O bicentenário da independência da América Latina II. Reflexões sobre o conflito ideológico
Joaquina Pires-O’Brien
Enquanto que na primeira parte desse artigo procurou-se fazer um apanhado sucinto do processo de independência das províncias hispânicas da América e do papel dos seus principais líderes, o objetivo desta segunda parte é fazer uma reflexão sobre o atual conflito ideológico que tantas incertezas tem gerado sobre o futuro do continente.
Apesar dos tremendos avanços que a América Latina obteve nas últimas duas décadas do século vinte, ainda existem graves problemas sociais como os bolsões de pobreza, o subemprego e o alto índice de criminalidade. A esquerda latina atribui tais problemas à importação de modelos econômicos de outros países pelas novas repúblicas. A extrema-esquerda latina chega a defender a solução da tábula rasa: destruir o sistema existente e começar tudo de novo. Tal solução é reveladora de um relativismo cultural que é insensato, inviável e irresponsável. É insensato pela suposição ingênua de que cada cultura tem seus próprios valores que somente são válidos dentro da mesma. Na verdade os valores culturais constituem uma rede difusa na qual as mesmas crenças e valores reaparecem em diferentes culturas. É inviável pelo desperdício de recursos que acarretaria; tal solução equivale a jogar fora o bebê junto com a água do banho. É irresponsável pela sedição embutida na alta probabilidade de desencadear reações automáticas de violência nos indivíduos menos esclarecidos.
A extrema-esquerda também aponta o capitalismo implantado nas novas repúblicas ainda no início do século dezenove como o principal bode expiatório dos problemas do continente. Mas a esquerda se engana ao pressupor que as novas repúblicas latinas tiveram um liberalismo político capaz de dar suporte ao capitalismo. Conforme argumentou o escritor peruano Mario Vargas Llosa, as suposições da extrema-esquerda acerca do suposto liberal capitalismo das repúblicas latinas são puro sofismas, uma vez que o verdadeiro liberalismo nunca existiu na América Latina. O chamado ‘liberalismo’ das novas repúblicas não era genuíno já que os direitos que ofereciam não eram universais – tanto por admitir a escravidão quanto pelas restrições do direito de participação política. Conforme mostrou Vargas Llosa e muitos outros, o sistema econômico das novas repúblicas não era o capitalismo, mas sim o mercantilismo, sistema que precedeu ao capitalismo e caracterizado pelo clientelismo do estado e pela busca do enriquecimento do cofre público através do monopólio do comércio externo e do maquinário burocrático. Na realidade, o mercantilismo das jovens repúblicas latinas entrou para o século vinte e foi altamente explorado pelos regimes militares. Apenas em meados da década de oitenta, com o restabelecimento das democracias constitucionais na maioria dos países é que o mercantilismo foi colocado de lado, abrindo espaço ao capitalismo.
As extrapolações da extrema-esquerda ao invés de resolver problemas do continente acabam criando outros piores, como a incitação do entusiasmo militante da população menos esclarecida e, portanto, menos capaz de controlá-lo através da razão. A maior consequência dessas é o aumento desenfreado da violência contra a pessoa e contra a propriedade. Tais extrapolações erradas também impedem a visão mais ampla da situação, a qual é necessária para se encontrar as soluções mais viáveis. Começar tudo de novo requer destruir tudo o que já existe e que foi conseguido a duras penas, e isso sem nenhuma garantia contra efeitos colaterais.
As duas visões de democracia
A divisão ideológica da América Latina não se deve à introdução de modelos políticos alienígenas pelos libertadores, mas sim às ambivalências contidas nas duas visões de democracia. Elas estão no centro dos conflitos esquerda-direita, que se estendem por todo o continente. Tais ambivalências, vêm do pensamento dos dois filósofos influenciadores das revoluções da França e dos Estados Unidos: Jean Jacques Rousseau (1712-1778) e John Locke, cada qual apresentando visões diferentes do contrato social.
Locke adotou o contrato social introduzido por Thomas Hobbes (1588-1679), o qual tomou por base a tradição liberal; ele defendia o tipo de sociedade que respeita os direitos naturais de todos os indivíduos incluindo os das minorias. .Já o contrato social de Rousseau, o mesmo era baseado na ideia da soberania absoluta do povo. O contrato social de Hobbes e Locke requer uma disposição para ceder aos anseios da maioria; o contrato social de Rousseau demanda categoricamente que os indivíduos alienem os seus direitos naturais à sociedade.
Há diversas outras diferenças significativas entre as filosofias de Locke e de Rousseau. Rousseau via a democracia como um fim. Para Locke a democracia era um meio para um objetivo maior que é a liberdade. Locke se preocupou com os direitos das minorias, procurando mecanismos de salvaguardá-los. Rousseau, ao contrário, ignorou-os, tendo falhado em deixar de perceber a ameaça representada pela democracia direta, na verdade uma pseudodemocracia. Outra diferença entre Rousseau e Locke tem a ver com a promoção da cidadania. Rousseau supervalorizou o papel do líder carismático para inculcar a cidadania na população, enquanto que Locke via a cidadania como uma decorrência espontânea do processo democrático e suas instituições controladoras.
A ambivalência das visões de democracia de Rousseau e Locke tem ainda a ver com a ordem de prioridade dos dois grandes objetivos da democracia: a liberdade e a igualdade. A impossibilidade de dar à liberdade e à igualdade a mesma prioridade é o grande paradoxo da democracia. Apenas Locke percebeu isso quando priorizou a liberdade. Ao examinar a democracia americana Alexis de Tocqeville constatou o elevado grau de igualdade na sociedade americana e concluiu que a igualdade era um subproduto espontâneo da liberdade. Entretanto, a recíproca não é verdadeira. Colocar a igualdade em primeiro lugar, por exemplo, através de políticas de discriminação positiva, não gera a liberdade como subproduto. Pelo contrário, apenas serve para tolhê-la.
Em termos de modelos de democracias, Rousseau foi o maior inspirador dos revolucionários franceses, principalmente os Jacobinos mais radicais, enquanto que Locke foi o grande inspirador dos fundadores da república dos Estados Unidos da América. Os dois modelos ambivalentes de democracia foram introduzidos na América Latina pelos libertadores. Na América Latina, a profunda divisão ideológica entre a esquerda e a direita tem suas raízes nessa ambivalência.
Apesar de que o centro intelectual da época dos libertadores era a França e não a Inglaterra, a biografia deles sugere que eles teriam conhecimento de Rousseau assim como de Locke. Miranda, indubitavelmente o mais culto de todos os libertadores, certamente tinha. Afinal de contas ele viveu na Inglaterra e conheceu a intelectualidade de Londres e diversos líderes da Revolução Americana. Entretanto, é improvável que os libertadores tenham percebido a incompatibilidade entre Rousseau e Locke. Miranda chegou a participar da Revolução Francesa, embora escapasse por pouco da guilhotina depois que os Jacobinos radicais ganharam o poder. Entretanto, a sociedade por ele estabelecida em Londres, a Grand Reunión Americana, sugere que ele era um seguidor do Iluminismo verdadeiro e, portanto, teria uma preferência por Locke.
Enquanto Miranda viveu na França durante o Reino de Terror, Bolívar viveu lá durante a ascensão de Napoleão Bonaparte, que se tornou o seu grande ídolo. O estilo apaixonado de Bolívar, revelado nas suas campanhas militares e nos seus diversos escritos em muito lembrava o estilo de Napoleão. Como este último, Bolívar foi um líder militar de tremendo carisma e determinação, qualidades que soube usar para persuadir soldados cansados, maltrapilhos e famintos a segui-lo através das matas e da cordilheira gelada. A biografia de Bolívar também sugere que ele nem sempre esteve sintonizado com Miranda, seu comandante no início da campanha. Exemplo disso foi a crítica de Bolívar a Miranda após a primeira derrota na luta contra os espanhóis.
Os libertadores falharam em perceber a ambivalência dos modelos de democracia da França e dos Estados Unidos, inspiradas em Rousseau e Locke, respectivamente. Entretanto, poucos intelectuais dos séculos dezenove e vinte enxergaram tal ambivalência. É que Rousseau foi o gato no pombal do Iluminismo. Os outros filósofos consideram-no um precursor do movimento Romântico que já se aproximava, e que trocaria a ciência pelas conjeturas e o racionalismo pela metafísica. Conforme mostraram Bertrand Russell e Isaiah Berlin, Rousseau tinha uma visão distorcida de democracia a qual acabou se tornando a filosofia das ditaduras pseudodemocráticas que promovem o ingurgitamento do Estado e a debilitação das instituições capazes de controlar o Estado e consolidar o processo democrático.
Sobre o neoliberalismo
O neoliberalismo veio do liberalismo clássico, filosofia política que advoga o livre mercado, a participação da sociedade civil e o governo limitado, que dominou na Inglaterra e na Franca do século dezoito até o início do século dezenove. O prefixo ‘neo’ de ‘neoliberalismo’ tem a ver com a necessidade de distingui-lo da outra filosofia política de mesmo nome, caracterizada por advogar o governo grande e mercados altamente controlados.
Embora o neoliberalismo tenha sido assimilado pelas novas democracias do mundo, isso não quer dizer que as mesmas já tenham atingido o grau de maturidade das democracias mais antigas como os Estados Unidos e a Grã-Bretanha. São chamadas democráticas por apresentarem eleições diretas, embora as suas instituições necessárias do estado moderno ainda não estejam consolidadas. Tais instituições necessárias à democracia liberal são o estado de direito e as instituições civis capazes de exigir uma prestação de contas do estado. Até que tais instituições se consolidem, as democracias latinas continuam imaturas e suscetíveis a abusos.
O neoliberalismo da América Latina assim como o dos países da ‘Terceira Onda Democrática’ surgidos a partir da queda do Muro de Berlim, esteve sempre associado à expressão ‘consenso de Washington’ . Tal expressão surgiu em referência ao consenso que havia na década de oitenta entre os técnicos do Banco Mundial e do FMI (Fundo Monetário Internacional), de que certos países da América Latina eram merecedores de confiança para novos empréstimos devido ao fato de estarem se democratizando e modernizando. Logo que o neoliberalismo foi introduzido na América Latina no final da década de oitenta, a esquerda promoveu uma prolongada campanha difamatória contra o mesmo, divulgando a versão sarcástica e pejorativa da expressão ‘consenso de Washington’ que sugere que a abertura das economias emergentes não passou de um complô de Washington para servir aos interesses dos Estados Unidos.
A luz no fim do túnel
Apesar da profunda divisão ideológica que caracteriza a América Latina de hoje, o processo de democratização continua em andamento na maioria das suas repúblicas. Parte dessa evolução é o aparecimento dos primeiros intelectuais capazes de defender abertamente a liberalização econômica, como, Hernando de Soto (1941-) fundador do Instituto Liberdade e Democracia (ILD), com sede em Lima, um dos primeiros centros de formulação de políticas liberais do continente. Apesar de ter sido o principal assessor do ex-presidente Alberto Fujimori até 1992, o mesmo que venceu Vargas Llosa na eleição presidencial de 1988, Soto é um economista de renome mundial e autor diversos livros de economia e ciência política como El Otro Sendero (O Outro Caminho), Homo Economicus Racional e Maximizador (1987), La Arquitectura Oculta do Capital (O Mistério do Capital, 2001, Editora Record), El Electorado del Terror, Nova Vida Para o Capital Morto. Os dois maiores temas de Soto são os desígnios da economia informal da América Latina e o capitalismo de baixo para cima, ou seja, o capitalismo dos pobres.
Diversos outros intelectuais latinos já conseguiram colocar o dedo no problema do conflito ideológico, mostrando que o conflito entre a esquerda e a direita trata-se na verdade de uma briga entre adeptos do estado grande e controlador e adeptos de um estado menor e mais livre. Em outras palavras, trata-se de uma disputa entre o capitalismo de estado e o capitalismo de mercado. Para Soto, o atraso econômico dos países latinos não tem nada a ver com supostas características das suas populações, como o conhecido rótulo de indisposição ao trabalho. As provas que ele aponta são o enorme espírito empreendedor dos latinos e a própria economia informal latina. Para Soto, os países em desenvolvimento não devem se preocupar nem com as chancelarias dos países mais industrializados nem com os direcionamentos das instituições financeiras internacionais como o FMI. O que eles precisam é redescobrir as suas riquezas ocultas, principalmente o seu capital humano. A recente mobilização da esquerda liberal em direção ao centro é um enorme passo para o fim do referido conflito ideológico.
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Citação:
Pires-O’Brien, J. O bicentenário da independência da América Latina II. Reflexões sobre o conflito ideológico. PortVitoria, UK, v. 2, Jan-Jun, 2011. ISSN 2044-8236, https://portvitoria.com