O divórcio entre a ciência e a cultura
Bertrand Russell
Houve um tempo em que os cientistas viam com desconfiança as tentativas de tornar as suas atividades mais inteligíveis. Entretanto, no mundo de hoje tal atitude não é mais possível. As descobertas da ciência moderna colocaram nas mãos dos governos poderes extraordinários tanto para o bem quanto para o mal. A menos que os estadistas que retêm tais poderes tenham pelo menos uma compreensão elementar da sua natureza, é pouco provável que eles irão usá-los sabiamente. Além disso, nos países democráticos, não são apenas os estadistas mas também o público em geral, para quem algum grau de entendimento científico é necessário.
Assegurar a ampla difusão de tal entendimento não é de forma alguma fácil. Os que podem agir eficazmente como agentes de comunicação entre cientistas técnicos e o público fazem um trabalho que é necessário, não apenas para o bem-estar humano, mas até para a simples sobrevivência da raça humana. Eu creio que muito mais deve ser feito nesse sentido na educação daqueles que não intencionam se tornar especialistas científicos. O Prêmio Kalinga presta um grande serviço ao público ao encorajar aqueles que intentam essa difícil tarefa.
No meu país, e num grau menor noutros países do Ocidente, a ‘cultura’ é vista principalmente, por um infeliz empobrecimento da tradição da Renascença, como algo respeitante especialmente à literatura, à história e à arte. Um homem não é considerado como tendo uma má educação se não souber nada sobre as contribuições de Galileu, Descartes e seus sucessores. Eu estou convencido de que o ensino superior deveria oferecer um curso sobre a história da ciência do século dezessete até o presente, e sobre a pesquisa científica moderna, até onde esta possa ser transmitida sem tecnicalidades. Enquanto que tal conhecimento continua confinado aos especialistas, é muito pouco possível nos dias de hoje que as nações conduzam seus negócios com sabedoria.
Há duas maneiras muito diferentes de calcular qualquer desempenho humano: pode-se estimá-lo por aquilo que é considerado a sua excelência intrínseca; ou pode-se estimar através de sua eficácia causal na transformação da vida humana e das instituições humanas. Eu não estou sugerindo que uma dessas maneiras de estimar é preferível à outra. Eu apenas estou preocupado em mostrar que elas apresentam escalas de importância muito diferentes. Se Homero e Ésquilo não tivessem existido, se Dante e Shakespeare não tivessem escrito sequer uma linha, se Bach e Beethoven tivessem permanecido silenciosos, a vida do dia-a-dia da maior parte das pessoas de hoje ainda seria muito parecida com aquilo que é. Mas se Pitágoras e Galileu e James Watt não tivessem existido, a vida do dia a dia, não só dos europeus do oeste e dos americanos mas também dos camponeses indianos, russos e chineses, seria profundamente diferente daquilo que é. E essas mudanças profundas estão apenas começando. Elas devem afetar o futuro ainda mais do que já afetaram até o presente.
No presente, as técnicas científicas avançam como um exército de tanques que perderam seus condutores, cegamente, brutalmente, sem meta ou propósito. Isso é em grande parte porque os homens que estão preocupados com valores humanos e em fazer com que a vida valha a pena ser vivida, ainda estão vivendo na imaginação, no velho mundo pré-industrial, o mundo que tornou-se familiar e confortável através da literatura da Grécia e dos feitos pré-industriais dos poetas e artistas e compositores cujas obras nós bem admiramos.
A separação entre a ciência e a ‘cultura’ é um fenômeno moderno. Platão e Aristóteles tinham um profundo respeito por aquilo que era conhecido como a ciência de suas épocas. A Renascença tanto esteve preocupada com a revitalização da ciência quanto com a arte e a literatura. Leonardo da Vinci dedicou mais energia à ciência do que à pintura. Os artistas da Renascença desenvolveram a teoria geométrica da perspectiva. Durante o século dezoito muito foi feito para disseminar a compreensão do trabalho de Newton e de seus contemporâneos. Mas, a partir do início do século dezenove, os conceitos científicos e os métodos científicos tornaram-se cada vez mais abstrusos e a tentativa de torná-los inteligíveis tem sido considerada cada vez mais impossível. A teoria moderna e a prática dos físicos nucleares tornaram evidente com uma dramática rapidez que a total ignorância do mundo da ciência já não é mais compatível com a sobrevivência.
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Bertrand Russell (1872-1970) foi um filósofo, matemático e escritor inglês, notável pela singularidade de pensamento e pelo bom humor. Ele escreveu tanto para outros filósofos quanto para o público leigo. Em 1949 abraçou a causa do desarmamento nuclear e em 1950 ele foi agraciado com o prêmio Nobel de Literatura.
Nota
O texto acima é o discurso que Bertrand Russell fez em 28 de Janeiro de 1958 na UNESCO, em Paris, ao receber o Prêmio Kalinga de Popularização da Ciência. Publicado no jornal da UNESCO Courier, v.11, No.1, (Fev. 1958), 4.
Tradução: Joaquina Pires-O’Brien
Revisão: Helena El Masri
Key words: Bertrand Russel, article, KalingaPrize, ciência, cultura, ciência e cultura, física nuclear
Citação:
Russell, B. O divórcio entre a ciência e a cultura. PortVitoria, UK, v. 7, Jul-Dec, 2013. ISSN 2044-8236, https://portvitoria.com/o-divorcio-entre-a-ciencia-e-a-cultura/