1260a13, 23). O seu defeito seria agravado se ela não pudesse reconhecer isso. O relacionamento de um homem e uma mulher é como uma polis aristocrática: é o homem – o melhor – que governa, mas ele confia à mulher as tarefas que são apropriadas para ela (1160b32-35, 1161a22-25). Se ele tomasse o controle de tudo, transformaria o seu casamento em uma oligarquia, pois tal ação de sua parte inflaria seu próprio valor e negaria o de sua esposa. Em um bom casamento, cada qual tira prazer das virtudes do outro (1162a25-27), mas a superioridade do marido requer que mais coisas boas venham dele (1161a22-25). Aristóteles pensa que o modo de equalizar uma amizade desigual é amar a outra proporcionalmente ao seu valor (1159b1-2). Presumivelmente, então, ele pensa que, em uma amizade de caráter entre esposa e marido, a esposa deve amar mais o marido do que este a ama. Este é o único tipo de igualdade possível em uma virtuosa amizade conjugal.
Há um ar de paradoxo na sugestão de que a esposa ame o marido de acordo com seu valor superior, uma vez que tal amor não é uma devoção cega de cão, mas uma disposição que requer compreensão prática. Dada a opinião de Aristóteles de que até os homens virtuosos são imperfeitos, uma mulher que amasse seu marido pela sua bondade precisaria da capacidade de ver quando as suas decisões e ações são virtuosas e dignas de estima, e quando são erradas e indignas de estima. Mas é difícil ver como alguém com um entendimento defeituoso poderia fazer discriminações tão boas. Se Aristóteles tivesse percebido o quanto do juízo de que as mulheres eram inferiores aos homens em compreensão, resultava do tratamento que a sociedade oferecia a elas, algo que podia ser superado com experiência e educação, ele poderia ter forjado uma concepção mais plausível de amizade conjugal como uma amizade de iguais. Sem a falsa premissa da inerente inferioridade das mulheres, o seu reconhecimento implícito de que a sabedoria e a virtude práticas podem ser específicas de um domínio tê-lo-ia levado a ver que as mulheres desenvolvem sabedoria prática e virtude em diferentes domínios dos homens, porque as suas circunstâncias e experiências são diferentes, e essa diferença não implica em inferioridade. Assim, por causa das oportunidades limitadas das mulheres na Atenas antiga (e até na maioria das sociedades contemporâneas), uma mulher virtuosa em tais sociedades tem muito mais probabilidade de ter as virtudes necessárias para a educação e administração doméstica do que um homem, e um homem virtuoso tem muito mais probabilidade de ter as virtudes necessárias para assuntos públicos do que uma mulher. Essas diferenças, no entanto, não se traduzem em virtudes desiguais em geral. As virtudes e habilidades práticas de um marido virtuoso e de uma esposa virtuosa são complementares, assim como as virtudes e habilidades de amigos não relacionados podem ser complementares. Assim, como os outros amigos, marido e mulher também podem se corrigir e moldar-se mutuamente, tornando-se assim melhores (1172a11-13). Ele pode aprender com ela, por exemplo, o que as crianças precisam e a melhor forma de se envolver com elas, e ela pode aprender com ele que tipos de assuntos são importantes para o bem comum e como pensar sobre os mesmos de uma maneira baseada em princípios.
V. Conclusão
O relato de Aristóteles sobre a amizade, e especialmente sobre a amizade de caráter virtuoso, é ao mesmo tempo rico e plausível, respondendo não apenas à investigação teórica, mas também à experiência real. Em todos os três tipos de amizade, os dois amigos reconhecem os benefícios que derivam de sua amizade e se importam um com o outro pelo bem do outro. Em sua discussão sobre amizade de caráter, Aristóteles fala sobre casos reais em que pessoas imperfeitamente virtuosas chegam à mesa com uma variedade de necessidades, desejos e características. É muito fácil perder esse realismo em meio à teoria idealista de Aristóteles, entretanto ele permanece pertinente em toda a EN, especialmente na discussão de Aristóteles sobre amizade de caráter. Aristóteles reconhece que um caráter virtuoso não é suficiente para uma amizade de caráter; os amigos também precisam de interesses compartilhados ou complementares e traços de personalidade. Isso explica por que nem todas as pessoas virtuosas podem ser amigas, mesmo quando o tempo, a distância e a idade não são obstáculos para uma amizade.
A visão de Aristóteles de que o desenvolvimento da virtude requer experiência e de que uma pessoa virtuosa pode ser mais ou menos justa, corajosa ou comedida, e sua observação de que um covarde na guerra pode ser generoso com dinheiro, sugere que ele reconhece que as pessoas podem ser virtuosas em diferentes graus e em diferentes domínios. Portanto, se deixarmos de lado a sua teoria equivocada sobre a natureza feminina, isso nos permite conceber uma amizade entre os cônjuges os quais, por opção ou restrição social, assumem papéis diferentes, mas complementares, e desenvolvem a virtude em diferentes domínios. No mundo real os amigos de caráter mostram a sua confiabilidade e lealdade uns para com os outros perdoando as falhas mútuas perdoáveis , e ajudando uns aos outros a se tornarem melhores. Eles também mostram a sua confiança um no outro por estarem abertos à correção. Assim, eles exibem virtude em resposta às suas próprias imperfeições, virtudes cuja necessidade é gerada por essas mesmas imperfeições. O seu relacionamento é baseado tanto naquilo que já é admirável em cada um deles, quanto no potencial que eles reconhecem um no outro. Ao se deliciar com o melhor um do outro, ambos também podem ver e realizar mais plenamente o que há de melhor em si mesmos.xxxvii
Notas
i Todas as citações não especificadas de outra forma são do livro EN (Ética a Nicômaco), para as quais seguimos o texto de Bywater e, a menos que indicado de outra forma, as traduções de Russell Jones. Nós nos concentramos no EN, embora a Ética Eudemiana, a Retórica e a Magna Moralia (que provavelmente não é de Aristóteles) contenham discussões importantes sobre a amizade, e, ocasionalmente, apontamos para essas discussões e para o material relacionado na Política.
ii Para uma categorização e discussão úteis das várias posições que os intérpretes tomaram, ver Alexander Nehamas, ‘Filia Aristotélica, Amizade Moderna?’, Oxford Studies in Ancient Philosophy 39 (2010): pp. 213-247 (esp. pp. 219- 228). Doravante, ‘Philia’
iii Este é um problema para qualquer visão que faz com que uma propriedade compartilhada por muitos seja a base do amor. Um exemplo notável é a opinião de David Velleman de que o amor é uma apreciação da capacidade de amar de uma pessoa, de seu núcleo de preocupação reflexiva [‘Love as a Moral Emotion’, Ethics 109 (1999): 338-374]. Embora existam diferenças substanciais entre as opiniões de Velleman e Aristóteles, especialmente sobre quem é digno do amor, sua resposta para a pergunta por que não amamos a todos é estruturalmente semelhante à resposta que propomos para Aristóteles.
iv Aristóteles não é inteiramente uniforme no modo como ele expressa esse conjunto de ideias. Em EN IV.6.1126b16-28, Aristóteles está discutindo o atributo amabilidade, do caráter, mas não tem um nome para ele e, portanto, comenta que é mais como uma amizade (philia). Mas ele é rápido em apontar que não é amizade: amizade é amabilidade junto com afeição (stergein). Em VIII.2, ele acrescenta que, para existir amizade, não basta que haja afeição. Afinal de contas, podemos gostar de qualquer coisa, incluindo até objetos inanimados, mas não gostamos deles em seu próprio benefício – não temos boa vontade (eunoia) em relação a eles. Além disso, Aristóteles insiste, aqui, que, para que a amizade surja, o sentimento de boa vontade deve ser mútuo e reconhecido como tal. Pode-se facilmente sair do VIII.2 com a impressão de que boa vontade e afeição (philēsis) são a mesma coisa, consistindo simplesmente em desejar bem a alguém. Em IX.5, no entanto, Aristóteles distingue a boa vontade da afetividade, com base no fato de que a última, mas não a primeira, envolve esforço, desejo e intimidade (uma concepção ativa de amizade refletida na Retórica 1380b35-1381a1). É plausível ver cada um deles como um quadro mais completo da concepção de amizade de Aristóteles, conforme exigido por cada contexto. Assim, a mais completa expressão do relato básico de amizade de Aristóteles encontra-se no IX. 5 e, nessa perspectiva, que adotamos aqui, a boa vontade mutuamente reconhecida precisa amadurecer em uma relação ativa antes de contar plenamente como amizade.
v Aqui e em todo lugar ignoramos o foco exclusivamente masculino de Aristóteles em sua discussão dos três tipos de amizade.
vi O exemplo de Aristóteles desse tipo de mudança nos fundamentos de uma amizade é um caso de amor entre um homem mais velho e um mais novo que se desenvolve em uma amizade de caráter que perdura mesmo depois que a paixão se desvanece (1157a8-12).
vii Parte do que se segue nesta seção baseia-se em ‘Aristotle on the Forms of Friendship’ (Aristóteles sobre as formas de amizade), The Review of Metaphysics 30 (1977): 619-648, de John M. Cooper. Doravante, ‘Forms of Friendship’. Esta é uma leitura essencial sobre como as formas de amizade se relacionam umas com as outras. A mesma discussão aparece em ‘Aristotle on Friendship’ (Aristóteles sobre a amizade), de Cooper, no [livro] editado por Amelie Oksenberg Rorty (Essays on Aristotle’s Ethics; Ensaios sobre a Ética de Aristóteles) [Berkeley: University of California Press, 1980], pp. 301-340, uma versão integrada e condensada de ‘Aristotle on the Forms of Friendship’ (Aristóteles sobre as formas de amizade) e ‘Friendship and the Good in Aristotle’ (A amizade e o bem em Aristóteles), Philosophical Review 86 (1977): 290-315.
viii Talvez essas diferenças acentuadas expliquem por que Aristóteles às vezes reluta em chamar de ‘amigos’ alguns que, no que parece ser sua versão oficial, devem contar como amigos. Por exemplo, ele observa em 1157a14-16 que as amizades baseadas na utilidade se dissolvem quando os amigos não são mais úteis um para o outro, mostrando que eles não estavam atrás de cada um dos amigos, mas dos amigos lucrativos! (Compare 1167a10-21.) Todavia esse breve comentário parece menos destinado a revisar a descrição oficial do que enfatizar que algumas amizades mal merecem o nome, especialmente em comparação com a amizade do melhor tipo. De qualquer forma, isso não o impede de continuar, na linha seguinte, falando sobre como pessoas ruins podem ser amigas umas das outras com base na utilidade ou no prazer.
ix É por isso que Nehamas rejeita a alegação de que essas ‘filias’ contam como ‘amizades’, recusando-se a traduzir philia como amizade. Veja ‘Philia’ e ‘On Friendship’ (Nova York: Basic Books, 2016), pp. 18-24.
x A ‘natureza’ aqui deve ser entendida num sentido quase avaliativo. A virtude moral e intelectual (sophia) juntas constituem a condição que mais centralmente caracteriza um excelente espécime de ser humano, e assim realiza mais completamente a natureza humana. Naturalmente, a virtude não é ‘natural’ em outro sentido, na medida em que se desenvolve apenas através de longa habituação (virtude moral) ou aprendizagem (sophia). Contraponha o bom caráter neste ponto com boa visão ou a capacidade de digerir azeitonas, ambos os quais vêm naturalmente. (Veja a discussão de Aristóteles em II.1.)
xi Veja ‘Philia’, 224-227 e On Friendship, pp. 18-22, de Nehamas, para esta linha de pensamento.
xii O capítulo que segue imediatamente esta passagem, VIII.3, é sobre esta interpretação para ser entendida como focada nos fundamentos do amor e da boa vontade, ao invés do objeto de amor e boa vontade.
xiii Friendship, Altruism and Morality (Amizade, altruísmo e moralidade) de Lawrence Blum, (London: Routledge & Kegan Paul, 1980), pp. 81, 82.
xiv The Fragility of Goodness (A fragilidade da bondade) de Nussbaum, (Cambridge: Cambridge University Press, 1986), p. 359
xv ‘Aristotle on Friendship and the Shared Life’ (Aristóteles sobre a amizade e a vida compartilhada), Philosophy and Phenomenological Research 47 (1987), de Nancy Sherman: 589-613. Doravante, ‘Aristotle on Friendship and the Shared Life’.
xvi Um empréstimo da futura tradução de Adam Beresford (Penguin). Talvez, no entanto, em vez de uma escavação, o comentário seja uma alusão ao Philebus 21d-e de Platão, onde se argumenta que a sabedoria sem qualquer prazer é algo que nenhum ser humano desejaria (como Broadie sugere Ética a Nicômaco, de Aristóteles, tradução, introdução e comentário de Sarah Broadie e Christopher Rowe). – (Oxford: Oxford University Press, 2002), p. 412).
xvii ‘Formas de Amizade’, 640; e ‘Aristóteles sobre a amizade’, 315; de Cooper.
xviii Para um relato sutilmente diferente, no qual o benefício instrumental para si mesmo serve como uma condição para a bondade final da amizade com o outro, ver ‘Aristotle on the Utility and Choiceworthiness of Friends,’ de Matthew D. Walker, Archiv für Geschichte der Philosophie 96 (2014): 151-182.
xix ‘Aristotle on the Shared Life’, de Sherman, 597-599.
xx Ibid., 598-99.
xxi ‘Virtues We Can Share: Friendship and Aristotelian Ethical Theory’, de Talbott Brewer, Ethics 115 (2005): 721-758, p. 738. Doravante, ‘Virtues We Can Share.’
xxii Ibid. Mais realisticamente, isso os torna em grande parte insubstituíveis. Ver ‘Friends as Ends in Themselves’, de Neera K. Badhwar, Philosophy and Phenomenological Research 48 (1987): 1-23. Contraponha a ênfase de Aristóteles em traços virtuosos e na história compartilhada com Robert Nozick o qual afirma que, apesar de começarmos a amar outra pessoa por causa de suas propriedades, continuamos a amá-la por causa de nossa história compartilhada (Anarchy, State, and Utopia [New York: Basic Books] 1974], 168). Em ‘Love’s Bond’ [(The Examined Life, 1989): 68-86], Nozick traz as propriedades de volta ao cenário.
xxiii Em seu ensaio ‘Of Friendship’, Michel de Montaigne diz: “Se você me pressionar para dizer por que eu o amava, não posso dizer mais do que era porque ele era ele, e eu era eu”. Ver Montaigne,The Complete Works. Essays, traduzido por Donald M. Frame (Stanford: Stanford University Press, 1958), p. 141. Nehamas tem uma excelente discussão sobre essa ideia em On Friendship, 119-21.
xxiv ‘A ética de Aristóteles’, de Kraut, The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Edição de Verão de 2014), Edward N. Zalta (org.), URL = http://plato.stanford.edu/archives/sum2014/entries/aristotle-ethics/
xxv ‘Aristotle on Making Other Selves’, de Elijah Millgram, Canadian Journal of Philosophy 17 (1987): 361-376.
xxvi Ibid., p. 372
xxvii ‘Forms of Friendship,’ 626-629, and ‘Aristotle on Friendship Formas de Amizade’, 305-307, de Cooper.
xxviii Veja também ‘Virtudes We Can Share’ de Brewer, e ‘Aristotle on the Shared Life’, de Sherman.
xxix Esta concepção do melhor tipo de amizade, contra o pano de fundo da concepção de virtude e bem-estar de Aristóteles (eudaimonia), evita o tipo de preocupações que outras concepções de amizade, virtude e bem-estar suscitam, a preocupação de que as demandas da amizade podem e muitas vezes entram em conflito com as demandas mais amplas da moralidade. Ver ‘Friendship’, de C.S. Lewis, em The Four Loves (Orlando: Harcourt, Brace, Johanovich, 1960): 87-127, às 115 e segs; e ‘On Friendship’, de Nehamas, cap. 6. Dean Cocking e Jeanette Kennett (‘Friendship and Moral Danger’, The Journal of Philosophy 97 (2000): 278-296, p. 279) vão ainda mais longe quando argumentam que parte do valor da amizade é que ‘pode levar nos desencaminhar’.
xxx Cooper tem uma boa discussão sobre isso em ‘Friendship and the Good in Aristotle’, The Philosophical Review 86 (1977): 290-315, e ‘Aristotle on Friendship,’ (1980), 318-23. Cooper contrasta essa passagem com EN 1170b1-14, na qual Aristóteles argumenta que as pessoas virtuosas precisam de amigos virtuosos porque a consciência de seu caráter e ações é agradável.
xxxi Para argumentos nesse sentido, ver ‘Aristotle’s Fallible Phronimos’, de Shane Drefcinski, Ancient Philosophy 16 (1996): 139–54; ‘Como as pessoas boas fazem coisas ruins: Aristóteles sobre os erros dos virtuosos’, de Howard Curzer, Oxford Studies in Ancient Philosophy 28 (2005): 233–56. Nós advertimos, no entanto, que ambos os autores tendem a reivindicar mais evidências do que está claramente lá. Para dois exemplos, considere 1134a17-23 e 1132a2-4. Curzer (p. 239-240) explicitamente mantém, e Drefcinski (p. 145) sugere, que 1134a17-23 descreve um homem virtuoso que estranhamente rouba ou comete adultério. Mas tudo o que Aristóteles diz aqui é que alguém que não é injusto pode fazer tais atos injustos. Os justos e os injustos não esgotam os tipos de caráter; além destes, há o contido e o acrático, ou seja, aqueles que estão em conflito, mas autocontrolados (o contido) e aqueles que estão em conflito e são fracos (o acrático). Aristóteles pode especialmente ter em mente o acrático nesta passagem. Da mesma forma, Drefcinski (p. 143-144) e Curzer (p. 239-240) interpretam a afirmação de Aristóteles em 1132a2-4 de que a lei se aplica imparcialmente a pessoas ‘decentes’ e ‘básicas’ quando fazem algo errado ao dizer que o virtuoso, às vezes, pode fazer algo errado. Aristóteles em algum momento usa esses termos para se referir a pessoas boas e más, respectivamente. Mas, como Adam Beresford sugeriu para nós, aqui eles se referem mais provavelmente às classes sociais, às pessoas bem educadas e às pessoas comuns, respectivamente. Se assim for, então o argumento de Aristóteles é que a lei não respeita a classe. Portanto, essas passagens não fornecem exemplos claros de ações erradas de pessoas boas.
xxxii O ponto é largamente repetido em 1126a31-b4, embora logo após (em b7-9) ele pareça sustentar que pequenos desvios são censuráveis em um grau pequeno, ao invés de não serem. Talvez ele queira dizer que a censura é proporcional ao afastamento da média, embora algum (vago) grau limiar de afastamento deva ocorrer antes que qualquer culpa possa ser atribuída.
xxxiii Outras possíveis interpretações são discutidas e rejeitadas em ‘Reasoning about Wrong Reasons, No Reasons, and Reasons of Virtue’, de Neera K. Badhwar, em A Filosofia e Psicologia do Caráter e Felicidade, ed. por Nancy Snow e Franco V. Trivigno (Nova York: Routledge, 2014), pp. 35-53. [No entanto, Badhwar agora percebe que, como Drefcinski e Curzer, ela não conseguiu interpretações alternativas de 1134a17-23 e 1132a2-4 (ver nota de rodapé 31 acima), bem como de uma passagem em Política.]
xxxiv A possibilidade de sabedoria prática específica de domínio e a unidade de virtude dentro de domínios é defendida em ‘The Limited Unity of Virtue’, de Neera K. Badhwar, Nous, 30 (1996): 306-329 e, com revisões, em Well- being: Happiness in a Worthwhile Life (Nova York: Oxford University Press, 2014), cap. 6.
xxxv Isto está implícito em 1157a22-24, onde Aristóteles diz que os amigos de caráter [admirável] confiam uns nos outros para serem justos e tudo o mais que bons amigos deveriam ser.
xxxvi Essa visão é desconfortável com a importância que Aristóteles atribui à educação moral inicial, uma tarefa que é em grande parte confiada às mulheres. Se as mulheres não realizassem bem essa tarefa, os homens não cresceriam para serem capazes de promover o bem da cidade. Veja a excelente discussão de Nancy Sherman sobre este assunto em The Fabric of Character (O tecido do caráter) (Oxford: Clarendon Press, 1989), pp. 153-55.
xxxvii Agradecemos a Karen Nielson e a um grupo de colegas da Western University pela discussão de uma apresentação inicial de algumas das ideias deste ensaio; a Adam Beresford por conversas úteis sobre vários detalhes importantes; e a Christopher Grau e Aaron Smuts pelos comentários no texto completo.
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Notas adicionais. Na ocasião que este ensaio foi publicado, Neera K. Badhwar era professora da Universidade de Oklahoma, e Russel E. Jones da Universidade de Harvard. Neera K. Badhwar é autora do livro Well-Being: Happiness in a Worthwhile Life , publicado em 2014
Fonte: O presente ensaio foi publicado em: https://www.researchgate.net/publication/311985506_Aristotle_on_the_Love_of_Friends
Tradução: Jo Pires-O’Brien (UK); Revisão: Débora Finamore (Brasil).