O que foi feito do pós-modernismo e seu delírio desconstruidor e iconoclasta?
Fernando R. Genovés
Breve memorando do pós-modernismo, o movimento contracultural autoqualificado ‘fraco’ e ‘pragmático’, o qual aspirou nada menos do que derrubar ídolos, grandes relatos, princípios e deuses, e acabou consumido pela sua própria febre iconoclasta*
1
Quem fala sobre o pós-modernismo hoje em dia? Quem leva a sério esse movimento neo-contracultural de construção e desconstrução, que conseguiu monopolizar a atenção de tantos acadêmicos e professores da Europa e da América, animado por numerosos meios de comunicação? O que foi feito desta new fashion intelectual das últimas décadas? O impulso e o propósito que a propulsavam, ao invés de frutíferos e construtivos, eram de natureza hipercrítica e destrutiva, presunçosos demolidores da tradição, qualquer que esta fosse. Não obstante, o pós-modernismo chegou a exercer uma notável influência na derrocada do pensamento, e talvez por isso caiba reconhecer nele uma façanha: ter entorpecido, na sua própria medida, a necessária tarefa da reconstrução da racionalidade no âmbito da filosofia e das ciências sociais, sem a qual estas sobrevivem mal e a duras penas.
O projeto de desconstrução contracultural em todos os âmbitos, e de demolição dos fundamentos do real, permaneceu simbolizado por uma das principais insígnias do pós-modernismo: o ‘pensamento fraco’. No momento atual, já quase não mostra o vigor e a pujança, que honram a presumida ‘fraqueza’ de sua vontade e os objetivos que defendia. Não há aqui, portanto, nem contradição nem desilusão, e nem poderia haver, e, ao que tal coisa indica, tampouco preocuparia os seus mestres e discípulos, ou o que restou deles. Isto é assim por tratar-se de um currículo — o pós-moderno — que tem negado precisamente a mesma base doutrinal no pensamento. Sendo pós-moderno, qualquer um podia ser generoso e magnânimo, altruísta e caridoso, tírio e troiano, embora nunca liberal – no sentido clássico –, e tampouco racional, já que estas representam atitudes bastante malvistas entre os catedráticos inovadores, os jornalistas de salão, os políticos do ramo e o público acrítico em geral.
Constituída numa corrente de opinião que impugnava o princípio da realidade ao mesmo tempo em que dissimulava a autoreferência ao princípio do prazer, no curso do tempo, chocou-se subitamente com a íntegra realidade. E, finalmente, por ter-se estabelecido como uma filosofia peculiar, desobediente da lógica tradicional, que não queria ouvir falar dos princípios da identidade, da não-contradição e do terço excluído, a ‘condição pós-moderna’ descobriu, finalmente, pela própria experiência, o sentido do ser, e sobretudo, o do não-ser. A não-razão também cria monstros que acabam por destruir o seu ‘criador’ (como o Frankenstein de Shelley) e os seus próprios filhos (como o Saturno retratado por Goya).
2
Para definir-se tão pragmático e tão fraco, os pós-modernos aspiravam a não deixar pedra sobre pedra na cultura vigente. A fim de recordar que, para este temporal intelectual, irreverente e caduco, nada devia ser tido como sagrado, no presente texto eu proponho rememorar as reflexões de Richard Rorty e Gianni Vattimo sobre O futuro da religião, título de um livro compilado por Santiago Zabala (Paidós, Barcelona, 2006), cujo subtítulo é Solidariedade, caridade, ironia. Não deixa de ser irônico ler, nesse volume, como pontificavam sobre o futuro aqueles que não o teriam.
Interpretação de interpretações, tudo é interpretação. Isso era o que diziam. O pensamento ‘fraco’ e ‘pós-moderno’ constituiu um programa que, no fundo, era bastante ambicioso (um resíduo pós-revolucionário), que superava com bastante habilidade qualquer crítica, uma vez que nos seus domínios tampouco funcionava o princípio da falsificação (Karl Popper), tal era a sua aversão a princípios de maneira geral. Simplesmente, eles tinham explicação para tudo, porque tudo, segundo sustentavam, é opinável. Na ‘Era da Interpretação’, que viria a substituir a ‘Era da Fé’ e a ‘Era da Razão’, a doxa (crença) substituiu a episteme (conhecimento) na ordem de legitimidade, constituindo-se assim numa espécie de renovada Teoria dos Três Estágios (Auguste Comte), embora numa versão antipositivista.
O plano geral do pós-modernismo, que passou por de sucessivas edições, consistia basicamente em promover transvestimentos culturais dos modelos sob suspeita, os quais eram colocados sob o holofote, como próximas vítimas a serem desfiguradas. O método era o mais elementar: colocar-se no lugar dos modelos assinalados e deixá-los numa situação de stand by, descolocados, deslocalizados: saia você para eu poder entrar. Tal proeza é conhecida pelo nome de ‘empatia’, uma tendência emocional supostamente muito solidária e caritativa, embora inteiramente destituída de ironia.
A estratégia mencionada, embora presumivelmente transformadora e rompedora, é muito antiga. Funciona introduzindo-se (infiltrando-se) no interior das estruturas tidas como ‘decadentes’ a fim de ‘transformá-las, usando o linguajar marxista ou pós-marxista, e assim adaptá-las, com nova terminologia e imagem, aos novos fins pretendidos. Os organismos, os movimentos e as instituições que no fundo sabem-se debilitadas (porque o são), lhes convém evitar o enfrentamento direto, o corpo a corpo com o adversário superior. Outras táticas mais sinuosas desempenham a função da substituição, por exemplo, o trabalho paciente de cavar que acaba solapando as defesas e as resistências do forte; o envenenamento intelectual, em pequenas doses, do adversário; o dobramento, o engano e a fraude; a contumácia e a tenacidade; a propaganda e a repetição. Entretanto, o propósito principal da desconstrução era a desmoralização do oponente (e, por extensão, de toda a sociedade), uma nova versão da transvaloração dos valores (Friedrich Nietzsche) reduzida à versão pedestre ‘fraca’ e desnaturalizada.
3
Na denominada ‘era pós-metafísica’, cuja existência e circunstâncias apenas os muito entendidos podiam dar fé, a razão constituía um ídolo a ser derrubado. Tal propósito era proclamado em nome de nada menos que a racionalidade. Gianni Vattimo, por exemplo, que não é tão ingênuo assim para rejeitar a racionalidade no seu conjunto, aceita – que remédio – a ‘racionalidade hermenêutica’, ou seja, aquela que situa o debate no terreno exclusivo da interpretação, em que não há outros atos senão os linguísticos (pág. 20). E tal desideratum deve ser entendido como um fatum (destino, fatalidade, fatuidade), e nunca como um factum (fato).
Richard Rorty, que não seria menos ingênuo, também não tem nada contra a racionalidade, desde que ‘a racionalidade seja identificada com o esforço para alcançar um consenso universal intersubjetivo e a verdade é o resultado de tal esforço’. E o que dissemos da razão e da racionalidade, também deve aplicar-se a outros conceitos em projeto de reconversão ou de transvestimento cultural, a saber: ‘diálogo’, ‘consenso’, ‘interpretação’, ‘universal’, ‘niilismo’, ‘democracia’, e, porque não, ‘solidariedade, caridade, ironia’, as noções que aparecem selecionadas no subtítulo do referido livro.
É verdadeiramente portentoso neste caso que semelhante iniciativa – a ‘pós-moderna’ – tenha tomado (em vão) Nietzsche como um de seus inspiradores, profetas e legitimadores. Justamente Nietzsche, o filósofo que dissecou com a precisão de um (hábil) cirurgião a carniça do ressentimento! Ou talvez precisamente por isso mesmo… Eis aqui uma aplicação modelar do método de transvestimento que acabamos de mostrar como característico do proceder pós-moderno. A apropriação integral da filosofia de Nietzsche foi, depois de tudo, pouco mais que uma maquilagem, um retoque e um reajuste conceitual à base de umas poucas frases escolhidas ad hoc, com a finalidade de compor um discurso interrompido, e que se pretendia ser intempestivo, pós-revolucionário, e bem próprio da Nova Era. E, com os adágios armados em conformidade com o manual de substituições, elas eram enforcadas (de brincadeira) nos ombros do solitário de Sils-Maria para que assim carregasse a cruz da ‘pós-modernidade’. Nietzsche: ecce homo…
Na realidade, a promoção urbi et orbe de um ‘Nietzsche pós-moderno’ (também ocorreu com muitos outros autores clássicos) foi possível graças às particulares (e altamente opiniosas) interpretações da obra do filósofo alemão, entre os da vanguarda da confraria pós-moderna, primeiramente, Gilles Deleuze e Michel Foucault, e posteriormente, Jacques Derrida e Gianni Vattimo. Não entrarei agora em disputas sobre citações, verdades por correspondência para ver quem é que tem ‘razão’! Porque o caso, felizmente, está encerrado.
Limito-me neste ponto a destacar a impertinência de determinados jogos de linguagem às custas de um autor – Friedrich Nietzsche –, que, de mestre dos aforismos, era transformado indistintamente em farol do nazismo, feroz antissemita, líder do situacionismo, ideólogo do anarquismo ou campeão do ‘pós-modernismo’, muitas vezes em continuada sucessão. Ocorria uma circunstância ou outra, ou todas de uma só vez, como era conveniente ao intérprete do momento, resgatar apenas determinados aforismos das centenas que o filósofo nascido em Röcken escreveu, e, certamente, alguns dos quais muito suscetíveis a qualquer tipo de interpretação (recordemo-nos a grande a quantidade de literatura produzida em torno da célebre expressão ‘besta vermelha’, que foi uma dentre as muitas que Nietzsche escreveu em A Genealogia da Moral).
Se não há troca de bofetadas na hora de fazer de Nietzsche o paladino do niilismo e do ‘pensamento fraco’, então como se pode estranhar que Rorty e Vattimo duvidassem na hora de reconverter, transvestir, ou melhor, deslocalizar Deus, arremetendo sem contemplações, contra o ‘fundamentalismo’ na religião cristã, mas apenas na religião cristã, como se o ‘fundamentalismo cristão’ fosse tema da atualidade e o mais preocupante dos fundamentalismos realmente existentes? Eis aqui o tema central do livro O Futuro da Religião, ou como fazer o cristianismo passar pela trituradora do ‘pensamento fraco’ e convertê-lo em aríete (e ao mesmo tempo em vítima) do projeto deconstrucionista**. O plano ali proposto pode ser resumido nas seguintes etapas:
1. Fazer do anterior Criador do mundo, simplesmente e coerentemente, um ‘Deus fraco’, cuja justificação se limita à citação de alguns versículos, convenientemente escolhidos. Por exemplo, este de São Paulo: ‘Quando me sinto fraco, então é que sou forte’ (Coríntios, 12, 10).
2. Deus, na religião do futuro, já não estará nos Céus, e sim deslocalizado. Na ‘condição pós-moderna’, Deus vê diminuir a sua potência, ou vontade de poder, até um nível humano, mas por acaso demasiadamente humano, até o ponto de – num arrebato de democratismo e igualitarismo atrevidíssimo – ser convertido em mais um cidadão, um companheiro, um colega, um ‘amigo’, sempre em pé de igualdade de direitos e deveres com os demais. Nietzsche, sem dúvida, tratava os deuses com muito mais respeito do que os seus presumidos intérpretes.
3. O cristianismo que é de ‘verdade’ (não da maneira ‘dogmática’, ‘substancial’ ou ‘metafísica’), encabeça a ‘Era da Interpretação’ com as reivindicações que são mais new age. Nessa nova missão, abandona arcaicos e superados objetivos (o missionário e o evangelizador, por exemplo: ‘A religião não metafísica é também uma religiosidade não missionária’), para passar a assumir com fervor, e mesmo para advogar, o matrimônio de homossexuais, a eutanásia, a fecundação in vitro, o aborto, o uso libertador dos preservativos, o sacerdócio feminino e tudo o que é preciso para ficar para além do bem e do mal, e mais além ainda do ateísmo e do teísmo.
4. O futuro da religião, segundo Rorty e Vattimo, passa por legitimar o expediente debilitador da cultura, debitando-o na conta do próprio cristianismo. É a mensagem dita cristã, a que nega o ‘princípio de realidade’ quando, em outra vez, São Paulo declara: ‘Onde está ó morte a tua vitória?’ (Coríntios, 15, 54-55); e o mesmo abençoa a ética do diálogo e da conversação sem limites como fonte de entendimento, consenso e verdade pragmática, por exemplo, por meio desta pregação: ‘Pois onde estiverem reunidos, em Meu nome, dois ou três, Eu estou no meio deles’ (Mateus, 18, 20).
Pois bem, dir-se-ia que Rorty e Vattimo reuniram-se (ou conjuraram) em nome do Deus fraco e pós-moderno com a finalidade de decidir sobre o seu jubiloso futuro, que não é outro senão a aposentadoria… E devemos supor, também, que Ele estava ali com ambos os filósofos (numa imitação sacrílega da Santíssima Trindade), certificando com a sua presença e amparo a desconstrução do cristianismo. Talvez por isso dizem o que dizem com tanta desenvoltura e frescor, porque tomam como certo que, graças ao espírito evangélico, sempre terão a compaixão ou o perdão: ‘Perdoai-lhes, ó Pai, porque não sabem o que fazem’. (Lucas, 23, 33-34). E nem o que dizem.
Fernando Rodríguez Genovés é escritor, ensaísta, crítico literário e analista cinematográfico, e, ainda, professor de Filosofia em afastamento voluntário. Autor de 11 livros e mantenedor de diversos blogs, o Dr. Genovés é fundador e colaborador habitual de El Catoblepas, revista crítica do presente, de periodicidade mensal, publicada desde 2002.
Notas
* Versão corrigida e adaptada aos novos tempos do meu texto «Cristianismo reconstruído», resenha do livro de Richard Rorty e Gianni Vattimo, El futuro de la religión. Solidariedade, caridade, ironia, paidós, Barcelona, 2006, publicado em Anthropos. Revista, nº 217, «Especial Gianno Vattimo. Hemeneusis e historicidade», Barcelona, 2008, págs. 194-196.
** Posterior a este projeto, outros livros de Gianni Vattimo podem ser citados: After the death of God, (em coautoria com John D. Caputo), Editado por Jeffrey W. Robbins, Columbia University Press, 2006.; Christianity, truth, and weak faith (coauthor, René Girard), Editado por P. Antonello, Columbia University Press, 2009; Not being God: a collaborative autobiography (co-autor, Piergiorgio Paterlini), New York: Columbia University Press, 2009.”
Trandução: Joaquina Pires-O’Brien
Como citar este artigo:
Genovés, F. R. (2014). O que foi feito do pós-modernismo e seu delírio desconstruidor e iconoclasta? PortVitoria, UK, v. 9, Jul-Dec, 2014. ISSN 2044-8236, https://portvitoria.com