Iluminados e enriquecidos: devemos nossa prosperidade moderna às ideias do Iluminismo
Joel Mokyr
O Iluminismo foi uma Boa Coisa? À primeira vista a pergunta soa quase como um sacrilégio. Afinal de contas, o Iluminismo do século dezoito nos ensinou a ser democráticos e a acreditar em direitos humanos, tolerância, liberdade de expressão e muitos outros valores que ainda são reverenciados, embora nem sempre acatados, pelas sociedades modernas. Por outro lado, os historiadores questionam se o Iluminismo levou de fato à confraternização e à igualdade (naturalmente que não), e mesmo a liberdade, o seu terceiro objetivo, foi obtida apenas de forma parcial e tardiamente. Algumas pessoas até sugeriram que as suas idéias de ‘aperfeiçoamento’ humano podem ter tido consequências ruins não intencionadas tais como o totalitarismo, o racismo e o colonialismo do século vinte.
Ainda assim, o debate obscureceu o resultado mais robusto e irreversível do Iluminismo: ele nos tornou ricos. Hoje em dia já é um clichê notar que a vida das pessoas do século vinte e um chega a ser melhor do que a dos reis de três séculos atrás. Em milhares de coisas pequenas e grandes, a vida material de hoje é incomensuravelmente melhor do que antes. Somos mais felizes? Quem sabe? Somos mais esclarecidos? Possivelmente. Mas, temos mais saúde e conforto? É óbvio que sim. E sem querer soar nem arrogante em relação à progressão da história, nem demasiadamente triunfalista em apresentar a cultura Ocidental como a realização maior do desenvolvimento humano (visão que a maioria dos historiadores rotulam como whiggish1), eu gostaria de sugerir que o que gerou toda essa prosperidade foi o crescimento de certas ideias no século que sucedeu à Revolução Gloriosa Britânica2 de 1688.
De alguma forma essa importante conexão passou despercebida pelos diversos historiadores que escreveram sobre o surgimento do mundo moderno e temas afins. A maior parte dos historiadores da ciência econômica não focalizou os fatores intelectuais mas sim os econômicos, creditando recursos, preços, investimentos, império ou comércio com o desencadeamento da Revolução Industrial, que por sua vez levou ao período de crescimento econômico continuado no qual ainda nos encontramos. Embora a atribuição de mudança econômica puramente a causas econômicas à exclusão de ideias seja uma parte do pacote do materialismo histórico, teoria geralmente associada ao Marxismo, economistas favoráveis ao livre mercado frequentemente fizeram a mesma coisa quando descreveram os efeitos da ideologia como sendo ‘um sorriso falso sem um gato’3. Um dos poucos que discordaram foi John Maynard Keynes, que escreveu num trecho famoso que ‘o poder dos interesses próprios é vastamente exagerado em comparação como a invasão gradual das ideias.’ Não há exemplo melhor do que as ideias do Iluminismo, que a meu ver, criaram a prosperidade que hoje em dia usufruímos.
Os escritores e pensadores cuja produção intelectual constitui aquilo que chamamos de Iluminismo eram um bando heterogêneo de filósofos, cientistas, matemáticos, físicos e outros intelectuais. Embora eles divergissem em muitos tópicos, a maioria concordava que a melhoria da condição humana era possível e desejável. Isso soa banal para nós, mas vale lembrar que por volta de 1700, poucas pessoas deste planeta tinham muitos motivos para crer que as suas vidas poderiam melhorar. Para a maioria, a vida não era muito menos curta, abrutalhada e ruim do que havia sido mil anos atrás. As violentas guerras religiosas que a Europa vinha sofrendo há muitas décadas não haviam melhorado as coisas, e embora tivesse havido alguns avanços—como o aumento na disponibilidade de livros e o surgimento de um punhado de novos produtos importados como o chá e o açúcar—o impacto dos mesmos na qualidade de vida geral permanecia marginal. Um britânico nascido em 1700 podia esperar viver cerca de 35 anos, passando os seus dias trabalhando no pesado e as suas noites nalguma morada fria, cheia de gente e infestada de pestes diversas.
Contra esse sombrio pano de fundo, os filósofos do Iluminismo desenvolveram a crença no potencial daquilo que eles chamavam de ‘conhecimento útil’ para o avanço da situação da humanidade. O proponente mais influente dessa crença foi o filósofo inglês Francis Bacon, que enfatizou que o conhecimento do ambiente físico era a chave do progresso material: ‘só se pode vencer a natureza obedecendo-lhe,’ ele escreveu em 1620 no seu livro Novo Órgão.’ A agenda daquilo que um dia chamaríamos de ‘pesquisa e desenvolvimento’ começou a se expandir apenas do interesse do pesquisador—ou do seu desejo de ilustrar a sabedoria do Criador—e incluía a esperança de um dia o seu conhecimento pudesse ser colocado em uso. Em 1671, um dos cientistas mais eminentes da época, Robert Boyle, escreveu que ‘existem poucas verdades físicas relevantes que não estejam se emparelhando com invenções lucrativas, e que não possam através da diligência e habilidade humana, transformar-se numa geratriz de diversas coisas úteis.’ A ideia se espalhou para outros países. O grande cientista francês René Réaumur, matemático de formação, passou uma boa parte da sua carreira pesquisando coisas mundanas tais como aço, papel e insetos, na esperança de vir a empregar tal conhecimento na indústria e na agricultura.
A fim de criar o progresso que anteviam—para resolver os problemas pragmáticos da indústria, da agricultura, da medicina, e da navegação—os cientistas europeus perceberam que teriam de acumular uma sólida base de conhecimentos, o que requereria, acima de tudo, comunicações confiáveis. Eles produziram enciclopédias, compêndios, dicionários e livros técnicos—os ‘buscadores’ da sua época—onde o conhecimento útil era organizado, catalogado, classificado e tornado o mais acessível possível. Uma dessas obras é a Enciclopédia de Diderot, talvez o documento iluminista por excelência. A idade do Iluminismo foi também a idade da ‘República da Ciência’, uma comunidade informal e transnacional, onde os cientistas europeus faziam uso de uma rede epistolar para ler, criticar, traduzir e muitas vezes plagiar, ideias e trabalhos uns dos outros. A nacionalidade parecia ter pouca importância em comparação com o objetivo compartilhado do progresso humano. As ‘ciências’, disse o famoso químico Antoine Lavoisier, ‘nunca fazem guerra’. Como muitas das ideias altivas do século dezoito, essa noção eventualmente provou ser, até certo ponto, ilusória.
Ainda assim, a ideia do progresso material através da expansão do conhecimento útil—aquilo que os historiadores de hoje chamam de ‘o programa Baconiano’—aos poucos criou raízes. A Royal Society, fundada em Londres em 1660, era baseada explicitamente nas ideias de Bacon. O seu declarado objetivo era ‘aprimorar o conhecimento das coisas naturais, e de todas as artes úteis, manufaturas, práticas mecânicas, engenhos, e invenções decorrentes de experimentos’. Entretanto, o movimento teve um forte empuxo durante o século dezoito, quando organizações privadas foram criadas em toda a Grã-Bretanha para servir de ponte entre os que sabiam coisas e os que construíam coisas. Um exemplo foi a estranhamente denominada Sociedade Lunar de Birmingham, onde os cientistas de maior calibre reuniam-se regularmente com empresários famosos, incluindo o maior engenheiro da época, James Watt, e seu parceiro Matthew Boulton. Outro exemplo foi a Sociedade Filosófica e Literária de Manchester, cujos membros incluíam alguns dos homens de negócios mais proeminentes da crescente indústria da tecelagem de algodão britânica.
Mais e mais fabricantes procuraram o apoio de cientistas e matemáticos para resolver estrangulamentos técnicos e aumentar a produtividade. O registro deixado dessas consultorias era misto, quase sempre um consultor informava à firma algo que a mesma já sabia ou que poderia ter descoberto de uma forma menos cara. Mas, o interessante é a maneira como a ideia de que a ciência poderia ajudar a indústria, se espalhou por volta de 1780.
O programa Baconiano provou ser extraordinariamente bem sucedido na Grã-Bretanha, e por essa razão a mesma liderou o mundo na inovação industrial. Havia razões de sobra para isso, uma das não menos importantes sendo a união entre a Inglaterra e a Escócia em 1707. O historiador Arthur Herman escreveu, com um certo exagero, que os escoceses inventaram o mundo moderno. As universidades de Edimburgo e Glasgow eram a Harvard e o MIT do Iluminismo escocês: rivais até certo ponto, mas colaborando uma com a outra para a geração do conhecimento útil capaz de embasar novas tecnologias. Tais universidades atraíram as mentes mais capazes do seu tempo—acima de tudo, Adam Smith. O filósofo David Hume, amigo de Smith, foi preterido em duas ocasiões para um cargo permanente de professor, por conta das suas crenças heterodoxas. Numa época um pouco anterior, ele poderia até ter tido problemas com a lei; mas na Escócia iluminada, ele teve uma vida pacífica como bibliotecário e servidor público. Outro escocês também amigo de Smith foi Adam Ferguson, que introduziu o conceito de sociedade civil. Mas a Escócia não produziu só filósofos; também exportou para a Inglaterra diversos dos seus mais talentosos químicos e engenheiros, sendo James Watt o mais notável de todos.
É absurdo argumentar, como certos estudiosos têm feito, que a Inglaterra não teve um Iluminismo próprio. O que ocorreu foi que o Iluminismo inglês foi mais prático que o escocês, e talvez isso é que era preciso para inovar. Tome o exemplo de Josiah Wedgwood, o grande ceramista de Staffordshire que sozinho conseguiu revolucionar toda uma indústria. Wedgwood era uma figura típica do Iluminismo: contrário à escravatura, bem entrosado com os intelectuais mais proeminentes da sua época, estudioso contumaz de ciência, e com o hábito de consultar cientistas e procurar melhorar a tecnologia e o marketing. A celebrada invenção de Wedgwood, o ‘jasperware’—um tipo de ‘stoneware’ colorido pelo acréscimo de óxidos de metais selecionados—foi considerada a maior inovação da história da cerâmica desde a invenção da porcelana pelos chineses. Foi o resultado de milhares de experimentos nos laboratórios de Wedgwood em Staffordshire. Claramente, o progresso nessa área já não era mais restrito aos tropeços fortuitos de artesãos inspirados.
Em algumas áreas, o conhecimento útil eventualmente se tornou altamente produtivo. O rápido crescimento da indústria da tecelagem de algodão havia criado a necessidade de um agente químico capaz de clarear tecidos, mas as técnicas tradicionais eram lentas e caras. Em 1774, um químico sueco, Carl Wilhelm Scheele, descobriu uma substância que o francês Claude Berthollet subsequentemente percebeu que tinha uma miraculosa propriedade como alvejante. O reconhecimento do poder industrial de tal substância, mais tarde chamada de cloro, foi uma idéia britânica. (As outras propriedades do cloro foram descobertas depois: o mesmo começou a ser empregado como um desinfetante em meados do século dezenove, e a difusão da cloração da água começou no século vinte.)
Outro exemplo do sucesso do programa Baconiano ocorreu no campo da iluminação. As velas eram caras, emitiam fumaça, e frequentemente causavam incêndios. Cientistas de toda a Europa iluminada começaram a colocar os seus cérebros a serviço desse problema. Por volta de 1780, Archibald Cochrane, o brilhante mas excêntrico conde de Dundonald, costumava acender o gás de carvão mineral sobre os seus fornos de alcatrão, mais como uma forma de divertir os seus amigos; entretanto não se sabe ao certo quem foi o primeiro a descobrir que o gás não só queimava muito bem mas também tinha imensas utilidades.
Reivindicações do descobrimento foram feitas por Jean-Pierre Minkelers, que supostamente iluminou com gás a sua sala de aula em 1784, e por Johann Georg Pickel, que certamente iluminou o seu laboratório na Alemanha com gás em 1786. Em 1799, o francês Philippe Lebon obteve a patente para uma ‘lamparina térmica’, um objeto de vidro dentro do qual era queimada uma mistura de ar e gás destilado da madeira. Depois que Lebon fez diversas e bem promovidas demonstrações em Paris em 1801, ficou bastante evidente que uma nova e radical possibilidade havia surgido. Em 1807, algumas tecelagens de algodão de Manchester e todo o percurso do Pall Mall4 de Londres foi iluminado por gás de carvão mineral em homenagem ao aniversário do Rei George. Na década seguinte, a iluminação a gás havia transformado a noite em dia para muitos europeus.
O otimismo sobre o potencial do conhecimento útil para melhorar o mundo continuava abundante. Em 1780, uma das figuras mais importantes do Iluminismo, Benjamin Franklin, escreveu numa carta que ‘o rápido progresso que a verdadeira ciência está a fazer, me faz lamentar que eu nasci cedo demais. Em mil anos, é impossível imaginar aonde chegará o poder do homem sobre a matéria… Ah, que a ciência moral leve a um caminho justo de progresso.’ Ele expressou tal sentimento Baconiano ao seu amigo Joseph Priestley, o cientista e filósofo britânico que descobriu o oxigênio e inventou a água carbonada.
A idade do Iluminismo, foi naturalmente a idade de Newton, cujas descobertas levaram à compreensão do movimento dos corpos celestes. Isso era amplamente tido como uma amostra daquilo que estava por vir: se podemos compreender isso, podemos compreender qualquer coisa. Entretanto, a natureza mostrou ser mais complicada do que era esperado. Durante um século, diversos ramos da pesquisa resistiram às tentativas de melhoria simplesmente porque os alicerces físicos e químicos, e também os biológicos, ainda não haviam avançado o suficiente. Um bom exemplo é o lento desenvolvimento da energia elétrica. A ciência do século dezoito era fascinada pela eletricidade e já sentia o seu potencial; em 1760, o prefácio do livro de Franklin ‘New Experiments and Observations on Electricity’ (Novos Experimentos e Observações Sobre Eletricidade) afirmou profeticamente que a eletricidade era talvez o agenciador mais formidável e irresistível do universo. Entretanto, ainda levou mais um século e o trabalho de diversos cientistas até que a energia elétrica se tornasse economicamente útil.
Os avanços na medicina também provaram ser esporádicos. Os físicos iluminados tinham paixão pelo progresso. E como é que não teriam? Vinte em cada cem bebês que nasciam, morriam ainda no primeiro ano de vida; muitos jovens de talento morriam prematuramente de doenças terríveis; a vida adulta era frequentemente uma sequência de doenças debilitadoras e desfigurantes. ‘Eu não tenho motivos para duvidar que, tirando proveito das diversas e continuadas descobertas que vêm surgindo na ciência, o mesmo progresso que temos no presente no tocante aos corpos inanimados poderá ser obtido sobre a vida’, escreveu Thomas Beddoes, um instruído médico inglês, em 1793. E de fato, pelo menos um sucesso significativo ocorreu durante a sua vida: a descoberta da vacina contra a varíola, por Edward Jenner, três anos depois. Podemos mencionar mais alguns avanços mais modestos, tais como a descoberta de que as frutas cítricas tinham o poder de proteger os marinheiros contra o escorbuto. Entretanto, tais descobertas eram excepcionais: antes de 1850 o conhecimento útil não podia controlar, e muito menos curar, a maior parte das doenças. Para piorar a situação, doenças novas surgiam, deixando a profissão médica desamparada: a cólera foi para a década de 1830s o mesmo que o HIV foi para a década de 1980; levou-se décadas somente para isolar o seu modo de transmissão. Beddoes morreu desapontado e desiludido.
Mesmo na indústria, o efeito imediato do programa Baconiano era limitado. Algumas das invenções de maior importância do século dezoito, especialmente no setor têxtil, consistiam de engrenagens mecânicas engenhosas mas que não dependiam dos avanços da física. Dois exemplos são a máquina de tear conhecida como ‘spinning jenny’, criada por James Hargreaves, e a máquina de depurar algodão chamada ‘cotton gin’, criada por Eli Whitney; elas não tinham nada de especial que Arquimedes não teria compreendido. A novidade no século dezoito foi entender o quanto a ciência e a tecnologia podiam aprender uma com a outra. Mas a inovação continuou a dever menos à ciência do que à intuição, criatividade e desteridade dos gênios da mecânica como Watt, que fez mais que nenhum outro para tornar o engenho a vapor eficiente mas não entendia inteiramente a física da energia a vapor. Só em 1824, cinco anos depois da morte de Watt, que o cientista Frances Nicolas Sadi Carnot, intrigado com o engenho a vapor, escreveu um ensaio que serviu de fundamento para a termodinâmica moderna.
Com tudo isso, a aplicação do programa Baconiano acabou virando uma encruzilhada crítica na história humana. Sem o mesmo, a inovação poderia ter fracassado. É fácil de imaginar um cenário histórico muito diferente, onde a tecnologia progredisse apenas o suficiente para criar um mundo de tecelagens de algodão e barras de ferro mais baratas—para depois estagnar. Os florescimentos tecnológicos anteriores, tais como a invenção da imprensa no século quinze, os navios transoceânicos e as armas-de-fogo haviam se cristalizado dessa forma.
Mas o século dezenove foi diferente, graças às revoluções intelectuais do século anterior. Após 1815, o espírito do progresso ganhou vapor, assim por dizer, e o mundo nunca mais seria o mesmo. Muito embora o Iluminismo, que numa acepção correta, já tivesse ficado para trás, o seu legado foi as grandes descobertas do século dezenove: aço barato, a teoria dos germes causadores de doenças, a domação da eletricidade, as invenções derivadas da termodinâmica, a química orgânica e inúmeras outras descobertas. Em 1787, Immanuel Kant escreveu famosamente que ele vivia na idade do Iluminismo e não numa idade iluminada. O século dezenove foi precisamente o oposto: já não era a época do Iluminismo mas sim uma época iluminada, num sentido admissivelmente restrito, da obstinação inexaurível de levar adiante o programa Baconiano.
As contribuições do Iluminismo ao crescimento econômico de longo prazo não eram meramente científicas. Seguindo a liderança do Nobel laureado Douglass North, muitos economistas já estão começando a ver as idéias econômicas e políticas do Iluminismo como sendo centrais a esse processo. A doutrina econômica mais primitiva, frequentemente chamada de ‘mercantilismo’, ensinava que o comércio era um jogo de somatória zero: se um lado ganhasse, o outro perdia. Tal maneira de pensar levou às políticas que hoje em dia são conhecidas como ‘protecionismo’, e hoje em dia, todos os professores de economia do país ensinam que são ineficientes e caras. A ideia de que o comércio normalmente beneficia os dois lados levou ao crescimento do livre comércio após 1815 e foi central ao estabelecimento de zonas de livre comércio na Europa e noutros lugares depois de 1950. Essa compreensão veio do Iluminismo e do pensamento de intelectuais notáveis como Smith e Hume.
Ainda mais importante era a noção de liberdade de expressão defendida pelo Iluminismo. Hoje em dia pensamos em mudança tecnológica como algo natural e óbvio; chegamos a considerar a falta da mesma uma causa de preocupação. No passado não era assim: os inventores eram vistos como pessoas desrespeitosas, rebeldes contra a ordem existente, que ameaçavam a estabilidade do regime e da Igreja, e ameaçavam o emprego das pessoas. No século dezoito, essa noção foi aos poucos mudando e abrindo caminho para a tolerância, a crença que as pessoas que tinham noções estranhas deviam ter a oportunidade de submetê-las a um teste de mercado. Muitas ideias novas foram testadas experimentalmente, especialmente na medicina, fazendo com que novas maneiras de combater doenças passaram a ser constantemente propostas e testadas (muitas vezes em pacientes que nem suspeitavam que estavam a servir de cobaia). Palavras como ‘herege’, antes usadas para descrever pessoas inovadoras, começaram a desaparecer. De fato, alguns dos personagens mais extraordinários da Revolução Industrial—sobretudo Watt e Jenner—se tornaram celebridades internacionais.
Os críticos do Iluminismo estão certos no sentido de que o mesmo não tornou os europeus submissos. A Revolução Francesa, inicialmente inspirada no pensamento do Iluminismo, acabou se degenerando num banho de sangue homicida seguido por uma ditadura militar. As duas nações mais iluminadas, a França e a Grã-Bretanha, voltaram-se uma contra a outra em 1793, numa guerra terrível que perdurou por mais de vinte anos e levou a políticas domésticas opressivas e não-iluminadas. A Revolução Americana, que como a Francesa era filha do Iluminismo, tolerava e codificava a escravatura. No século dezenove, os europeus empregaram as suas novas tecnologias para oprimir, explorar, e matar não-europeus; no final do século dezenove, eles trocaram os ideais transnacionais de alguns pensadores iluminados por um nacionalismo quase sempre feio e que ensinava às massas que odiar os vizinhos era a maneira de mostrar amor pelo próprio país; e na primeira metade do século vinte, eles se voltaram uns contra os outros com uma brutalidade e destrutividade nunca antes vista pela história.
Assim, o Iluminismo, infelizmente, não pôs fim à barbárie e à violência. Mas, pelo menos pôs fim à pobreza na maior parte do mundo que o abraçou. Quando a poeira finalmente se assentou depois das convulsões e da violência da Revolução Francesa, a Europa entrou num século do crescimento econômico (a fase conhecida como a pax Britannica) pontuado por algumas guerras curtas e localizadas. Por volta de 1914, os países que haviam experimentado o Iluminismo de alguma forma, tornaram-se ricos e industrializados, enquanto que os que não haviam experimentado ou que haviam resistido ao mesmo com sucesso (como a Espanha e a Rússia), ficaram para trás. O ‘clube’ das nações ricas foi o eixo do mundo industrializado durante a maior parte do século vinte. Mesmo depois de duas guerras gigantescas, cuja devastação teria arruinado qualquer dos antigos impérios, a Europa pôs-se novamente de pé, e hoje a qualidade de vida lá é de fazer inveja a uma boa parte da humanidade.
Por mais improvável que pudesse parecer na época, uma comunidade relativamente pequena de intelectuais, num pequeno canto da Europa do século XVIII, mudou o curso da história universal. Eles não apenas concordaram que o progresso era algo desejável; eles escreveram um programa pormenorizado de como implementá-lo, e o que é mais admirável, levaram-no adiante. Hoje em dia usufruimos de confortos materiais, acesso a informação e entretenimento, melhor saúde, de ver praticamente todos os nossos filhos chegarem à idade adulta (mesmo se optamos por ter poucos filhos), e de uma razoável expectativa de que passaremos muitos anos de uma aposentadoria economicamente segura e dotada de lazer. Essas coisas eram os luxos que Smith, Hume, Watt e Wedgwood apenas sonhavam. Entretanto, sem o Iluminismo, elas nunca teriam se tornado realidade.
O progresso tecnológico se tornou parte das nossas vidas. Nós aprendemos a esperar que a ciência e a tecnologia continuarão avançando a cada ano que passa e que iremos descobrir cada vez mais coisas sobre o mundo físico para melhorar a nossa existência material, seja na medicina, nos materiais, na energia ou na tecnologia da informação. A nossa crescente preocupação com o ambiente e a influência que a tecnologia tem tido no nosso frágil planeta está a acrescentar nuances e sofisticações a essa crença. Ignorante do impacto dos hidrocarbonetos na atmosfera, a idade do Iluminismo queimou carvão mineral sem qualquer preocupação. A nossa idade está aprendendo mais uma lição: de que precisamos mais do que nunca do progresso tecnológico, mas também precisamos ser inteligentes com o mesmo. Ben Franklin concordaria.
Notas da Tradutora:
1. Whiggish. Segundo o dicionário Merriam-Webster, ‘whiggish’ caracteriza a visão de que a história tem um percurso de inevitável progresso e melhoria e que julga o passado à luz do presente. Trata-se de um adjetivo derivado de ‘Whig’, cognome do partido político da Grã-Bretanha formado no século dezoito após a restauração da monarquia e que defendia a ‘Exclusão’ do rei católico James II e do seu filho, o próximo na linha de sucessão (ver Revolução Gloriosa, abaixo). O partido oposto, denominado ‘Tory’, acatava piamente o sistema da hereditariedade do poder. Embora na realidade os dois partidos fossem ‘conservadores’ e ‘liberais’ ao mesmo tempo, no sentido em que defendiam a manutenção de liberdades já adquiridas, no século dezenove ‘whig’ passou a ser popularmente empregado como ‘liberal’ e ‘tory’ como ‘conservador’, sendo que a acepção descrita no dicionário Merriam-Webster decorre do ideário pós-modernista do século vinte.
2. Revolução Gloriosa. Nome do golpe sem sangue ocorrido em 1688 na Grã-Bretanha, que destituiu o rei católico James II (1633-1701), sucessor de Charles II, e colocou no seu lugar o seu genro, William of Orange, que ascendeu ao trono como William III.
3. ‘Um sorriso sem gato’. Do inglês ‘a grin without a cat’, trata-se de uma citação do livro de Lewis Carroll Alice no País das Maravilhas, quando Alice disse ao bichano de Cheshire: ‘Eu já vi muitas vezes um gato sem sorriso, mas um sorriso sem gato!’ O significado da expressão é ‘coisa sem pé nem cabeça’. O uso da expressão neste ensaio de Joel Mokyr é possivelmente em referência ao filme documentário de mesmo nome produzido em 2009 por Chris Marker e baseado no seu livro The case of the grinning cat, publicado em 2004, sobre a ascensão e a decadência dos sonhos políticos da Nova Esquerda no século vinte.
4. Pall Mall. Famosa rua no centro de Londres considerada a principal via entre os setores ligados ao governo e à realeza.
Joel Mokyr é professor da Northwestern University, USA, onde é o titular da cadeira Robert H. Strotz de Artes e Ciências. Seu livro mais recente intitula-se The Enlightened Economy: Britain and the Industrial Revolution (A Economia Iluminada: A Grã-Bretanha e a Revolução Industrial, inédito em português).
Título Original: Enlightened and Enriched. We owe our modern prosperity to Enlightenment ideas.
© Dr. Joel Mokyr
Cortesia de: JM e City Journal, Summer 2010, vol. 20, no. 3 (http://www.city-journal.org), uma publicação do Manhattan Institute, editado por Brian C. Anderson
Tradutora: Joaquina Pires-O’Brien
Tradução: Joaquina Pires-O’Brien (UK)
Como citar este artigo:
Mokyr, J. (2011). Iluminados e enriquecidos: devemos nossa prosperidade moderna às ideias do Iluminismo. PortVitoria, UK, v. 3, Jul-Dec, 2011. ISSN 2044-8236, https://portvitoria.com