Intelectuais e sociedade
David Gordon
Resenha do livro Intellectuals and Society (Intelectuais e sociedade) de Thomas Sowell. New York Basic Books, 2009.
O livro Intellectuals and Society de Thomas Sowell é perspicaz, mas é cortado por uma tensão fundamental. Os intelectuais enxergam erradamente o livre mercado como um jogo de somatória zero.
Dentre as consequências da iliteracia econômica da maioria dos intelectuais está a visão de somatória zero da economia… na qual os ganhos de um indivíduo ou de um grupo representam uma perda correspondente para um outro indivíduo ou um outro grupo… A noção vulgarizada, que se coalesce na doutrina de que é preciso ‘tomar partido’ na formulação das políticas públicas ou mesmo na interpretação de decisões judiciais, ignora o fato de que as transações econômicas não continuariam ocorrendo a menos que ambas as partes julgassem que fazer tais transações fosse preferível a não fazer tais transações (pp. 56–57).
Os intelectuais não conseguem compreender um ponto que Ludwig von Mises frisou repetidamente: o mercado é o principal meio pelo qual as pessoas se beneficiam da cooperação social. Mas quem são esses intelectuais que são tão carentes de percepção? Sowell estabelece uma distinção acentuada entre pessoas que produzem bens e serviços e aqueles que lidam apenas com ideias:
No âmago da noção de intelectual, como tal, está o negociante de ideias, mas não a aplicação pessoal de ideias como os engenheiros que aplicam complexos princípios científicos para criar estruturas ou mecanismos físicos. O trabalho de um intelectual começa e termina com ideias, independentemente de quão influentes essas ideias sejam em coisas concretas – nas mãos dos outros. Adam Smith nunca administrou um negócio e Karl Marx nunca administrou um Gulag (p.3).
Porque os intelectuais trabalham com ideias, eles frequentemente superestimam a importância do planejamento consciente. Eles creem que, assim como eles são capazes de idealizar soluções para os seus enigmas intelectuais, também a sociedade deve ser guiada pelo design racional. Essa visão os leva a subestimar o potencial do livre mercado, que se escora na inteligência dispersa de milhões de pessoas, coordenada através de preços. Sowell, com sua característica habilidade de fazer citações pertinentes, cita diversas observações que mostram essa atitude para com o planejamento: “John Dewey, por exemplo, deixou isso claro: ‘Tendo o conhecimento, nós podemos nos aplicar com confiança a um projeto de invenção social e engenharia experimental.’ Mas, a pergunta ignorada é: Quem – se por acaso alguém – possui esse tipo de conhecimento?” (p. 18).
Os intelectuais, então, subestimam o mercado livre, porque a operação deste se choca contra o seu modo característico de pensar. Até aqui tudo bem: entretanto, Sowell também vê muitos intelectuais de uma forma que, em parte, está em desacordo com a visão apresentada. Aqui, o problema com esses intelectuais é que eles rejeitam a ‘visão trágica’, que enxerga os problemas do mundo como sendo no geral intratáveis. Sowell descreve a visão trágica desta maneira:
As ‘soluções’ não são esperadas por aqueles que veem muitas das frustrações e anomalias da vida – a tragédia da condição humana – como sendo devidas a restrições inerentes aos seres humanos, isoladas ou coletivamente, no contexto do mundo físico em que vivem. Na visão trágica, a barbárie está sempre esperando por debaixo das asas, e a civilização é simplesmente ‘uma crosta fina em cima de um vulcão’. Essa visão tem poucas soluções a oferecer e muitas permutas difíceis para refletir (pp. 77-78).
Sowell contrasta essa visão trágica com uma visão da sociedade “em que há muitos ‘problemas’ a serem ‘resolvidos’ aplicando as ideias das elites dos intelectuais moralmente ungidos” (p. 77). Nesse contraste, ele ignora um importante impulso de seu próprio trabalho, e, desse modo, cria a tensão que mencionei anteriormente. Nos comentários recém citados, Sowell divide os intelectuais naqueles que afirmam que as suas ideias podem resolver os problemas do mundo e aqueles que negam tal coisa, afirmando que esses problemas não podem ser resolvidos. Como é que esta proposição pode ser conciliada à sua reivindicação anterior, a de que o mercado livre oferece uma oportunidade para as pessoas agarrarem através da cooperação social, um fato que muitos intelectuais não conseguem entender? Nessa visão, se não impedirmos o mercado livre, não estaremos condenados à tragédia. É claro que adotar essa visão não nos compromete a afirmar que todos os problemas do mundo podem ser resolvidos, mas se o mercado livre possui os benefícios que Sowell lhe atribui, uma vasta seção da realidade encontra-se imune à visão trágica que ele defende.
O melhor de Sowell, e que é deveras muito bom, se dá quando ele lida com o mercado livre. Ele aponta uma falácia nas queixas de muitos críticos do mercado que enfatizam a distribuição desigual da riqueza e da renda na América contemporânea.
Embora essas discussões tenham sido formuladas em termos de pessoas, a evidência empírica citada de fato é sobre o que aconteceu ao longo do tempo às categorias estatísticas – e isso é diretamente oposto ao que tem acontecido ao longo do tempo com seres humanos de carne e osso, a maioria dos quais se desloca de uma categoria para outra ao longo do tempo. (…) Apesar de a renda da categoria estatística do topo – 0,1% dos pagadores de impostos – ter crescido tanto absolutamente quanto relativamente em relação à renda das outras categorias de seres humanos de carne e osso, aqueles indivíduos que estavam inicialmente na primeira categoria viram os seus rendimentos despencar um colossal 50% entre 1996 e 2005. (pp. 37-38).
O hábil emprego da evidência de Sowell surge novamente quando ele confronta outra acusação popular contra o mercado livre. Muitos intelectuais reclamam do controle dos mercados exercidos pelas grandes corporações. Sowell ressalta que essas empresas, longe de restringir as opções disponíveis aos consumidores, expandem as opções abertas a eles. Uma empresa que adquire uma grande parte do mercado faz isso oferecendo produtos a que os consumidores preferem em relação aos de seus concorrentes. Além disso,
… diversas empresas, acusadas de ‘controlar’ a maior parte de seus mercados, não só perderam essa parcela de mercado, mas também faliram dentro de poucos anos depois do seu suposto domínio do mercado. A Smith Corona, por exemplo, vendeu mais da metade das máquinas de escrever e processadores de texto nos Estados Unidos em 1989, mas, apenas seis anos depois, registrou falência, pois a disseminação dos computadores pessoais deslocou [do mercado] as máquinas de escrever e os processadores de texto (pp. 65- 66).
Os intelectuais antimercado geralmente condenam o mercado em termos moralistas. Não é verdade que muitas empresas exploram os pobres? As empresas financeiras especializadas em empréstimos de ‘dia-de-pagamento’ são um excelente exemplo. Ao cobrar juros exorbitantes, essas empresas nefastas não estariam se aproveitando dessas pessoas em circunstâncias desesperadoras? Sowell responde expondo um emprego enganoso das estatísticas.
Aqui, o virtuosismo verbal é frequentemente usado mostrando as taxas de juros em termos de percentagens anuais, quando, de fato, os empréstimos feitos nos bairros de baixa renda para atender a alguma necessidade do momento são geralmente por semanas, ou mesmo dias. As somas de dinheiro emprestado são geralmente de algumas centenas de dólares, emprestado por algumas semanas, com juros de cerca de US$ 15 por cada US$ 100 emprestado. Isso resulta em taxas de juros anuais no patamar das centenas – o tipo de estatísticas que produz alvoroço na mídia e na política (p. 46).
Se a visão trágica não oferece a melhor maneira de se pensar sobre os benefícios do mercado livre, isso de modo algum significa que essa perspectiva seja inútil em outras áreas. Muito pelo contrário, Sowell argumenta de forma eficaz que a política externa tem sido frequentemente prejudicada por esquemas utópicos que ignoram as limitações humanas. O desastre aparece quando os intelectuais percebem que as imensas mudanças trazidas pela guerra lhes dão uma oportunidade de implementar esses esquemas. “John Dewey… via a guerra como constrangedora ‘da tradição individualista’, à qual ele se opôs, e estabelecedora ‘da supremacia da necessidade pública sobre as posses privadas’” (p.207).
Sowell mostra que muitos membros do Movimento Progressista americano, na busca de sua visão utópica, desejaram estender as bênçãos da democracia americana às pessoas ‘atrasadas’ no exterior.
O clássico da Era Progressista, The Promise of American Life, do editor da New Republic, Herbert Croly, argumentou que a maioria dos asiáticos e africanos tinha poucas possibilidades de desenvolver nações democráticas modernas sem a superintendência das democracias ocidentais (p.206).
Sowell é também devidamente cético com a decisão de Woodrow Wilson de envolver os Estados Unidos na Primeira Guerra Mundial. Ele questiona se Wilson não teria desejado entrar na guerra como “uma ocasião conveniente para lançar uma cruzada ideológica internacional… Como muitos outros intelectuais, para Wilson, as ações tomadas sem motivos materiais ficam, de alguma forma, num plano moral superior às ações tomadas para promover os interesses econômicos dos indivíduos ou os interesses territoriais das nações” (p.209).
Diante dessas opiniões, poder-se-ia esperar que Sowell fosse um mordaz crítico do imbróglio do governo Bush, mas tal não demonstra ser o caso. Sowell, como muitos outros, está agarrado às supostas leituras da conferência de Munique de 29 e 30 de setembro de 1938. Num esboço histórico da política britânica da década de 1930, escorada nos discursos de Winston Churchill como fonte primária, ele desencadeia a lição universal de que as nações devem resistir aos ditadores com ambições estrangeiras, para que não nos encontremos numa conflagração mundial. (Esta resenha não é o lugar adequado para discutir a política britânica em relação a Hitler, mas o excelente livro March 1939: The British Guarantee to Poland de Simon Newman [Oxford, United Kingdom: Oxford University Press, 1976] oferece um relato acadêmico dos motivos e métodos da política britânica que se mostra totalmente em desacordo com a discussão de Sowell.)
A ‘lição’ de Munique promove uma tendência para enxergar cada César local como o próximo Hitler. Sowell não enxerga que a guerra do Iraque é exatamente o tipo de empreendimento imperialista que Herbert Croly tinha em mente. Respondendo aos críticos da recente política de ‘surto’ ao Iraque, Sowell observa: “Num resumo, o general Petraeus foi acusado de mentir… face a evidências crescentes de várias outras fontes de que a invasão aumentou substancialmente a violência no Iraque” (p. 270). Certamente é necessário mais para justificar uma guerra, se houver uma, do que o fato de uma determinada operação ter baixas reduzidas. Entretanto, se Sowell falhou sobre este ponto, no conjunto ele escreveu um excelente livro.
David Gordon é pesquisador sênior do Ludwig von Mises Institute. Estudou na UCLA (Universidade da Califórnia, Los Angeles), onde obteve o seu PhD em História da Intelectualidade. É autor dos livros Resurrecting Marx: The Analytical Marxists on Exploitation, Freedom, and Justice, The Philosophical Origins of Austrian Economics, An Introduction to Economic Reasoning, e Critics of Marx. É ainda editor de Secession, State, and Liberty e coeditor do livro de H. B. Acton’s Morals of Markets and Other Essays. Também é o editor de The Mises Review, e colaborador de diversos periódicos, como The International Philosophic Quarterly, The Journal of Libertarian Studies, e The Quarterly Journal of Austrian Economics.
Notas
© David Gordon
Publicado primeiramente em: The Independent Review. A Journal of Political Economy (15 (2), Fall 2010.
Tradução: Jo Pires-O’Brien (UK)
Revisão: Dpebora Finamore (BR)
Referência
SOWELL, THOMAS. Intellectuals and Society (Intelectuais e sociedade). New York Basic Books, 2009. Resenha de GORDON, DAVID. Intelectuais e sociedade. PortVitoria, UK, v.16, Jan-Jun, 2018. ISSN 20448236, https://portvitoria.com