Inspiring poems by: Mário de Andrade (1893-1945), Carlos Drummond de Andrade (1902-87), Manuel Bandeira (1886-1979), Ferreira Gullar (1930-), Ítalo de Campos (1949-), Fernando da Mota Lima (1948-), Paulo Henriques Britto (1951-) e Luís Silva ‘Cuti’

Ode ao burguês
Mário de Andrade (1893-1945)

Eu insulto o burguês! O burguês-níquel
o burguês-burguês!
A digestão bem-feita de São Paulo!
O homem-curva! O homem-nádegas!
O homem que sendo francês, brasileiro, italiano,
é sempre um cauteloso pouco-a-pouco!

Eu insulto as aristocracias cautelosas!
Os barões lampiões! Os condes Joões! Os duques zurros!
Que vivem dentro de muros sem pulos,
e gemem sangue de alguns mil-réis fracos
para dizerem que as filhas da senhora falam o francês
e tocam os “Printemps” com as unhas!

Eu insulto o burguês-funesto!
O indigesto feijão com toucinho, dono das tradições!
Fora os que algarismam os amanhãs!
Olha a vida dos nossos setembros!
Fará Sol? Choverá? Arlequinal!
Mas à chuva dos rosais
o êxtase fará sempre Sol!

Morte à gordura!
Morte às adiposidades cerebrais!
Morte ao burguês-mensal!
Ao burguês-cinema! Ao burguês-tiburi!
Padaria Suíssa! Morte viva ao Adriano!
“— Ai, filha, que te darei pelos teus anos?
— Um colar… — Conto e quinhentos!!!
Más nós morremos de fome!”

Come! Come-te a ti mesmo, oh! gelatina pasma!
Oh! purée de batatas morais!
Oh! cabelos nas ventas! Oh! carecas!
Ódio aos temperamentos regulares!
Ódio aos relógios musculares! Morte à infâmia!
Ódio à soma! Ódio aos secos e molhados
Ódio aos sem desfalecimentos nem arrependimentos,
sempiternamente as mesmices convencionais!
De mãos nas costas! Marco eu o compasso! Eia!
Dois a dois! Primeira posição! Marcha!
Todos para a Central do meu rancor inebriante!

Ódio e insulto! Ódio e raiva! Ódio e mais ódio!
Morte ao burguês de giolhos,
cheirando religião e que não crê em Deus!
Ódio vermelho! Ódio fecundo! Ódio cíclico!
Ódio fundamento, sem perdão!

Fora! Fu! Fora o bom burguês!…

Quando eu morrer quero ficar
Mário de Andrade

Quando eu morrer quero ficar,
Não contem aos meus inimigos,
Sepultado em minha cidade,
Saudade.

Meus pés enterrem na rua Aurora,
No Paissandu deixem meu sexo,
Na Lopes Chaves a cabeça
Esqueçam.

No Pátio do Colégio afundem
O meu coração paulistano:
Um coração vivo e um defunto
Bem juntos.

Escondam no Correio o ouvido
Direito, o esquerdo nos Telégrafos,
Quero saber da vida alheia,
Sereia.

O nariz guardem nos rosais,
A língua no alto do Ipiranga
Para cantar a liberdade.
Saudade…

Os olhos lá no Jaraguá
Assistirão ao que há de vir,
O joelho na Universidade,
Saudade…

As mãos atirem por aí,
Que desvivam como viveram,
As tripas atirem pro Diabo,
Que o espírito será de Deus.
Adeus

Verdade
Carlos Drummond de Andrade (1902-87)

A porta da verdade estava aberta,
mas só deixava passar
meia pessoa de cada vez.
Assim não era possível atingir toda a verdade,
porque a meia pessoa que entrava
só trazia o perfil de meia verdade.
E sua segunda metade
voltava igualmente com meio perfil.
E os meios perfis não coincidiam.
Arrebentaram a porta. Derrubaram a porta.
Chegaram ao lugar luminoso
onde a verdade esplendia seus fogos.
Era dividida em metades
diferentes uma da outra.
Chegou-se a discutir qual a metade mais bela.
Nenhuma das duas era totalmente bela.
E carecia optar. Cada um optou conforme
seu capricho, sua ilusão, sua miopia.

Confissão
Carlos Drummond de Andrade

A madureza, essa terrível prenda
que alguém nos dá, raptando-nos, com ela,
todo sabor gratuito de oferenda
sob a glacialidade de uma estela,

a madureza vê, posto que a venda
interrompa a surpresa da janela,
o círculo vazio, onde se estenda,
e que o mundo converte numa cela.

A madureza sabe o preço exato
dos amores, dos ócios, dos quebrantos,
e nada pode contra sua ciência

e nem contra si mesma. O agudo olfato,
o agudo olhar, a mão, livre de encantos,
se destroem no sonho da existência.

A morte absoluta
Manuel Bandeira

Morrer.
Morrer de corpo e de alma.
Completamente.

Morrer sem deixar o triste despojo da carne,
A exangue máscara de cera,
Cercada de flores,
Que apodrecerão – felizes! – num dia,
Banhada de lágrimas
Nascidas menos da saudade do que do espanto da morte.

Morrer sem deixar porventura uma alma errante…
A caminho do céu?
Mas que céu pode satisfazer teu sonho de céu?

Morrer sem deixar um sulco, um risco, uma sombra,
A lembrança de uma sombra
Em nenhum coração, em nenhum pensamento,
Em nenhuma epiderme.

Morrer tão completamente
Que um dia ao lerem o teu nome num papel
Perguntem: “Quem foi?…”

Morrer mais completamente ainda,
– Sem deixar sequer esse nome

Vou-me embora pra Pasárgada
Manuel Bandeira (1886-1979)

Vou-me embora pra Pasárgada
Lá sou amigo do rei
Lá tenho a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada
Vou-me embora pra Pasárgada
Aqui eu não sou feliz
Lá a existência é uma aventura
De tal modo inconseqüente
Que Joana a Louca de Espanha
Rainha e falsa demente
Vem a ser contraparente
Da nora que nunca tive
E como farei ginástica
Andarei de bicicleta
Montarei em burro brabo
Subirei no pau-de-sebo
Tomarei banhos de mar!
E quando estiver cansado
Deito na beira do rio
Mando chamar a mãe-d’água.
Pra me contar as histórias
Que no tempo de eu menino
Rosa vinha me contar
Vou-me embora pra Pasárgada
Em Pasárgada tem tudo
É outra civilização
Tem um processo seguro
De impedir a concepção
Tem telefone automático
Tem alcalóide à vontade
Tem prostitutas bonitas
Para a gente namorar
E quando eu estiver triste mais triste
Mas triste de não ter jeito
Quando de noite me der
Vontade de me matar
– Lá sou amigo do rei
Terei a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada

Subversiva
Ferreira Gullar

A poesia
Quando chega
Não respeita nada.
Nem pai nem mãe.
Quando ela chega
De qualquer de seus abismos
Desconhece o Estado e a Sociedade Civil
Infringe o Código de Águas
Relincha
Como puta
Nova
Em frente ao Palácio da Alvorada.
E só depois
Reconsidera: beija
Nos olhos os que ganham mal
Embala no colo
Os que têm sede de felicidade
E de justiça.
E promete incendiar o país.

Traduzir-se
Ferreira Gullar (1930-)

Uma parte de mim
é todo mundo:
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.
uma parte de mim
é multidão:
outra parte estranheza
e solidão.
Uma parte de mim
pesa, pondera:
outra parte
delira.
Uma parte de mim
é permanente:
outra parte
se sabe de repente.
Uma parte de mim
é só vertigem:
outra parte,
linguagem.
Traduzir-se uma parte
na outra parte
– que é uma questão
de vida ou morte –
será arte?

Amar
Ítalo de Campos (1949-)

Amar o mar não é difícil
difícil é amarrar.
(Nenhum lugar é seguro)
Falar amar não é difícil,
difícil é amar.
Amar é como o mar,
trevas e mistérios
calmo, traiçoeiro.
(Vivo cemitério, Senhor do futuro.)
Amar é como o mar,
se abandonar. Ritmo, vento, céu…
é beijar, beijar… lamber, lamber…
conforme a lua,
se encontrar no céu.
Amar é como o mar,
afaga e afoga,
conserva e estraga.
Amar é estrada
do nada ao sem fim.
Amar é como o mar,
calmo no sonho,
doce na fantasia.
(Pendurado na parede.)
O mar não cede a sede.
Amar é uma rede
que prende.
Amar não é difícil,
difícil é viver sem amar,
desterro sem paisagem,
presença é miragem,
total solidão.
É como escutar o vento
sem significação,
(ou um choro mudo).
Viver sem amar é difícil,
como se apagasse tudo
e tu não vês,
mais não.

Sabor da Letra, Edit, 1999.

No Espelho da Verdade
Fernando da Mota Lima (1948-)

A cada dia que passa
Me desconforta o que vejo
Entre o que sou e o espelho
Que impiedoso me espreita.

Mais que meu duplo, reflexo
Vejo a polícia, o juiz
Que desvelando o que escondo
Diz o que o mundo não diz
O que a voz silencia:
Eis o meu eu que o espelho
A sós comigo alumia.

Portanto, vida, o engano
Que em outros se pronuncia
Já não me causa mais dano
Não mais ilude meu dia.

Quero ser só o que sou
Ser para mim eu inteiro.
Ainda que o mundo inteiro
Não me tolere a verdade
Minha medida de vida
Comigo só ajustada
É ser comigo inteiro
Embora o mundo inteiro
Estilhaçando o espelho
Suprima a linha traçada
Entre meu ser e meu nada.

As Coisas que nos Cercam
Paulo Henriques Britto (1951-)

As coisas que te cercam, até onde
alcança tua vista, tão passivas
em sua opacidade, que te impedem
de enxergar o (inexistente) horizonte,
que justamente por não serem vivas
se prestam para tudo, e nunca pedem

nem mesmo uma migalha de atenção,
essas coisas que você usa e esquece
assim que larga na primeira mesa —
pois bem: elas vão ficar. Você, não.
Tudo que pensa passa. Permanece
a alvenaria do mundo, o que pesa.

O mais é enchimento, e se consome.
As tais Formas eternas, as Idéias,
e a mente que as inventa, acabam em pó,
e delas ficam, quando muito, os nomes.
Muita louça ainda resta de Pompéia,
mas lábios que a tocaram, nem um só.

 

Gota do que não se esgota
Luis Silva ‘Cuti’

cota é só a gota
a derramar o copo
não a mágoa do corpo
mas energia represada
que agora se permite e voa
em secular esforço
de superar-se coisa e se fazer pessoa
cota é só a gota
apenas nota de longa pauta
a ser tocada
com o fino arco
em mãos calosas

cota é só a gota
a explodir o espanto
de se enxugar no riso
a imensidão do pranto

ela é só a gota
ruindo pela base
a torre de narciso

é só a gota
entusiasmo na rota
afirmativa
que ameniza as dores da saga
suas chagas de desigualdade amarga

cota é só a gota
meta de quem pagou e paga
desmedido preço de viver imposto
e agora exige
seu direito a voto
na partição do bolo

é só a gota
de um mar de dívidas
contraídas
pelos que sempre tornaram gorda a sua cota

cota é só a gota afrouxando botas
de um exército
para o exercício da eqüidade

cota não reforça derrota
equilibra
entre ponto de partida
e ponto de chegada
a vitória coletiva
reinventada.