Vasta narrativa com uma agenda

Joaquina Pires-O’Brien

Resenha do livro The meaning of human existence (O significado da existência humana), de Edward O Wilson. 2014. Liveright Publishing, New York, 207pp. ISBN 978-0-87140-100-7.

Eu tomei conhecimento das pesquisas de Edward O. Wilson ainda na década de 1970, primeiro como estudante de graduação na Central Washington State College, e depois como aluna de mestrado na Oregon State University. Embora Wilson fosse um zoólogo e eu estudasse botânica, o seu volumoso e muito bem ilustrado livro Sociobiology, publicado em 1975, impressionou-me bastante, assim como os seus muitos artigos científicos sobre a distribuição geográfica de espécies. De volta ao Brasil, o livro Sociobiology de Wilson salientou-se na minha estante e até atraiu alguma curiosidade, pois eu me recordo de quando um colega zoólogo perguntou-me se apoiava Wilson ou Gould (Steven Jay) na então polêmica sobre como a seleção natural funcionava. Após ter me mudado para a Inglaterra em 1995, eu aproveitei para ler o livro de Wilson On Human Nature (1978) e inteirar-me melhor sobre a referida polêmica. E, com o seu livro Consilience, publicado em 1998, Wilson selou o seu nome como o arquiteto da ponte entre a ciência e as humanidades.

The meaning of human existence de Edward O. Wilson é um livro relativamente pequeno, mas que alega ter a resposta da maior pergunta da humanidade. O livro consiste de quinze ensaios relativamente curtos, agrupados em cinco capítulos que não se fluem com naturalidade de um para o outro, requerendo algum esforço do leitor para preencher as lacunas. Diversos tópicos desse livro foram reciclados de outras publicações, fato que o próprio autor admite. O principal desses é a própria teoria da seleção multinível de Wilson, resultante das suas observações em formigas e outros animais sociais. Esse livro é uma vasta narrativa com uma agenda ambientalista. De fato, é surpreendente que, com tão poucas palavras, Wilson tenha conseguido escanear um território tão vasto – e que cobre a origem da vida na Terra; o desenvolvimento do homem e da sociedade; o Iluminismo, as especializações do conhecimento do século XX; as duas culturas(1); a biodiversidade; os animais sociais; e a sua própria teoria da seleção multinível.

No primeiro ensaio, Wilson explora a conotação da palavra ‘significado’ (meaning) empregada no título. Embora no seu emprego ordinário a palavra ‘significado’ implique intenção, que por sua vez implica desenho (design) e desenhista (designer), Wilson explica que empregou a palavra ‘significado’ no sentido da evolução orgânica das adaptações que caracterizam o homem. Segundo ele, tais adaptações vieram de eventos aleatórios, cada um deles alterando a probabilidade de futuros eventos. Ele também explica que os ‘significados’ podem ser conscientes ou inconscientes e que as representações que o cérebro humano constrói são exemplos de significados conscientes. Como um exemplo de um significado inconsciente, Wilson cita o ‘significado’ do ‘apanhar a mosca’ de uma teia de aranha: a aranha pode não ter consciência deste significado, mas, ainda assim, o mesmo é válido. Continuando, Wilson afirma que a evolução do cérebro humano seguiu o mesmo regime que foi seguido pela seleção da teia de aranha, o qual, uma vez evoluído, criou a conscientização, que deu um sentido ao ‘significado’. Finalmente, Wilson declara sobre o que é este livro; que o ‘significado’ da existência humana envolve saber como e por que o senso intencional evoluiu, como ele nos fez da maneira como somos, e como ele pode nos ajudar a proteger o meio ambiente ao nosso redor para que possamos continuar existindo.

No segundo ensaio (reciclado de uma matéria publicada, em fevereiro de 2013, no The New York Times Opinionator), Edward O. Wilson articula quais são as melhores perspectivas para decifrar ‘o enigma do ser humano’.

‘A evolução e o nosso conflito interior’ é o título do terceiro ensaio, um instantâneo do ser humano mostrando o que é bom e o que é ruim. Ele, então, passa a explicar que a evolução social, incluindo a evolução dos níveis de cooperação mais elevados, ocorreu em muitas espécies de animais e não apenas no homem. A seleção natural funciona através da pressão e os seres humanos estão constantemente sob a pressão do conflito, explica Wilson, que cita como exemplo o fato de as pessoas usarem dois ‘pesos e medidas’, – um para avaliar a si próprio e outro para avaliar os demais. Wilson fornece um exemplo pessoal nas duas maneiras como ele percebeu o valor do prêmio Pulitzer: como uma conquista de menor importância quando o prêmio de não-ficção de 1978 foi dado ao seu colega Carl Sagan, mas como uma enorme conquista, quando ele próprio recebeu o prêmio no ano seguinte.

Wilson prossegue, afirmando que os neurobiólogos conectaram características humanas tais como a devoção à música à liberação de dopamina no estriado do cérebro, o que permite inferir que a devoção à música foi fisicamente incorporada ao cérebro humano através da evolução. Uma vez estabelecida a existência de uma conexão genética com a devoção humana à música, os neurobiólogos se perguntaram se o mesmo tipo de conexão não poderia explicar outras características humanas como o tribalismo, a devoção à religião e o desejo ardente de espiritualidade. Essas características estão interligadas, e a força instintual do tribalismo nos genes de religiosidade é bem mais forte do que o desejo ardente de espiritualidade’. Isso mais a percepção de que as grandes religiões causaram sofrimentos constantes e desnecessários aos seres humanos tornam o estudo da religião uma prioridade da pesquisa da neurociência. O estudo científico da religião deve escrutinar não apenas a disposição para aceitar dogmas, mitos e absurdidades, mas também a falta de disposição para aceitar que alguns problemas jamais serão solucionados. O mapeamento do cérebro humano era uma tarefa que Darwin considerava impossível, mas que agora está se tornando uma realidade. Gradualmente, outros fenômenos naturais no homem estão sendo descobertos, obrigando o retraimento de diversas explicações sobrenaturais.

Edward O. Wilson aponta que as disciplinas tradicionalmente ligadas à filosofia, tentaram estudar a condição humana, a fim de responder a pergunta ‘de onde viemos’. Entretanto, essas disciplinas conseguiram apenas responder a perguntas do tipo ‘que’ (em inglês ‘what’), conquanto apenas a ciência consegue responder perguntas do tipo ‘por quê’ (em inglês ‘why’). Trocando em miúdos, apenas a ciência tem a chave para explicar porque nós possuímos a nossa natureza especial. Wilson prossegue listando as cinco disciplinas científicas que têm a resposta: biologia evolutiva, paleontologia-arqueologia, neurociência, inteligência artificial e robótica.

No quarto ensaio, intitulado ‘The new Enlightenment’ (O novo Iluminismo), Wilson afirma que precisamos abraçar a ideia iluminista do cosmos como um tempo-espaço contínuo, que se estende das coisas microscópicas às macroscópicas.

Prosseguindo na sua narrativa, Wilson explica que, a fim de obter uma medida das dimensões do cosmos real, nós precisamos explorar uma multiplicidade de contínuos. Wilson aponta a importância da educação liberal, ressalvando que esta deve ter no âmago a relação entre a ciência e as humanidades. A seu ver, a educação liberal e o pensamento criativo estão conectados: “os estágios iniciais do pensamento criativo não se originam da especialização em quebra-cabeças’ e que ‘o cientista mais bem sucedido pensa como um poeta – de uma forma bem ampla e por vezes fantástica – e trabalha como um guarda-livros”. Entretanto, o tema mais notável desse ensaio é a biodiversidade. Considerando-se que milhares de novas espécies são descobertas a cada ano, o número total de espécies – de plantas, animais, fungos e micróbios do planeta – é superior a dois milhões.

No quinto ensaio, Wilson retorna as humanidades ao sublinhar os seus dois papéis especiais na decifração do enigma da existência humana: fornecer uma visão “de fora para dentro” da evolução cultural e avaliar criticamente o crescente número de dilemas sociais.

O tema do descobrimento de como o comportamento social instintivo evoluiu é tratado no sexto ensaio. Nele, Wilson apresenta a sua própria teoria e a de seus oponentes. Explica que a sua teoria sobre a organização social derivou-se da teoria da genética de populações, desenvolvida na década de 1920, bem como na síntese da teoria evolutiva desenvolvida na década de 1930. Esta baseia-se em três princípios: (i) que o gene é a unidade da hereditariedade, (ii) que o gene normalmente age como integrante de uma rede, e (iii) que a característica prescrita pelo gene é o alvo da seleção natural. No âmago da contenção sobre a teoria de Wilson está a chamada ‘seleção por grupo’. Citando Wilson:

Um gene para uma característica que afete a longevidade e a reprodução de um membro do grupo em relação a outros membros do mesmo grupo é dito estar sujeito à seleção natural em nível de indivíduo. Um gene para uma característica ligada à cooperação e a outras forças de interação com outros membros do grupo pode ou não estar sujeito à seleção natural em nível de indivíduo. …Porque os grupos competem com outros grupos, tanto em conflito quanto sobre a sua eficácia relativa à extração de recursos, as suas características diferenciais estão sujeitas à seleção natural. Em particular, os genes que prescrevem características interativas (e portanto sociais) estão sujeitos à seleção natural em nível de grupo.(2)

Wilson também descreve a teoria competidora que é designada de ‘fitness inclusivo’:

A teoria do fitness inclusivo…trata o indivíduo membro do grupo, e não os seus genes individuais, como a unidade da seleção. A evolução social, por sua vez, surge da soma das interações do indivíduo com cada um dos demais membros do grupo, multiplicada pelo grau de parentesco hereditário entre cada par. Todos os efeitos dessa multiplicidade de interações no indivíduo, tanto positivos quanto negativos, geram o seu fitness inclusivo.(3)

Recapitulando, a teoria da ‘seleção multinível’ de Wilson opera tanto em nível de indivíduo quanto em nível de grupo, enquanto que a teoria oposta – a teoria do ‘fitness inclusivo’ – considera o indivíduo, em vez do gene, como sendo a unidade da seleção, e rejeita por completo a seleção de grupo.

Em 2010, Wilson e dois modeladores matemáticos publicaram um relatório na revista Nature, afirmando que a teoria do fitness inclusivo não era confiável. Wilson revela, nesse livro, que uma correspondência assinada por 137 biólogos foi remetida à revista Nature, protestando contra o seu relatório, e contra-argumenta que nenhum deles refutou a análise matemática nele contida. O relatório em questão marcou o início da animosidade entre Wilson e Richard Dawkins, que considero contraprodutiva e de mau gosto para dois eminentes cientistas. Afinal de contas, os modelos matemáticos são simplesmente representações da realidade que não podem ser provados ou refutados. Wilson utiliza o Apêndice do seu livro para continuar a argumentar contra a teoria do ‘fitness inclusivo’ do falecido Steven Jay Gould e Richard Lewontin e também contra as ideias de Richard Dawkins.

Wilson é um cientista e um polímata com uma capacidade excepcional para cruzar sem esforços entre a ciência e as artes & humanidades. Quando ele publicou Sociobiology e On human nature, foi altamente criticado por ter trespassado para o território das artes & humanidades. Entretanto, com The meaning of human existence (O significado da existência humana), Wilson foi muito mais longe, tomando a filosofia assim como toda a ciência mais as artes & humanidades. Ele afirma ter feito isso na crença de que a solução do nosso problema existencial irá deixar-nos livres para focalizar no futuro. Mesmo quando feita por um cientista de renome mundial, uma declaração dessa magnitude deve disparar o alarme.

Eu não tenho nenhum problema com a agenda deste livro de salvar o planeta, pois reconheço que somos todos responsáveis pela preservação da natureza e de sua biodiversidade. A agenda que me preocupa é aquela que não está explícita, sobre ‘como o planeta deve ser salvo’. Por acaso estaria Wilson defendendo uma religião ambientalista, o cientista rei, ou ambas as coisas?

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Jo Pires-O’Brien é a editora de PortVitoria, revista cultural eletrônica para falantes de português e espanhol.

 

Notas

  1. A expressão ‘duas culturas’ denota o cisma entre a ciência (tradicional) e as artes & humanidades. Notabilizou-se pelo livro epônimo do escritor, fisicista e intelectual britânico, C. P. Snow, publicado em 1968.
  2. Original em inglês: A gene for a trait that affects a group member’s longevity and reproduction relative to other members in the same group is said to be subject to individual-level natural selection. A gene for a trait entailing cooperation and other forces of interaction with fellow group members may or may not be subject to individual-level selection… Because groups compete with other groups, in both conflict and their relative efficiency in resource extraction, their differing traits are subject to natural selection. In particular, the genes prescribing interactive (hence social) traits are subject to group-level selection.
  3. Original em inglês: The theory of inclusive fitness’…‘treats the individual group member, not its individual genes, as the unit of selection. Social evolution arises from the sum of all the interactions of the individual with each of the other group members in turn, multiplied by the degree of hereditary kingship between each pair. All the effects of this multiplicity of interactions on the individual, both positive and negative, make up its inclusive fitness.

 

Revisora: Débora Finamore (Brasil)

 Citação:

WILSON, E. O. The meaning of human existence. New York, Liveright Publishing, 207pp. ISBN 978-0-87140-100-7. Resenha de: PIRES-O’BRIEN, J. Vasta narrativa com uma agenda. PortVitoria, UK, v.11, Jul-Dec, 2015. ISSN 2044-8236, https://portvitoria.com