Sobre a cultura ibérica
Joaquina Pires-O’Brien
‘O livre comércio universal sem dúvida seria economicamente benéfico à humanidade, se não fosse pela suspeita e animosidade que as nações sentem umas pelas outras. Do ponto de vista de preservar a paz mundial, o livre comércio entre diferentes Estados civilizados não é tão importante quanto a porta aberta em suas dependências’. Bertrand Russell.
No contexto mundial a Cultura Ibérica é uma subcultura da Civilização do Oeste ou Civilização Ocidental. Obscurecida por muito tempo pelo nacionalismo, a cultura ibérica teve um ressurgimento no final do século vinte como antagonista da globalização. O salto das telecomunicações através das tecnologias de satélites, telefonia celular, computação e internet coincidiu com a organização da Comunidade Lusófona internacional na década de oitenta e com o fortalecimento do ibero-americanismo e ibero-africanismo. No século vinte e um, o espanhol e o português ganharam respeitabilidade, passando a ocupar o 4º e o 5º lugares entre as línguas mais faladas de todo o mundo, representando um tremendo potencial de vantagens comerciais a ser explorado.
O ressurgimento da cultura ibérica assustou os que o entenderam como um disfarce do ‘iberismo’, movimento que defende o federalismo político da Península Ibérica, e suscitou a preocupação com a sobrevivência do português e do espanhol caso a maioria da população decida adotar o ‘portunhol’, dialeto formado pela mistura das duas línguas e já presente ao norte do Uruguai. Apesar do risco às soberanias, a cultura ibérica tem sido uma força positiva na preservação do pluralismo cultural não só da Espanha e de Portugal, mas também dos outros países da cultura ibérica. Quanto aosriscos de depreciação do português e do espanhol, é possível minimizá-los através da educação secundária formal e outras medidas.
Galiza, a província do norte da Espanha que originou o português de Portugal é hoje parte da Comunidade Lusófona Internacional da qual fazem parte Portugal, Brasil, Angola, Cabo Verde, Guiné Bissau, Moçambique, São Tomé e Príncipe e Timor Leste. Coincidência ou não, a porcentagem dos galicianos que falam o galego-português aumentou desde a criação da Comunidade Lusófona Internacional. A participação da Galiza na Comunidade Lusófona tem despertado a curiosidade dos falantes de português de todo o mundo nessa interessantíssima região onde o português se originou. Na mesma época em que a Comunidade Lusófona Internacional era formada, o escritor brasileiro Paulo Coelho percorreu a pé seus quase 700 quilômetros partindo do sul da França até a cidade de Santiago de Compostela. Essa peregrinação virou o tema do seu primeiro livro, O diário de um mago, que contribuiu para divulgar a importância cultural tanto de Santiago de Compostela quanto da própria Ibéria.
Em junho de 2011 eu visitei a Galiza com a meu marido inglês, que tendo aprendido o português do Brasil, teve menos dificuldade em entender o galego-português que ouviu em Santiago de Compostela do que em entender o português do Norte de Portugal numa viagem anterior. A visita à Galiza aumentou a minha curiosidade pela Cultura Ibérica, gerando o resumido apanhado de história ibérica aqui apresentado, cujo objetivo é apenas de dar uma ideia geral de como era a Ibéria até o desmembramento de Portugal da Galiza.
Um apanhado da história da Península Ibérica
Portugal e Espanha, os dois países-estado da Península Ibérica, são considerados Estados parentes (kin states) pelo fato decompartilharem uma ou mais etnias. Antes de serem países independentes e soberanos, Portugal e Espanha faziam parte da Hispania do Império Romano, e como tal que existiu de 217 aC a 409 dC.
Embora a queda do Império Romano tivesse ocorrido em 476, Roma já havia perdido a Ibéria para os visigodos e vândalos desde o ano 411. Esses povos bárbaros, a maioria originária da área sudoeste da Escandinávia, há séculos tentavam se estabelecer na região mas eram impedidos pelos romanos. A divisão da Ibéria foi da seguinte forma:
• Alanos: Lusitânia e Cartaginense
• Vândalos silingos: Bética
• Vândalos asdingos e suevos: Galiza
Os suevos e os vândalos asdingos ficaram com a Galaecia, e a transformaram no ‘Galaeciorum regnum’, ou reino da Galiza, que incluía quase todo o norte de Portugal até o sul de Coimbra. Entretanto, a divisão acima durou pouco, pois em 416 vândalos silingos e os alanos foram exterminados pelos visigodos.
O fato marcante do século seis foi a reconversão dos líderes visigodos à modalidade de cristianismo do Império Bizantino, através do missionário San Martín de Braga ou de Dumio. Antes disso eles seguiam o arianismo, uma das variedades do cristianismo inicial pregado pelo presbítero Árius da Alexandria, que afirmava que Jesus era um ser criado e, portanto, não poderia ser Deus, ou que pelo menos durante algum tempo ele não tinha a substância divina.
No século seguinte, o sétimo, o mapa da Europa mudou de novo, pois uma estreita faixa ao sul da Ibéria e da Itália foi conquistada pelo Império Romano do Oriente (Bizantino), enquanto que o reino dos francos se estabeleceu.
E o século oito, este foi marcado pela invasão muçulmana da Península Ibérica em 711. Em 732 os muçulmanos tentaram invadir a França, mas foram derrotados por Carlos Martel, o avô de Carlos Magno. E em 768, Carlos Magno ascendeu ao trono da França com seu irmão Carlomano, mas depois da morte deste, continuou sozinho e começou a construir o Império Carolíngio.
A invasão muçulmana (moura) e o Reino de Astúrias
Em 772, no início da era carolíngia, uma boa parte da Ibéria, com exceção do Reino das Astúrias, ao norte, passou a fazer parte do Emirado de Córdoba.O reino de Astúrias incluía a Galiza mais uma pequena área do território Basco. Pela densa população e pela geografia, Astúrias foi a única região da Ibéria que escapou do domínio muçulmano. Afora Astúrias, algumas comunidades cristãs permaneceram na Moçarábica, cujos habitantes, os moçarábicos eram antigos muçulmanos convertidos ao cristianismo, e cuja língua, o moçarábico, é considerada uma variedade do latim ibérico.
No final do século oito, Astúrias sofreu uma série de ataques dos árabes do emirado de Córdoba. O rei Afonso II, o Casto (791-842), pediu ajuda militar a Carlos Magno, que atendeu o pedido. Entretanto, nem todos os sucessos contra os árabes muçulmanos são atribuíveis à ajuda militar dos francos. O exército de Astúrias sozinho conseguiu recapturar a cidade de Olisipo, a atual Lisboa.
Embora no início da invasão muçulmana o Reino de Astúrias tivesse conseguido se preservar devido a certas características da sua geografia, sua preservação em longo prazo é atribuída à descoberta, no ano de 814, do suposto túmulo do apóstolo Tiago (James, em inglês), por um eremita chamado Pelágio. Inicialmente uma capela foi construída no local do túmulo de Santiago, mas, em 829 d.C., tal capela foi substituída por uma igreja, e esta por outra em 899, que passou a ser o maior centro de peregrinação cristã na Europa. Em 997 a segunda igreja de Santiago de Compostela foi destruída por um ataque do califa de Córdoba, em resultado do qual os portões e os sinos desta igreja foram levados e colocados na Mesquita Aljama de Córdoba.
No século dez o mapa da Ibéria também sofreu diversas mudanças. O Emirado de Córdoba ficou menor e passou a ser chamado Califado de Córdoba. O Reino de Astúrias, depois de sofrer diversas derrotas, acabou desaparecendo e em seu lugar surgiram os reinos de Leão, Castela, Navarra e as províncias catalãs.
Embora o principal bispado da Galiza localizasse inicialmente na cidade de Braga, o aumento da importância de Santiago de Compostela, que virou um centro de peregrinação ao do túmulo do Apóstolo Tiago, fez com que sua diocese não aceitasse ficar sob a jurisdição do bispado de Braga fazendo com que este se mudasse para Santiago, ao qual Braga ficou submissa. Esse acontecimento foi o início da rivalidade religiosa e política entre Portugal e Espanha que ainda perdura até hoje.
A construção da catedral de Santiago de Compostela começou em 1075, no reinado de Afonso VI (1040-1109), e foi consagrada em 1128, na presença de Afonso IX de Leão e Castela.
O Reino de Leão e Castela (León e Castilla)
O Reino de Leão (Galiza-Leão) foi formado a partir do casamento da herdeira de Leão com o rei de Navarra, Sancho III (982-1035). Depois da morte de Sancho III, Castela passou a ser governada pelo seu filho Fernando I, que eventualmente se apossou do reino de Leão e incorporou-o a Castela, criando assim o Reino de Leão e Castela.
Um problema constante de Leão e Castela era a invasão muçulmana e os reis católicos de Leão e Castela ficaram com a incumbência de expulsar esses invasores da Península Ibérica. A aparente estratégia do novo reino contra a ameaça muçulmana foi promover extensivamente a fé cristã.
Antes de morrer, o primeiro rei de Leão e Castela, Fernando I, repartiu as suas terras com seus filhos e filha. Castela ficou com Sancho, o mais velho; Leão ficou com Afonso; e a faixa ocidental cristã do antigo reino da Galiza ficou com Garcia, o mais novo. O arranjo testamental não deu certo pois Sancho achava que sendo o mais velho ele deveria ter herdado tudo, enquanto que Afonso também ambicionava ampliar seus territórios. Sancho e Afonso derrotaram Garcia e apoderaram-se de seu reino, mas depois disso eles se voltaram um contra o outro. Sancho morreu e Afonso, então com o título de Afonso VI, ficou com tudo.
Na história de Leão e Castela, o grande marco histórico viria bem mais tarde, em 1236, quando o rei Fernando III conseguiu retomar Córdoba. Após a retomada, os mesmos portões e sinos da catedral de Santiago de Compostela foram levados para Toledo onde foram colocados na Catedral de Santa Maria de Toledo.
O condado Portucalense: O novo reino de Afonso Henriques
O rei Afonso VI de Leão e Castela, o mesmo que havia dado início à construção da catedral de Santiago de Compostela, entrou para a história pela complicada vida amorosa. Apesar de ter tido diversas esposas e amantes, ele deixou apenas três filhas, duas ilegítimas, Teresa e Elvira, que teve com Ximena, filha dos condes de Bierzo, e neta de Fernando I o Magno (1016-1065), o reconquistador, maus uma legítima, Urraca (o mesmo nome de sua irmã), com Constança, filha do duque de Borgonha. Afonso VI também teve um caso com Zaida, uma princesa muçulmana que era nora do rei de Sevilha, que havia se refugiado na sua corte depois que o sogro foi morto pelos almorávidas em 1091. Quando em 1091 Urraca se casoucom Raimundo, filho de Guilherme, conde da Borgonha, o casal ficou incumbido de governar Galiza.
Teresa e Elvira, as filhas ilegítimas do rei Afonso VI, foram morar com a mãe Inês, no Castelo de Ulver, que Inês, havia recebido como uma compensação quando o rei resolveu deixá-la para se casar com Constança. Em 1094, Elvira se casou com o conde Raimundo de Saint Gilles, uma das linhagens mais antigas da Cristandade, e em 1095 Teresa se casou com D. Henrique, 4º filho do duque de Borgonha, também de descendência bastante nobre, sendo inclusive sobrinho por parte de pai da própria Constança, a segunda mulher de Afonso VI de Leão e Castela, e primo em primeiro grau de Urraca. Assim, as duas meias irmãs passaram a ser primas por afinidade. D. Henrique havia vindo para a Península Ibérica em busca de oportunidades, e encontrou-as na luta pela Reconquista e no casamento com Teresa, em resultado dos quais ele ganhou o governo do Condado de Portucale, que ficava logo ao sul da antiga Galiza. Henrique de Borgonha, o marido de Teresa, passou a ser conde de Portucale, mas morreu pouco tempo depois, com Teresa ficando viúva ainda na casa dos vinte anos, com um filho pequeno, Afonso Henriques.
Quando Afonso Henriques tinha apenas dezessete anos ele lutou contra a autoridade da Galiza e declarou a independência do Condado de Portucale. Para isso ele recebeu a ajuda dos padres de Braga, que buscavam na criação do um novo país, uma oportunidade de recuperar o prestígio que haviam perdido para Santiago de Compostela junto à Igreja de Roma.
Afonso Henriques teve um longo reinado que durou 60 anos. O seu início foi coroado de batalhas contra os Mouros, culminando com a sua vitória na Batalha de Ourique de 1139. Essa vitória virou o tema do brasão de Portugal, com os seus cinco escudos e cinco quinas, cada qual com cinco bolas representando os cinco reis mouros degolados na batalha. Entretanto, o reconhecimento dele como rei pela Igreja Católica de Roma, mesmo com o apadrinhamento dos clérigos, só aconteceu no ano de 1179, ou seja, trinta anos depois da Batalha de Ourique de 1139. Todavia, o demorado reconhecimento da realeza de Afonso Henriques pela Igreja Católica de Roma veio acompanhado do reconhecimento do Reino de Portugal. Afonso Henriques se casou com Mafalda de Saboia em 1143, e com ela teve sete filhos inclusive o herdeiro Sancho.
E o mapa da Ibéria no século doze passa a ter quatro reinos: Navarra, Castela, Aragão e Portugal.
Conclusão
Este brevíssimo apanhado da história ibérica mostra que a Ibéria já teve diversos mapas, que Portugal já pertenceu à Galiza e que há sempre interesses de poder e de prestígio nas relações diplomáticas entre as nações. Mas se a História universal está repleta de evidências de que os nacionalismos são uma constante ameaça à paz, ela também mostra o comércio como uma ferramenta para mante-los sob controle. Até agora, a globalização do comércio, em termos de desburocratização do trânsito de cargas internacional e da redução de tarifas, tem sido positiva, pelo menos para as nações que dispõe de mão de obra especializada. Mas o comércio internacional não é feito só de bens materiais pois indiretamente ele envolve bens intangíveis como a cultura. A Cultura Ibérica unida é muito maior do que a soma das culturas de todas as suas nações.
Referências
Black, Jeremy, editor. Atlas of World History. London: D, 1999.
Coelho, Paulo. O diário de um mago. Editora Rocco, 1988.
Oliveira, Ana Rodrigues. Rainhas medievais de Portugal. Lisboa: A Esfera dos Livros, 2010.
Parkinson, C. N. East and West. London, John Murray, 1963.