Luzes na sombra da história

Joaquina Pires-O’Brien

Resenha do Livro Rainhas medievais de Portugal de Ana Rodrigues Oliveira. Editora Esfera dos Livros, Lisboa. 2010. 673pp.ISBN 978-989-926-261-7

À primeira vista o livro Rainhas medievais de Portugal sugere um passado bastante remoto, pois a Idade Medieval, tecnicamente definida como o período compreendido entre a cultura Clássica da antiga Grécia e Roma e o início do Iluminismo Europeu, cobre o período entre o quinto e o décimo quinto século da era cristã. Entretanto, pela família etimológica da palavra ‘rainha’ a perspectiva de tempo é de recentidade, uma vez que rainhas e reis pressupõem reinos que por sua vez são marcos significativos da evolução da sociedade humana acima dos clãs, bandos e tribos. Os reinos surgiram a par com as linhagens definidoras da estratificação social que teve como dimensão adicional a agnação, isto é, a consanguinidade pela linhagem masculina. A prevalência da agnação na maioria das sociedades fez com que as mulheres permanecessem fora do poder político, colocando-as à sombra da história. A autora, Ana Maria Rodrigues Oliveira, explica que, embora em Portugal não houvesse leis impedindo a mulher de reinar, “todas as nossas rainhas medievais governaram, unicamente, como regentes”. Oliveira é uma professora de História com especialização na área de História Cultural e das Mentalidades, e filiada ao Instituto de Estudos Medievais da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, onde se doutorou em 2004. Nas suas biografias das dezessete rainhas medievais de Portugal Oliveira procurou recriar as suas personalidades e o complexo de valores de suas épocas incluindo a religião, os laços de sangue e as enormes expectativas em torno da geração de sucessores.

O longo alcance das linhagens da realeza portuguesa e as influências externas ao Estado tanto da Igreja Católica quanto do Sacro Império Romano-Germânico estendem o escopo deste livro além do território português. Das dezessete rainhas biografadas apenas duas nasceram em Portugal: D. Isabel de Lencastre (1360-1415), a primeira mulher de D. Afonso V, e Leonor de Lencastre (1458-1525), mulher de D. João II e sobrinha da primeira. As suas linhagens tinham conexões não só com a Espanha, mas também com a Inglaterra, a Áustria e a Alemanha. Isabel era neta da inglesa Filipa (Philippa) de Lencastre e D. João I. Isabel era também prima e cunhada de Leonor, casada com Frederico III de Habsburgo, imperador do Sacro Império Romano-Germânico. Leonor de Lencastre era neta e bisneta de reis. Seu pai era o quinto filho do rei Duarte e sua mãe era filha do infante D. João, ambos descendentes de D. João I e de D. Filipa de Lencastre. Ela era também prima de Maximiliano I, da Áustria, também imperador do Sacro Império Romano-Germânico, o qual era filho de Isabel, a Católica, rainha de Castela, filha de uma irmã de sua mãe.

As dezessete rainhas portuguesas biografadas neste livro se estendem desde D. Teresa de Leão e Castela (1089/91? – 1130), filha ilegítima de Afonso VI, rei de Leão e Castela, e cujo casamento com o nobre francês D. Henrique, por volta de 1095, acarretou o estabelecimento do Condado Portucalense, até D. Leonor de Lencastre (1458-1525), princesa da Casa de Avis e primeira filha do infante D. Fernando, duque de Beja e Viseu, e sua prima e esposa D. Beatriz. A história desta última rainha medieval é especialmente interessante pelo fato de ser a mais recente e por evidenciar as conexões internacionais incluindo a presença portuguesa na América. Entretanto, a vida de D. Leonor de Lencastre foi coroada por tragédias. Seus irmãos morreram jovens, incluindo um que fora assassinado, embora Manuel, o caçula da família e onze anos mais novo que ela, se tornaria um dia o venturoso D. Manuel.

O casamento de Leonor de Lencastre com seu primo o príncipe D. João, o futuro D. João II, filho de Afonso V, irmão de seu pai, D. Pedro, acertado quando ela tinha apenas oito anos de idade, foi o pivô de uma dupla estratégia de interesses de suas famílias. Para o rei D. Afonso V a união era uma forma de evitar novas dissensões de família e unir a sua linhagem com a da poderosa Casa de Bragança. Para seu pai, D. Fernando, a estratégia tinha a ver com linhagem, poder e afirmação política, pois com o casamento ele seria futuro sogro e avô de rei, além de filho de rei e irmão de rei. Apesar dos planos e das expectativas para o casamento de Leonor e D. João, intrigas da corte fizeram com que D. Fernando, que havia desempenhado o papel de Regente enquanto o príncipe herdeiro era jovem demais para governar, se tornasse um desafeto do rei, seu futuro genro. D. Fernando faleceu novo, aos 37 anos de idade, sem ter presenciado o casamento que se deu quatro meses depois de sua morte, quando D. Leonor tinha apenas 14 anos de idade. Depois de casada D. Leonor desdobrou-se para conseguir que seu marido perdoasse o irmão, o duque de Viseu, acusado de ter conspirado contra o rei. De início D. João II atendeu ao pedido, mas depois ele matou com as próprias mãos o cunhado. Numa tentativa de abrandar o ato cometido, D. João II agraciou D. Manuel, o único irmão sobrevivente da rainha, com o título de duque de Beja e o indicou como segundo na linha de sucessão, depois de seu filho, o infante Afonso. Mas as tragédias da sua vida ainda não tinham terminado. Durante as férias de verão, o príncipe D. Afonso, casado há menos de oito meses com a infanta D. Isabel, filha dos Reis Católicos de Castela, caiu do cavalo e morreu jovem e sem deixar herdeiros, o que permitiu que seu tio Manuel, O Venturoso, ascendesse ao trono português.

Este livro procura esclarecer os jogos de interesses proprietários e diplomáticos por detrás dos matrimônios com os herdeiros do trono português, incluindo evitar conflitos com os reinos vizinhos de Leão e Castela. A única rainha escolhida por amor e não pelo interesse foi D. Inês de Castro (c.1325-1349?), mas por isto ela pagou com a própria vida, pois somente foi rainha depois de morta. O rei D. Afonso IV estava insatisfeito com o relacionamento amoroso do seu filho com Inês de Castro, e encomendou a morte desta a dois fidalgos da corte. Muita poesia e prosa foram escritos sobre o amor proibido entre o príncipe D. Pedro e Inês e o reconhecimento póstumo desta como rainha. Tais escritos incluem a versão popularmente difundida de que teria ocorrido até mesmo uma cerimônia de beija-mão à rainha morta. Entretanto, Oliveira esclarece que não existe nada que comprove a autenticidade desta narrativa. De acordo com o arquivo existente, em junho de 1360, o rei D. Pedro I fez uma declaração juramentada de que seis anos atrás ele havia contraído matrimônio com D. Inês de Castro nos conformes da Santa Igreja, apontando por testemunhas um criado e o próprio oficiante da cerimônia, D. Gil, o bispo da Guarda. Segundo Oliveira, a validade do casamento foi posta em dúvida na época e continuou questionada pelos cronistas muitos séculos depois. O parecer da autora é de que, apesar da dificuldade de decidir sobre a veracidade ou falsidade desse matrimônio, é preciso examinar ao fato à luz da Idade Média, quando o casamento não requeria tantas formalidades como a necessidade de testemunhas, bastando um pronunciamento sob juramento feito entre os noivos. De qualquer forma, a declaração de D. Pedro I permitiu que os seus filhos com Inês de Castro fossem colocados em pé de igualdade na linha de sucessão ao trono, embora o infante Fernando, filho de sua esposa D. Constança, por ser o primogênito, fosse o primeiro da linha de sucessão. Em 1361, os restos mortais de Inês foram trasladados da cova rasa num humilde cemitério de igreja para o Mosteiro de Alcobaça, onde Inês foi aclamada rainha e colocada no majestoso túmulo que D. Pedro I mandou construir.

As vidas das dezessete rainhas medievais de Portugal descritas neste livro mostram inúmeros exemplos das dificuldades que essas mulheres enfrentaram pelo simples fato de estarem no centro do poder político, mas numa posição presumidamente inferior a dos homens que as cercavam. Tais dificuldades incluíam não só a expectativa de prover herdeiros numa época em que o índice de mortalidade infantil era altíssimo, mas também a necessidade de aprender rápido a lidar com as mais diversas ameaças ligadas às sucessões e reconhecimento de poder, brigas de famílias e intrigas palacianas. A posição de rainha não dava nenhuma garantia de felicidade e cada uma das rainhas precisava desenvolver suas próprias estratégias de lidar com as ameaças que as cercavam. Algumas aproveitaram melhor do que outras os recursos que lhes eram disponíveis, como a capacidade de influência junto ao monarca. Mas no final das contas, as rainhas não só tinham as mesmas dificuldades das outras mulheres do seu tempo em relação à busca da própria felicidade e à salvaguarda da sua integridade pessoal, mas também eram frequentes alvos de constrangimento até pelos próprios parentes.

O capítulo sobre a rainha D. Leonor de Lencastre traz, nas entrelinhas de dois diferentes cenários, um interessante exemplo da interferência política externa da Igreja Católica e do Sacro Império Romano-Germânico, na expulsão dos judeus de Portugal. O primeiro cenário é Évora em 1490, onde os mouros e os judeus foram os grandes animadores dos festejos do casamento do príncipe Afonso com a infanta D. Isabel. Este cenário sugere ainda a ausência de sentimentos antissemíticos por parte da realeza portuguesa e da própria D. Isabel. O segundo cenário é Castela em 1497, às vésperas do casamento de D. Manuel, já rei de Portugal, com a mesma D. Isabel, então viúva de D. Afonso, quando D. Manuel assina o decreto predispondo a expulsão dos judeus e dos mouros de Portugal, a ser feita dez meses depois, em 1498.

Os dois cenários acima mencionados dão uma ideia das diferenças já existentes entre Portugal e Espanha, apesar das consanguinidades entre seus governantes. Embora tanto Portugal quanto Espanha fossem países cristãos católicos, o catolicismo português era mais uma conformidade ao poder político da época enquanto que o catolicismo espanhol era chegado ao fanatismo. Os judeus haviam vindo para a Península Ibérica no primeiro século, depois que os romanos destruíram o Templo de Jerusalém, mas logo depois que os seus governantes abraçaram a fé cristã eles passaram a ser perseguidos na Espanha da mesma forma que os mouros. Em 1492, depois de conquistar Granada, o último reino mulçumano da Península Ibérica, a Espanha deu um ultimato aos judeus, de se converterem ou optar entre a morte e o exílio. O governo de Portugal recebeu de braços abertos os judeus escorraçados da Espanha e não orquestrou nenhuma perseguição aos mesmos. Mesmo depois de ter se comprometido com os reis de Espanha a expulsar os judeus de Portugal, D. Manuel buscou uma maneira de mantê-los em Portugal oferecendo-lhes uma anistia caso se convertessem ao cristianismo. Apesar de contarem com a proteção oficial, os cristãos-novos ou cripto-judeus, foram perseguidos pela população de cristãos-velhos, e por esse motivo imigraram em massa para os Países Baixos, e destes para outros lugares inclusive o Brasil.

Rainhas Medievais de Portugal reavalia o papel das rainhas medievais de Portugal como regentes e dá uma nova perspectiva de suas influências diretas e indiretas nas sociedades em que pertenceram. O livro de Oliveira corrige essa distorção, e é um tremendo contrapeso à injusta distorção da história no tocante à presença feminina e o papel da mulher na sociedade. Cobrindo quatro séculos da história portuguesa, o livro oferece ainda 33 páginas de cronologia, três mapas históricos, 43 páginas de notas e 20 páginas de referências bibliográficas. Por tudo isso e pelo elevado estilo, Rainhas Medievais de Portugal é uma contribuição de peso para a literatura feminista e uma importante fonte de referência histórica e sociológica que não deve faltar em nenhuma biblioteca do mundo lusofóno.

Citação:
OLIVEIRA, A. R. Rainhas medievais de Portugal. Lisboa, Editora Esfera dos Livros, 2010. ISBN 978-989-926-261-7a. Resenha de: PIRES-O’BRIEN, J. (2012). Luzes na sombra da história. PortVitoria, UK, v. 4, Jan-Jun, 2012. ISSN 2044-8236, https://portvitoria.com/