Os mares de ontem e de hoje

Juan José Morales

Resenha do livro The sea and civilization (O mar e a civilização), de Lincoln Paine. Knopf, New York, Outubro 2013; Atlantic Books, Londres, 2014. ISBN: 978-1-78239-355-9.

Embora mais de setenta por cento da superfície da terra seja coberta por água, de modo geral não é percebido ou aceito que a história do mundo é, de fato, uma história marítima. O livro The sea and civilization (O mar e a civilização) de Lincoln Paine busca corroborar isso. Trata-se de uma obra ambiciosa de mais de 700 páginas lotadas de fatos e dos pormenores que contam a história da humanidade pela perspectiva da nossa relação com os oceanos e mares, bem como com os lagos, rios e canais. Nesse livro, Paine procura mostrar que as inter-relações e as influências mútuas entre o homem e o mar são a condição prevalente na história do mundo, e não a exceção. O sucesso desse esforço reside no fato de que a ideia implícita de que a relação do homem com o mar tem sido uma força propulsora da história humana torna-se evidente no final do livro.

Tomando inspiração no clássico e influente livro The Mediterranean and the Mediterranean world in the age of Philip II (O Mediterrâneo e o mundo Mediterrâneo na era de Felipe II) de Fernand Braudel, Paine explora a tendência recente na análise das inter-relações entre a geografia, a economia, a política, as historiografias militar e cultural, e o papel específico do mar e da água.

Os navegadores avançados mais antigos foram provavelmente os habitantes da Melanésia, Micronésia e da Polinésia, embora o modo como eles atingiram as ilhas mais remotas do Pacífico permanece um enigma. Assim como noutras áreas da história antiga, o nosso conhecimento é limitado pela escassez de registros, por sua vez agravados pela improbabilidade de encontrar relíquias submersas e pelas dificuldades da arqueologia marinha.

As evidências se tornam mais claras nos períodos históricos mais próximos do nosso próprio, permitindo-nos ganhar uma razoável compreensão do panorama total, desde as canoas de casca de bétula dos remadores indígenas da América do Norte, as embarcações de peles do Ártico, aos intrépidos Vikings e suas explorações desde o Mediterrâneo até onde é hoje a Newfoundland no Canada.

Em nenhum outro local as condições para a interação cultural foram mais favoráveis do que no Mediterrâneo; a sua natureza circunscrita e as suas curtas distâncias, bem como as suas previsíveis correntes e ventos, foram cruciais para as civilizações que ali floresceram durante milênios. A vela é sabida como tendo surgida por volta de 3000 a.C. no Egito. Os mastros duplos foram empregados primeiramente pelos etruscos. Os fenícios expandiram para o oeste a sua malha de comércio em competição com os gregos, e foram os primeiros a construir embarcações diferentes para o comércio e para a guerra.

Não é de se surpreender que a história marítima do mundo rapidamente se transformasse na história do comércio internacional, pois os instrumentos financeiros e legais voltados a facilitar a troca de mercadorias entre povos de culturas diferentes surgiram da conexão com o mar. Mercadorias básicas e de luxo, bem como, lamentavelmente, escravos, eram comercializadas pelo mar, que foi também o conduíte de ideias, religiões e da palavra escrita.

Dentre os vestígios mais antigos da língua grega encontra-se uma taça inscrita com os nomes ‘Nestor e Afrodite’, encontrada na ilha de Ischia na Baía de Nápoles; ela só poderia ter sido levada para lá num navio. As viagens marítimas são ressaltadas no épico Gilgamesh da Mesopotâmia antiga, cujos ecos foram deixados na Bíblia e nos dois Épicos de Homero, a Ilíada e a Odisseia. As narrativas budistas reunidas no Jataka são também uma importante fonte sobre as incursões marítimas indianas. E como exemplo dos conflitos humanos que tiveram por palco o mar, Ésquilo (c. 525-c. 456 a.C.) lutou na batalha de Salamis, e Cervantes (1547-1616) na do Lepanto.

O livro de Paine cobre também a rica porém mal conhecida história marítima dos Mares de Monções, do Oceano Índico e dos mares do Sudeste da Ásia.

A China é também abordada extensivamente: o surgimento e a expansão da civilização chinesa foram possíveis pelo aproveitamento dos rios Amarelo e Yangtse e pela construção de uma notável rede de canais. Esse conhecimento sobre a navegação interiorana mais tarde facilitaria a exposição da China ao mar aberto, permitindo que deixasse a sua pegada cultural, religiosa e política nas localidades vizinhas como o Japão, a Coreia e o Sudeste da Ásia. Os elementos não marinhos são sobrepostos à narrativa, alguns particularmente bem explicados, como a influência da curta dinastia Sui no florescimento de sua sucedânea, Tang, ou o contexto da represália contra o budismo ocorrida em meados do nono século.

The Sea and civilization é uma narrativa coerente das civilizações do mundo e não uma história da navegação. Embora os aspectos principais sobre os diversos tipos de embarcações e o desenvolvimento da tecnologia de embarcações estejam entremeados por toda a narrativa, a discussão acerca dos livros de navegação mais antigos é fragmentária; a bússola mereceu pelo menos uma entrada no índice mas a longitude, nenhuma, enquanto a relevante invenção do relógio marítimo é coberta por um só parágrafo, enquanto que o seu inventor, John Harrison, é mencionado apenas uma vez.

A tecnologia, entretanto, teve o seu papel e Paine dá à mesma o justo espaço, notando, por exemplo, a fundamental mudança na construção de navios ocorrida no Mediterrâneo no início da Idade Média, quando os construtores navais pararam de construir embarcações pelo casco, e passando a construí-las pela armação. Trata-se de um método muito mais prático e que, em última análise, permitiu a expansão europeia através do Atlântico e mais além, até à Ásia.

Não é difícil concordar com o autor quando ele ressalta como sendo os principais feitos da navegação de todas as épocas, a travessia do Atlântico de Colombo em 1492, a viagem de Vasco da Gama à Índia através do Cabo da Boa Esperança em 1498, a expedição Magalhães-Elcano de circumnavegação da Terra de 1519 a 1522; e a primeira travessia oeste-leste do Pacífico por Urdaneta em 1565.

Na idade da navegação a velas, os feitos acima listados não foram fáceis pois ocorreram antes de Urdaneta ter descoberto as correntes e ventos certos, quando muitos tripulantes espanhóis se perderam no mar. No fim das contas, tais viagens inauguraram a era da verdadeira interdependência global.

E o mundo desse ponto em diante, se não ficou necessariamente melhor, passou a ser melhor compreendido. A humanidade caminhou da adaptação e domínio dos mares para, no presente, pôr em perigo o ambiente marinho que nutriu, em primeiro lugar, a civilização. Este livro é uma convocação para salvá-lo.
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Juan José Morales é um advogado e consultor espanhol que escreve para a revista espanhola Compromiso Empresarial. Ex-Presidente da Câmara Espanhola do Comércio em Hong Kong, Morales estudou relações internacionais na Peking University (Beida) e possui um mestrado em Assuntos Internacionais e Públicos pela Universidade de Hong Kong.

Republicado de
© 2014 Asian Review of Books &
Juan José Morales
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Tradutora: Joaquina Pires-O’Brien

Como citar este artigo:
PAINE, l. The sea and civilization: A maritime history of the world. London, Atlantic Books, 2014. Resenha de: MORALES, J. J. Os mares de ontem e de hoje.  PortVitoria, UK, v. 9, Jul-Dec, 2014. ISSN 2044-8236, https://portvitoria.com