Fernando R. Genovés

Desde a Antiguidade que o propósito do enriquecimento pessoal tem sido interpretado em termos contrários à moral, como se fosse algo indigno, um pecado, um vício. Tal visão da riqueza e do bem-estar individual repousa sobre uma visão antiga e tradicional do assunto, a qual reprime o crescimento das sociedades modernas. Com uma menor ou maior dose de cinismo, o socialismo, dentre outras doutrinas e ideologias retrógradas, insiste em manter vivo esse credo contrário à liberdade, ou seja, o pobrismo.

Sem embargo, não faltam autores que têm procurado mostrar a compatibilidade entre a riqueza e o viver bem, e, os objetivos da economia e da ética. Um deles é Bertrand de Jouvenel (1903-1987), filho de Henry de Jouvenel, o qual foi casado, em segundas núpcias, com a famosa escritora Colette (Sidonie-Gabrielle Colette). Portanto, teve por pai um senador, embaixador francês e o mais influente membro do Partido Radical, e, por ‘mãe política’ ou madrasta (soa melhor na expressão francesa belle-mère), nada menos que a sensual, vivaz e altamente liberal autora de Querido (1936) e Gigi (1945), e de uma enorme quantidade de romances curtos bem conhecidos (comumente comercializados no formato de livros de bolso. NT).

A relevância da contribuição de Bertrand de Jouvenel ao pensamento econômico, sociológico e político fica patente com uma simples inspeção na sua bibliografia. Ali estão registrados textos capitais como O Poder: História Natural do seu Crescimento (1945), A Ética da Redistribuição (1953), De la souveraineté a la recherche du bien politique (1955; Sobre a soberania) e The Pure Theory of Politics (1963; A Teoria Pura da Política). Nesses, Jouvenel propõe um liberalismo aristocrático (ou ‘melancólico’, segundo afirmou Brian C. Anderson), oposto não só à fatal arrogância do socialismo, mas também à triste debilidade do ‘democratismo’, e, sempre contrário a qualquer expressão de poder político, o temido ‘Minotauro’.

Esta disposição poliédrica da visão do mundo pode explicar, entretanto, a ocasional, ou, a bem dizer, acidental, simpatia que Jouvenel sentiu pelo brilho da economia alemã sob o mandato de Adolf Hitler, assim como a sua adscrição ao bem pouco liberal Partido Popular Francês, dirigido pelo obscurantista Jacques Doriot, um comunista gaulês que, durante a ocupação, cultivou o colaboracionismo com grande paixão, pelo que foi julgado e fuzilado. E, como desgraça pouca é bobagem, outra maior aconteceu, a publicação no Paris Midi, em 26 de fevereiro de 1936, de uma curta entrevista que Jouvenel fez com o ditador alemão. Desde então, a sombra da dúvida não parou de perseguir o cientista político francês. O que pensar dele? Se não um pensador perigoso, no mínimo como um pensador imprudente (Mark Lilla*), como se fosse, do mesmo modo, o teorista alemão Carl Schmitt; cada qual com suas inclinações particulares.

Sem muitos rodeios, o historiador israelita Seev Sternhell acusou Jouvenel de ser um ‘pensador totalitário’ no seu livro Ni droite, ni gauche. L’idéologie fasciste en France (1983; Nem direita nem esquerda: a ideologia fascista na França), o que acabou num processo por difamação, transitado e julgado num tribunal de Paris, em 1983. Uma das pessoas que testemunhou a favor de Jouvenel foi Raymond Aron, o qual afirmou:

É verdade que nós, os homens desta geração, sentíamo-nos desesperados ante a debilidade das democracias. Sentíamos que a guerra se aproximava. Alguns sonharam com outra coisa, com algo que pudesse acabar com essa debilidade.

É certo que muitos escritores e pensadores notáveis daquela geração se perderam nos desfiladeiros do totalitarismo, embriagados pela vaidade e pela autocomplacência, ou, mais apropriadamente, pela ‘malevolente simpatia’ ou ‘o ópio dos intelectuais’.

Afirmar que Aron defendeu Jouvenel até a morte não é uma frase retórica. Convalescendo de um problema cardíaco, e contra a opinião dos médicos, Aron, sempre cortês e elegante, compareceu ao tribunal parisiense para estar com o seu amigo e defendê-lo. Foi um gênio até a morte, pois faleceu quando retornava ao automóvel que o havia transportado a esse seu último ato público. Enquanto isso, Jean-François Revel gravava no seu livro de memórias Le voleur dans la maison vide (1997; O ladrão na casa vazia), que a reputação de colaboracionista e pró-nazista que pesava sobre Jouvenel era ‘imerecida’. Revel, um antigo militante comunista, e Aron, oriundo das fileiras socialistas, entendiam a importância de registrar e contextualizar o passado nas biografias políticas (e, às vezes, também nas pessoais), ou, pelo menos, de conceder às pessoas uma segunda oportunidade. Seja como for, o certo é que outros autores liberais da geração de Jouvenel resistiram melhor que ele à tentação totalitária. Entretanto, é também verdade que nem sempre escreveram textos tão excelentes como os que Jouvenel escreveu.

Há um texto excepcional de Jouvenel que eu gostaria de destacar, uma vez que não é a minha intenção, nesse momento, debater aquilo que poderíamos chamar de passos em falso na história do liberalismo, que é claro que ocorreram, assim como ocorrem nas melhores famílias. Mas isso é um assunto para outra ocasião. Mais acima, eu me referi a alguns dos grandes ensaios de Jouvenel. O que eu quero agora é fixar a atenção num curto, porém substancial, ensaio intitulado ‘Mieux-vivre dans la société riche’ (‘Viver melhor na sociedade rica’. Diogenes, 33, primavera 1961), publicado no livro Arcadia. Essays sur le mieux-vivre (1969; Arcádia: Ensaios para um viver melhor; edição original: Paris). Em umas poucas páginas, encontramos aí uma esplêndida exposição acerca da virtude e da bondade, bem como da fortuna boa, expressão que não sendo oposta à boa fortuna é tampouco idêntica à mesma. Encontramos também uma apologia à ‘crematística’, a ciência da riqueza, a qual sabe por que é melhor viver numa sociedade de ricos do que numa de miseráveis. Neste ponto, o liberalismo ‘melancólico’ de Jouvenel torna-se feliz.

“A riqueza é o grande problema das sociedades ‘modernas’”. Com estas palavras ele principia o ensaio. A predisposição à riqueza não é própria do mundo antigo. Certamente, havia então grandes patrimônios e poderosas fortunas, mas ambos eram reprovados pela maior parte das filosofias e das religiões. A busca individual do enriquecimento era tida como uma força corruptora do homem, infiltrada pela imoralidade. A ideia de fomentar o estado de bem-estar social era impossível de se conceber em um regime escravagista.

Aristóteles, o patriarca da filosofia antiga, faz uma distinção severa entre ‘crematística’ e ‘economia’. Para ele, há uma desmedida e excessiva liberalidade na primeira, enquanto que a segunda caracteriza-se pela contenção e pela moderação. Portanto, para o filósofo grego, o sentido do viver bem reside na frugalidade (manter-se com aquilo que cada qual produz: usando o paradigma agrícola) e na satisfação das necessidades básicas. Não se trata, portanto, de aumentar a produção indefinidamente, mas de limitar os desejos do homem. Essa visão do mundo e da vida chega à Idade Média sob a manta do estoicismo, mas experimenta uma profunda alteração na Era Moderna.

Conforme assinala Jouvenel, a mudança de perspectiva que ocorre consiste em colocar a riqueza numa posição de honra entre os valores, no lugar de outros como a honra, a terra, a genealogia ou o sacrifício. Não bastava que o desenvolvimento científico e tecnológico favorecesse a mudança do campo para a cidade, ou que a revolução industrial e a produtividade maior modificassem o estado das coisas. Era preciso, ao mesmo tempo, que a percepção dos valores e o sentido da moralidade estivessem à altura dos tempos. E, para poder considerar o enriquecimento e a prosperidade como algo honesto e respeitável, era necessário aceitar que não havia por que produzir necessariamente à custa dos outros, como ocorre com a dominação no propósito da escravidão. Esta revisão de valores, adverte Jouvenel, está ligada à ascensão das classes médias:

A ideia moderna é que todos os membros de uma sociedade possam enriquecer-se coletiva e individualmente por meio de progressos sucessivos na organização do trabalho, e nos seus procedimentos e instrumentos; e que este enriquecimento proporcione por si mesmo os meios para o seu futuro desenvolvimento e que este desenvolvimento possa ser rápido e indefinido.

Um exemplo notável dessa ocorrência é revelado na história dos Estados Unidos da América. Ali o produto por habitante sextuplicou-se de 1839 a 1959, e, até hoje, esse país é considerado o arquétipo da sociedade rica e poderosa. Ocorre que o modelo de vida americano, que agrada ou desagrada a tantas pessoas, triunfou porque soube aplicar eficazmente os três requisitos que, segundo Jouvenel, são necessários para que o enriquecer-se subentenda ao mesmo tempo viver melhor: a mobilidade geográfica do trabalho, o reajuste profissional e a amenidade. Por acaso alguém já bolou algo melhor?

Crematis’ em grego significa ‘empreendimento’ ou ‘negócio’. Em espanhol, ‘crematística’ é uma palavra que, no seu sentido restrito, denota uma acepção humorística. Entre nós espanhóis, muitos preferem a versão latina: neg-otium. Não obstante, vale a pena levar a sério o valor da crematística e a máxima ética de cada qual cuidar dos seus próprios assuntos (his own business). Ao invés de deixar que o façam a política e o Estado, os minotauros e os ogros filantrópicos.

                                                                                                                                               

Fernando R. Genovés (Valência, 1955) é escritor, ensaísta, crítico literário e analista cinematográfico. Doutor em Filosofia pela Universidade de Valência (Espanha). Ganhador do Prêmio Juan Gil-Albert de Ensaio em 1999. É autor de numerosos artigos em jornais e revistas especializadas, como Libertad Digital, ABC Cultural, Claves de Razón Práctica, Debats, Revista de Occidente e El Catoblepas. Até o momento já publicou 13 livros de não ficção, entre os quais cabe citar Marco Aurelio. Uma vida contenida (2012), La ilusión da empatía (2013), Dos veces bueno. Breviario de aforismos y apuntamientos (2014), El alma das ciudades. Relatos de viajes y estancias (2015). Mantém os seguintes blogs: Los viajes de Genovés, Cinema Genovés y Librepensamientos.

 

Nota

© F R Genovés

O presente ensaio foi extraído do libro La riqueza da libertad, 2016. ISBN e-book 978-84-608-6112-6, disponível na Amazon.

Tradução: Jo Pires-O’Brien (UK)

Revisão: Débora Finamore (Br)

 Referência

Genovés, Fernando Rodriguez. Riqueza para viver melhor: Bertrand de Jouvenel. PortVitoria, UK, v.13, Jul-Dec, 2016. ISSN 20448236, https://portvitoria.com