Os turcos na Europa
Joaquina Pires-O’Brien
Resenha do livro Sultans of Rome. The Turkish world expansion. (Os sultões de Roma. A expansão turca no mundo), de Warwick Ball. London, East & West Publishing, 2012).
Para Warwick Ball (WB), um arqueólogo australiano com extensa experiência em culturas antigas, não existe uma pura cultura Ocidental ou Oriental. Há bastante evidência arqueológica do intercâmbio cultural entre a cultura ocidental e a oriental resultante das incursões feitas nos territórios uns dos outros. WB reconhece o fato de que ‘cada cultura enxerga a história em relação a si própria’. Entretanto, reconhece também que conceito ‘Oeste versus Leste’ é errado, e que impede que a Europa reconheça os elementos orientais de sua cultura. Sultans of Rome trata dos turcos na Europa. É o terceiro livro de uma série de quatro intitulada ‘Asia in Europe and the Making of the West’, da East & West Publishing. O título deste livro foi tirado de uma citação dos turcos Seljúcidas após a vitória destes contra o exército bizantino do Imperador Romanes IV, em Manzikerta, em 1071, quando eles se declararam ser os novos sultões dos ‘Rum’, ou seja, da ‘terra dos Romanos’. Os outros três livros da referida série tratam dos fenícios e árabes (volume 1), dos persas (volume 2) e dos povos da estepe eurasiana conhecidos coletivamente como cíticos (volume 4).
Talvez por terem sido os últimos a chegar na Europa, ou talvez por seguirem uma nova religião que ameaçava a cristandade, ou ambas as coisas, os turcos atraíram uma má publicidade na Europa em comparação como outros povos orientais que ali se assentaram. O exemplo clássico disso é a representação dos otomanos que sitiaram Viena em 1683 como sendo asiáticos rudes e bárbaros. Entretanto, eles já viviam há mais de mil anos na Europa, e portanto a sua invasão não era diferente da dos romanos ou dos normandos. O outro exemplo que WB cita é mais recente. Trata-se da relutância da União Europeia (UE) de admitir a República da Turquia com membro. WB argumenta que o principal motivo pelo qual a Turquia não foi aceita como membro da UE é a continuada tensão entre a Europa e os muçulmanos, o que é uma justificativa inválida considerando que o secularismo é um dos pilares mais sagrados da EU.
WB começa a sua discussão sobre os turcos na Europa com as perguntas ‘o que é a Europa?’ e ‘o que é um turco?’ Pode surpreender a muitos leitores o fato de que a população da Turquia atual não se identifica como turca, pelo menos no sentido étnico, referindo-se a si próprios como anatolianos. WB cita comportamentos similares noutros países. A população da Bulgária considera-se eslava embora o próprio nome do país vem de ‘búlgaros’, uma tribo turca. Outro exemplo é o caso dos habitantes de uma região do meio do rio Volga que era habitada por turcos que ali permaneceram, e que hoje em dia se identificam como tártaros. WB cita o antropólogo social Fredrik Barth, que afirmou que ‘a identidade do grupo não passa de uma conveniência do momento’, o que ele julga correto, uma vez que leva em conta o fato de que as pessoas podem ter mais do que uma identidade.
O livro de WB é bastante acadêmico, mas as suas ilustrações, que consistem de 8 mapas e 98 pranchas coloridas, o torna acessível ao leitor leigo. As pranchas são úteis para capturar a imaginação do leitor sobre quem eram os turcos. Os mapas ajudam a entender as rotas de migração dos turcos: O mapa 1 mostra onde no mundo a língua turca é falada – não apenas na Turquia mas também em Quirguistão, Cazaquistão, Uzbequistão, Turquemenistão, e Azerbaijão. Entretanto, no texto do seu livro WB explica que existe significativas minorias turca na China, Rússia, Afeganistão, Irã, Chipre, Bulgária e Ucrânia. O mapa 2 mostra as áreas do mundo que em 2011 eram servidas pelas Aerolínhas Turcas. O mapa 3 delineia o primeiro e o segundo império turco, bem como as fronteiras do império sassânida, o último império persa antes da conquista turco muçulmana. O mapa 4 mostra as fronteiras dos impérios Gaznavida e Karakhanida. O império Gaznavida era o mais importante da Idade Média e o primeiro a levar o Islã até a Índia numa escala substancial. O ‘kagnato’ (império) Karakhanida era o original, que foi posteriormente subdividido nos ramos Oeste e Leste. Os karakhanidas são especialmente reconhecidos por terem introduzido a escrita turca no século onze. O mapa 5 mostra o império Seljúcida, na Anatólia e no Irã, ocupando uma área similar à do antigo império Aquemênida (persa). O mapa 6 mostra os territórios ocupados pelos seljúcidas na Anatólia em 1086 e em 1243. O mapa 7 mostra a distribuição dos turcos no mundo, incluindo os seus três grandes impérios: o Otomano (Anatólia, Norte da África, Israel, Líbano, Síria e Iraque), o Safávide (Irã, Turquemenistão e Afeganistão) e o Moghul (Índia). O mapa 8 mostra o Império Otomano no seu ponto mais alto, ocupando toda a região dos Balcãs – cujo nome vem das montanhas Balcãs do Sudeste da Europa, região que se estende do leste da Sérvia ao Mar Negro até o lesta da Bulgária, incluindo a Albânia, Bósnia & Herzegovina, Bulgária, Croácia, Grécia, Kosovo, República da Macedônia, Montenegro, Sérvia, Eslovênia e a porção europeia da Turquia –, bem como o Norte da África, Israel & Palestina, Líbano, Síria, Norte do Irã, Azerbaijão, Armênia e Geórgia.
Embora comumente ouvirmos referências à uma língua turca, na realidade não há uma língua turca mas muitas. Essas são classificadas num dos três troncos do grupo linguístico Altaico, juntamente com o mongol e o manchu-tungue. Embora o turco tivesse ganho uma forma escrita ainda no século oito, na Mongólia, com base na escrita arábica, a escrita turca só ficou estabelecida no século onze, também com base na escrita arábica. Eventualmente, quase todos os países falantes de turco mudaram para o alfabeto latino. Uma exceção é a dos uighures, uma das minorias turcas da China, que ainda usam a escrita arábica.
Antes de sua islamização, os turcos da China, Mongólia e das estepes eurasianas experimentaram diversas religiões como o zoroastrianismo, o maniqueísmo e até o cristianismo nestoriano. Em algum ponto eles abraçaram o budismo e o adotaram como religião oficial, apesar do budismo ser uma filosofia e não uma religião no sentido ordinário. A Europa encontrou os turcos depois da islamização destes, sob intimidação, o que ocorreu após a internacionalização do Islã, logo após a Revolução Abássida de 750, quando o califado foi mudado de Damasco para Bagdad. No ano 824 os árabes penetraram nas estepes de Oghuz (Cazaquistão) e capturaram cerca de dois mil turcos, que eles presentearam como escravos ao califa al-Mutawakkil. Tais escravos foram os primeiros turcos a entrar no Iraque. Um mercado de escravos turcos foi estabelecido onde crianças turcas eram sistematicamente tomadas como escravos. Um paralelo interessante que WB traça é com a metáfora europeia do ‘selvagem nobre’. Quando os turcos foram primeiramente mostrados aos árabes eles eram tidos como belos e bárbaros, da mesma maneira como os índios do Novo Mundo seriam percebidos pela Europa Ocidental daí a quase mil anos.
Os escravos turcos no Oriente Médio e no Norte da África eram conhecidos como ghulamos ou mamelucos. Eles se distinguiram como guerreiros, e foram colocados para servir em unidades especiais de mercenários dos exércitos muçulmanos. Devido à sua superioridade como guerreiros e ao fato de não estarem ligados às tribos locais, eles subiram na sociedade do Oriente Médio até que se tornaram o principal poder do sistema de califado muçulmano. O mundo islâmico gradualmente tornou-se turco. Depois de assassinar o Califa Al-Mutawarrkil em 861, os próprios turcos tornaram-se califas.
Sobre a ancestralidade étnica dos turcos, WB explica que aquilo que é conhecido foi compilado pelos chineses, e que assim como acontece em outras histórias antigas, há muitas especulações na história inicial dos turcos. Eles entraram na China e no interior da Mongólia no final do terceiro século da Era Comum (EC) como parte de uma aliança de tribos da estepe. Os seus líderes fundaram a Dinastia Wei do Norte da China em 386, centrado em Pingcheng, atual Tatung. Da China e Interior da Mongólia, os turcos atravessaram as fronteiras da Mongólia e sul da Sibéria, e eventualmente chegaram às estepes eurasianas onde eles se tornaram um dos grupos dominantes. Em 552 EC a Confederação Turca da China foi derrotada, e os turcos forçados a se mudar para as estepes da Mongólia, onde formaram o seu primeiro império ou ‘kaganato’ cujo primeiro imperador ou ‘kagan’ foi Bumin. Bumin foi sucedido pelos seus dois filhos Muhan (553-72), que governou a parte localizada na Mongólia, e Ishtemi (553-?) que governou a parte oeste, no atual Cazaquistão. Eles tinham uma cavalaria de elite conhecida como ‘lobos’, dotada de armadura metálica, considerada uma das razões do seu sucesso. Ishtemi ficou conhecido como sendo o líder que derrotou o Império Hephthalita (formado por um povo da estepe aparentado com os Hunos) da Ásia Central e da Fronteira da Índia. Ele foi ainda o primeiro turco a estabelecer relações diplomáticas com Constantinopla, para onde enviou um emissário, em 563, para propor uma aliança voltada a combater um inimigo comum, o Império Sassânida (persa), bem como os avaras, descendentes do grupo turco dissente Juan-Juan.
No início do século VII um conflito emergiu entre os impérios turcos do oeste e do leste. Esse último eventualmente se desintegrou e o seu povo foi absorvido por grupos de povos chineses. Por volta de 616/617 o Império Turco do Oeste penetrou-se no Império Sassânida (persa), que ocupava mais ou menos o mesmo território do Império Aquemênida (persa) precedente. Em 619 o Império Turco do Oeste fez novas conquistas, incorporando a Bacia do Tarima (Província Chinesa de Xinjiang), Ferghana (leste do Uzbequistão), Bactria (uma província do império persa localizada no atual Afeganistão, Uzbequistão, e Tajiquistão), bem como partes do Afeganistão e do norte do Paquistão, alcançando o rio Induz em 625. Após a morte do líder T’ung Yabgu em 630, o Império Turco do Oeste começou a se desintegrar. Um segundo Império Turco foi formado mas eventualmente se desintegrou.
O principal poder turco que emergiu entre diversos foi o dos seljúcidas. Esses últimos começaram a se mover na direção oeste para ‘terra dos romanos’: Irã, Iraque, Síria e Anatólia. Em 1071 os seljúcidas derrotaram o exército do imperador bizantino Romanes IV na batalha de Manzikerte, quando eles se proclamaram ‘sultões de Roma’. Entretanto, os seljúcidas não tinham interesse em estender a sua conquista à Anatólia. Com a passagem do tempo eles se miscigenaram com as famílias dos anatolianos, tanto de origem grega quanto romana. Conforme WB apontou, a derrota bizantina foi mais simbólica do que real: houve mais destruição à vidas e propriedades bizantinas em resultado da guerra civil ocorrida após a derrota em Manziquierte do que como resultado da própria Manziquerte’.
Os seljúcidas já se encontravam em declínio quando emergiu outro grupo turco: os otomanos, cujo nome é derivado de Osman ou Otman (Uthman, em árabe), seu primeiro líder. Em 1453 os otomanos conquistaram Constantinopla e a sua vitória marcou o fim do Império Romano do Oriente. Segundo WB, os livros de história europeus trazem muitos erros acerca dos otomanos que ele espera esclarecer. Alguns exemplos que ele cita são: (i) a afirmação de que a tomada de Constantinopla pelos turcos foi uma conquista asiática, (ii) a descrição dos otomanos como hordas oriundas das estepes asiáticas, e (iii) a representação dos otomanos como inimigos da cristandade. Conforme WB apontou, os otomanos eram muçulmanos e a sua expansão foi agressiva e até brutal, mas eles possuíam uma cultura altamente desenvolvida e eram tolerantes em relação ao cristianismo.
Sob o sultão Selim I, o novo Império Otomano fixou-se na Anatólia, de onde a Síria e o Egito foram incorporados. Após vencer a Pérsia, o Sultão Selim I adicionou todo o Oriente Próximo (de cultura árabe) ao seu império. Após ter conquistado Cairo em 1517, o Sultão Selim I acrescentou o título de Califa ao seu título. Ele foi sucedido pelo seu filho, Sulimão o Magnífico, que reinou de 1520 a 1566. O reinado de Sulimão é considerado como sendo o zênite do Império Otomano. Constantinopla permaneceu como uma capital mundial da cultura e até teve um Renascimento próprio.
Conforme WB apontou, os otomanos deixaram uma enorme pegada cultural nas áreas que ocuparam. O seu sistema conhecido como devsirme, que envolvia tirar meninos de suas famílias a fim de educá-los para o servir o Sultão, é considerado a primeira meritocracia da Europa. Outra instituição otomana, o kulliye, combinou o religioso com o secular, servindo como lugares de aprendizagem, bibliotecas, asilos e cozinhas de alimentar os pobres.
WB procede corrigindo uma outra ideia errada sobre os otomanos ligada ao papel das mulheres em sua sociedade, em especial a sua falta de direitos e de liberdade. Ele sublinha que embora a poligamia fosse aprovada pela lei muçulmana, apenas cerva de cinco por cento dos casamentos do século XVIII eram polígamos, enquanto que a segregação das mulheres não era diferente da praticada no resto da Europa no mesmo período. Outro engano acerca dos Otomanos que WB dissipa é a crença de que a sua derrota na Batalha de Lepanto em 7 de outubro de 1571, contra uma coalizão formada pela Espanha, Veneza, Gênova e os Cavaleiros de Malta, marcou o início do seu declínio. Tal engano é atribuído a Miguel de Cervantes, o autor hispânico de Dom Quixote, que lutou em Lepanto. Entretanto, Lepanto mudou pouca coisa para os otomanos e não estancou a sua expansão.
O Império Otomano representou o ápice dos feitos dos turcos e perdurou por mais de seis séculos até ser dissolvido em 1923. Começou a declinar depois de ser derrotado na guerra turco Russa de 1877-78. Em resultado desse conflito o Império Otomano perdeu um terço do seu território e os cristãos passaram a ser o maior segmento de sua população. WB tenta livrar os otomanos da acusação de ter perpetrado o massacre da população de armênios nas suas terras pouco antes do colapso de seu império. Ele sugere que a responsabilidade pelo massacre situa-se alhures uma vez que tanto os gregos quanto os armênios sobreviveram dentro do regime otomano.
Neste livro WB dissipa os principais mal-entendidos acerca dos turcos. Ele mostra que os turcos que se assentaram na Turquia começaram a sua marcha em direção ao oeste cerca de mil anos antes 1453, o ano em que conquistaram Constantinopla. Portanto, os turcos que sitiaram Viena em 1683, não eram bárbaros e sim uma cultura já estabelecida na Europa. WB também mostra que a Turquia atual foi o palco de diversas grandes civilizações incluindo não apenas os persas, os gregos e os romanos mas também algumas das civilizações mais antigas do mundo. A Turquia possui a maior concentração de sítios arqueológicos do mundo e a sua riqueza em ruinas clássicas gregas e romanas não tem equiparação em nenhum de seus vizinhos. Um último fio deste livro encontra-se na pergunta que deixa em aberto. Se a Europa interpretou errado tantos fatos acerca dos turcos antigos, não poderia ter também errado sobre a República da Turquia?
Jo Pires-O’Brien é a editora de PortVitoria, revista cultural eletrônica para falantes de português e espanhol.
Abreviaturas
AEC: Antes da Era comum
EC: Era Comum
Key words: turcos, Turquia, Anatólia, império Seljúcida, seljúcidas, império Aquemênida, império Bizantino, império Otomano, Manzikerta, gregos, armênios, sítio a Viena, devsirme, caganato, história, arqueologia
Reconhecimentos
Revisão: Débora Finamore
Citation:
WARWICK BALL. Sultans of Rome. The Turkish World Expansion. London, East & West Publishing, 2012. Resenha de: PIRES-O’BRIEN, J. Os Turcos na Europa. PortVitoria, UK, v.12, Jan-Jun, 2016. ISSN 2044-8236, https://portvitoria.com