De onde surgiram as línguas europeias?

Joaquina Pires-O’Brien

A ligação asiática
Até pouco mais de dois séculos atrás se pensava que as línguas europeias modernas e antigas haviam se originado na própria Europa. O que mudou tal visão eurocêntrica foi a descoberta, anunciada em 1786 na Sociedade Asiática de Bengala, de que o sânscrito, a língua empregada nos textos védicos sagrados e na legislação hindu tinha uma origem comum com o grego e latim. O descobridor, Sir William Jones, era um juiz do supremo tribunal da Índia. Jones era também um especialista no persa falado pelos reis, e ao chegar a Calcutá, ele estudou com afinco o sânscrito antigo e seus derivativos modernos como o hindi e o urdu. Após a descoberta de Jones, muitas outras conexões foram descobertas entre as línguas europeias modernas e antigas e as línguas do subcontinente Indiano (Índia e Paquistão). O linguista Thomas Young (1773-1829), o mesmo que havia colaborado com o colega francês Jean-François Champollion (1790-1832) na descodificação dos hieróglifos egípcios, deu o nome de indo-europeu à língua mãe das línguas europeias mais o sânscrito e seus derivativos.

Um dos primeiros filólogos a confirmar a descoberta de Jones foi o alemão Jacob Grimm (1785-1863), um dos irmãos Grimm que compilaram os contos do folclore germânico. Para os seus estudos comparativos Grimm optou por palavras que contêm uma pesada conotação cultural, como por exemplo, a palavra rei (e rainha). Rei é raj em sânscrito, rex em latim, ri no irlandês antigo, roi em Francês, rey em Espanhol e royal em Inglês. A palavra homem é outro exemplo, que tanto em inglês quanto em português assemelha-se ao cognato manu-s do sânscrito, o qual veio do indo-europeu manus ou monus. No glossário sânscrito a palavra manu significa literalmente ‘o contemplador de estrelas’ ou ‘a criatura pensante’. A mesma palavra possui cognata tanto dentro quando fora do indo-europeu. O poeta brasileiro Olavo Bilac (1865-1918) mostra, inadvertidamente, a universalidade do interesse humano pelo firmamento, em seu poema Via Láctea que mostramos em PoetryCafé, nesta edição de PortVitoria.

Até o final da era vitoriana, enquanto certos linguistas procuraram compreender melhor o sânscrito, outros se ocupavam em descobrir o local na Europa onde o indo-europeu havia se fixado originalmente. O sânscrito dos textos sagrados hindus é bastante antigo, sendo conhecido como sânscrito-védico, para distinguir daquele mais recente utilizado nos textos legais. Os Vedas, cujo nome significa conhecimento ou sabedoria, formam os textos sagrados hindus, sendo o mais antigo o Rig Veda. Os autores desses últimos, a elite religiosa formada pelos brâmanes designava-se arianos, palavra derivada de arya, que significa nobre ou senhor. Como os arianos do Rig Veda viviam no leste do Irã na direção do Afeganistão-Paquistão-Índia, o termo ariano só é correto como referência ao ramo indo-iraniano do indo-europeu.

A influência do movimento romântico
O movimento romântico dos séculos dezoito e dezenove, que preconizava o retorno aos valores autênticos ligados à natureza, dentre os quais o conceito de pátria (homeland, no inglês), atrelou mirabolantes extrapolações de cunho nacionalista às descobertas sobre o indo-europeu. Em 1916 Madison Grant, um antropólogo americano que era favorável à ideia eugenista de higiene racial, publicou um livro sugerindo que tais tribos germânicas primitivas seriam os caucasianos puros, uma raça superior formada por indivíduos altos, de cabelos loiros e olhos azuis, que descendiam dos Arianos. Seu livro era um alerta racista para a deterioração racial do povo americano devido à imigração de poloneses, tchecos, italianos e judeus. As ideias de Madison Grant agravaram o nacionalismo germânico que o partido do Nacional Socialismo (Nazismo) adotou, incluindo o antissemitismo; e o resto é história. Entretanto, o conceito de ‘raça’ que o movimento Romântico sublinhou não se encaixa nas afirmações científicas devido à falta de barreiras separatórias. Além de a chamada raça ariana ser uma ficção, a chamada raça caucasiana é bastante diversa, apresentando cor de pele que varia desde a mais clara até a mais escura. Dessa forma, a sugestão de que os povos germânicos tinham qualquer associação com a chamada raça ariana não só é desprovida de lógica mas é também anticientífica.

O proto-indoeuropeu
Por volta de 1900, alguns linguistas históricos propuseram que as relações naturais dentro das línguas europeias sugeriam a existência de uma língua mãe antecedente àquela descoberta por Jones, que deu origem às línguas da Índia continental (Índia e Paquistão) e da Europa. Tal língua foi designada proto-indoeuropeu (PIE).

A próxima parte do quebra-cabeça dos linguistas históricos foi encontrar o local onde o PIE se originou. Inicialmente os linguistas se mostraram céticos com relação à possibilidade de encontrar qualquer indício palpável sobre o PIE. O que dissolveu tal ceticismo foi o legado do linguista Joseph Harold Greenberg (1915-2001), um estudioso das línguas da África, das Américas e da Austrália bem como de outras partes do mundo.

Inicialmente Greenberg estabeleceu os seguintes princípios básicos da classificação genética das línguas: i) exclusão de aspectos tipológicos (propriedades puramente de forma ou significado); ii) exclusão de evidências não linguísticas; iii) comparação multilateral (a comparação simultânea de todas as línguas e formas relativas à área estudada). Na década de 1950, Greenberg modificou a linguística tipológica ao introduzir a importância das similaridades linguísticas, quando o normal era basear-se em dissimilaridades. Finalmente, um artigo seu sobre universais linguísticos não só alterou o curso da tipologia linguística mas também influenciou estudos que mais tarde iriam mudar todo o paradigma das ciências sociais.

Teorias sobre o berço geográfico do proto-indoeuropeu
Existem duas teorias sobre o berço geográfico do Proto-indoeuropeu. A primeira teoria é a da Anatólia, defendida especialmente pelo arqueólogo Sir Colin Renfrew, a qual afirma que o indo-hitita (uma língua pré-PIE) era falado pelos agricultores ao sul e oeste da Anatólia (atual Turquia), nos locais dos sítios arqueológicos como os Çatal Höyük, datados de 7.000 a.C. Eles teriam se dispersado pela Europa e Ásia a partir de 7.000 a.C., logo após o início da agricultura na região do Crescente Fértil (que inclui o vale do Nilo, a planície do Tigre e do Eufrates e pela faixa mediterrânea que os liga entre si).

A segunda teoria, conhecida como ‘Kurgan’ (palavra russa que significa túmulo), afirma que o PIE era originalmente a língua da cultura kurgan, formada por pastores que a partir de 5800 a.C. habitaram as estepes pônticas, assim chamadas porque o local era conhecido pelos antigos gregos como ‘Pontus Euxinus’, que significa local do Mar Euxinus, como o Mar Negro era chamado. Após adquirirem o hábito da montaria eles disseminaram o PIE entre 4000 e 2000 a.C., quando migraram em levas em suas carruagens puxadas por cavalos, para o sul, na direção do vale do Indu (atual Paquistão) e para o oeste, na direção da Europa.

As evidências
Com base em evidência linguística preservada nos fragmentos de escritos do registro arqueológico nas línguas hitita, grego Miceniano e Alemão arcaico, mais de mil e quinhentos radicais do PIE já foram reconstituídos pelos linguistas. Trata-se de um substancial vocabulário que permite reconstituir valores, relações familiares, crenças religiosas e outras preocupações de seus falantes. Estudos comparativos das línguas filhas permitiram que os linguistas reconstituíssem o PIE bem como as famílias linguísticas que derivaram do mesmo, como o Proto-Germânico falado ao Norte da Europa por volta do primeiro milênio a.C.

Um excelente resumo do processo de descoberta do PIE, apresentando as evidências obtidas pelos mais diversos grupos de pesquisas, encontra-se no livro The Horse the Wheel and Language: How Bronze-age Riders from the Eurasian Steppes Shaped the Modern World (O cavalo, a roda e a língua: como os cavaleiros das estepes eurasianas da idade do bronze fizeram o mundo moderno), de David W. Anthony, publicado em 2007 pela Princeton University Press. (Ver a resenha do livro de Anthony nesta edição de PortVitoria). Anthony é professor de antropologia no Harwick College, no estado de Nova Iorque, e também conduziu diversas pesquisas na Ucrânia, Rússia e Kazaquistão. Seu livro é uma excelente síntese das evidências existentes sobre o PIE e as culturas associadas ao mesmo, reorganizadas em tabelas e ilustrações comparativas. Anthony consegue mostrar que arqueologia não é apenas sobre ossos e fragmentos de objetos, mas também sobre as centenas de inscrições que precisam ser decifradas, catalogadas e comparadas. Línguas mortas são recriadas contrastando as inscrições preservadas no registro arqueológico com outras informações antropológicas-arqueológicas bem como com os ‘fósseis’ preservados em línguas vivas – as formas ‘irregulares’ dessas últimas.

Recapitulando, de acordo com a teoria Kurgan, os primeiros falantes de PIE eram pastores neolíticos pioneiros, que por volta de 5.800 a.C., se assentaram e ocuparam as estepes pônticas eurasianas. Aos poucos a organização social desses pioneiros se tornou mais complexa e sua cultura prosperou. O vocabulário reconstituído do PIE mostra que eles sabiam transformar a forragem vegetal em tecidos, tendas e roupas, bem como produzir queijo e iogurte. Eles também sabiam fazer poemas e usavam os mesmos como uma forma de moeda. Após terem desenvolvido o hábito de montar o cavalo adquiriram a roda e a carruagem coberta, e com essa última criaram um corredor de comunicação com o resto do mundo civilizado. Por volta de 4.200 a.C., eles penetraram na Europa, embora em seu trajeto eles exterminaram os agricultores do vale do Danúbio, os habitantes da Europa Velha.

Crítica às teorias
A teoria da Anatólia, de Sir Colin Renfrew, ligou a expansão da fronteira agrícola à expansão da língua PIE. Segundo Anthony o problema desta teoria é que ela exige que a primeira separação entre o progenitor indo-hitita e o PIE tenha ocorrido entre 6.700 e 6.500 a.C., quando os agricultores da Anatólia teriam migrado para a Grécia. Entretanto, as primeiras carruagens da Europa só aparecem no registro arqueológico por volta de 3500 a.C. Outro problema da teoria de Sir Colin Renfrew é que nessa época, a família da língua indo-europeia deveria ser bem mais rica e mais ramificada, pois já contaria com três mil anos de idade.

Ainda segundo Anthony a teoria Kurgan é compatível com as datações das línguas derivadas do PIE. A última língua do PIE é que o proto-anatoliano, da Anatólia Central, a língua que deu origem ao hitita tenha sido a última língua do PIE. O hitita, língua mais ou menos da mesma idade do grego, apareceu bem depois da data prevista na teoria de Sir Colin Renfrew. Os hititas ocupavam a região em 1.900 a.C. e seu império surgiu três séculos depois, entre 1650 e 1600 a.C.

Conforme sublinhado no livro de Anthony, o cavalo teve um papel central no desenvolvimento da civilização moderna, não só como meio de transporte mas também pela vantagem militar das carruagens a cavalo. É interessante lembrar que também na Roma antiga o cavalo teve um papel marcante na estratificação social, onde os cidadãos eram separados em cavaleiros e plebeus. Os cavaleiros deram origem aos patrícios enquanto que os plebeus faziam parte da massa popular ou plebe. Na militarização do império Romano essa estratificação foi mantida, com os patrícios tornando-se oficiais e os plebeus ocupando os postos militares inferiores.

As doze ramificações do indo-europeu
Retornando ao tema do PIE, as estepes pônticas onde este se originou foram o crisol da Civilização Ocidental. Entre 2.400 e 2.200 a.C. o PIE deixou de existir, tendo deixado pelo menos doze ramos, classificados com base nas suas escritas. São eles: anatoliano, indo-iraniano, grego, frígio, itálico, celta, germânico, armênio, tocariano, eslávico, báltico e o albanês.

Dos doze ramos acima, pelo menos três apresentam afinidade com o grego: o indo-iraniano, o frígio e o armênio. O ramo itálico separou-se em dois, o latino-faliscano e o osco-umbriano, cada um dos quais se separaram em dois grupos. O latim originou o romeno, o reto-romance, o Italiano, o francês, o provençal, o catalão, o espanhol e o português. O ramo celta teve também duas sub-ramificações, o goidélico ou gaélico, que deu origem ao gálico escocês, gálico irlandês e manês, e, o ‘bretânico’, que deu origem ao galês, cornualês, bretão e galês. O ramo germânico teve três sub-ramificações que continuaram a se subdividir, dando origem ao norueguês, sueco, Inglês, neerlandês e a diversas outras línguas.

Conclusão
Na busca da resposta à pergunta contida no título deste artigo aprendemos outra lição: a história universal não é feita de fronteiras políticas mas de sistemas mundiais. Os doze ramos do PIE não deram só as línguas europeias (embora ainda não se saiba ao certo as origens do basco, do finlandês, do estônio e do magiar ou húngaro) mas também muitas línguas do Irã, Paquistão e Índia. Dos seis bilhões de pessoas do nosso planeta mais de quatro bilhões falam línguas que descenderam do proto-indo-europeu.

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Citação:

Pires-O’Brien, J. De onde surgiram as línguas europeias? PortVitoria, UK, v. 1, Jul-Dec, 2011. ISSN 2044-8236, https://portvitoria.com/