Tito Lucrécio Caro (c.99 – c. 57 AEC1).
Biografia
Pouco se sabe sobre a vida do poeta e filósofo romano Tito Lucrécio Caro (c. 99-57 AEC) conhecido pelo seu poema didático-filosófico De Rerum Natura, escrito por volta de 50 AEC. Segundo uma biografia atribuída a Eusébio e reeditada por São Jerônimo, Lucrécio nasceu em 94 AEC e suicidou-se aos 44 anos de idade ingerindo um filtro amoroso. Tal biografia afirma ainda que Lucrécio era um louco e que escrevia nos intervalos de lucidez. Os estudiosos não sabem até que ponto essas afirmações são apuradas, primeiro porque vêm de duas autoridades do cristianismo, e segundo porque há suspeita de que a perda da obra de Lucrécio foi devido à queima deliberada dos volumes existentes, a mando de autoridades cristãs. Felizmente, um volume escapou das fogueiras insanas e foi achado por Poggio Bracciolini num mosteiro italiano, em 1417, um milênio e meio depois de ter sido escrito.
Segundo a Enciclopédia Stanford de Filosofia (Stanford Encyclopedia of Philosophy), o poema De Rerum Natura sobreviveu virtualmente intacto, mas existe uma disputa se Lucrécio teria vivido o suficiente para ter colocado nele os últimos retoques. Na opinião dos especialistas, Lucrécio escreveu De Rerum Natura para ensinar aos romanos os amplos preceitos do epicurismo, uma filosofia naturalista parecida com o budismo, que englobava religião, sexo, superstição, morte, ciência, moralidade, prazer, política, doença e um universo sem um desenhista. Epicuro não era um ateísta, pelo menos abertamente, pois acreditava na existência de deuses. Entretanto, para Epicuro os deuses existiam simplesmente para si próprios e não interferiam pessoalmente no universo.
De Rerum Natura não é uma leitura fácil. Consiste de 7400 hexâmetros2 – versos de seis sílabas, sem rimas, porém com ritmo marcado pela sucessão de sílabas longas e breves –, que os poetas clássicos empregavam, numa imitação dos épicos gregos de Homero (a Ilíada e a Odisseia). É subdividido em seis livros sem títulos. O poema captura tanto a natureza quanto a experiência humana dentro da mesma. Lucrécio exorta o bem viver através da calma e da tranquilidade, bem como a erradicação das superstições e das crenças religiosas, as quais ele condena como fontes da maldade e da miséria humanas. Critica a vida faustosa e artificial de sua época, explica a física atomista de Leucito e Demócrito e chega a sugerir a evolução das espécies. De Rerum Natura de Lucrécio é um testemunho do elevado estágio do desenvolvimento do conhecimento humano de sua época, quando já havia uma explicação inteiramente naturalista sobre o mundo. Isso faz de Lucrécio o verdadeiro fundador da modernidade.
No início do século XVI, menos de um século depois de o poema De Rerum Natura ter sido redescoberto, a Igreja baniu-o oficialmente junto com todos os livros que defendiam ideias epicuristas. Qualquer um que fosse encontrado com tais livros incorria ser acusado de heresia. Apenas no século XX, Lucrécio foi reabilitado pela sociedade secularista, quando o seu poema ganhou traduções para diversas línguas, inclusive o espanhol e o português. A versão na língua espanhola foi publicada no ano 2000 pela Alianza Editorial e a versão na língua portuguesa em 2015 pela Editora Relógio d’Água. Os trechos a seguir correspondem a outras e mais antigas traduções de fragmentos do poema de Lucrécio:
Da Natureza das Coisas
Tito Lucrécio Caro
Sobre o medo do inferno:
‘… Assim como as crianças, que no escuro tremem de medo e temem tudo,
nós, na claridade, às vezes temos receio de certas coisas
que não são mais terríveis do que aquelas que as crianças temem
no escuro e pensam que acontecerão a elas’.
‘Na verdade, aqueles suplícios que dizem existir
no profundo Inferno, estão todos aqui, nas nossas vidas’
Sobre os átomos:
‘… átomo algum interrompe jamais o seu movimento no vácuo,
antes se move sem cessar, empurrando e sendo empurrado
Em várias direcções, e as suas colisões provocam,
Consoante o caso, maior ou menor ressalto.
Quando combinamos da forma mais densa,
A intervalos muito próximos, com o espaço entre si
Mais obstruído pelo entrelaçado da figura,
Dão-nos a rocha, o diamante, o ferro,
Coisas dessa natureza. (Não existem muitas espécies de átomos
Que errem, pequenos e solitários, através do vácuo.)
Apesar de se encontrarem em constante movimento,
O seu todo aparenta absoluta quietude,
Salvo, aqui e ali, alguma oscilação particular.
A sua natureza está além do alcance dos nossos sentidos,
Muito, muito além. Já que não somos capazes de ver
As coisas como são na realidade, elas são obrigadas a esconder-nos os seus movimentos,
Especialmente porque, mesmo as que conseguimos ver, muitas vezes
Nos ocultam também os seus movimentos, quando à distância.
Tomemos por exemplo um rebanho a pastar
Numa encosta; sabemos que esses animais de caracóis de lã.
Se movimentam para onde quer que os atraia a bela erva,
Em qualquer lugar onde esta se encontre,
ainda cravejada de joias de orvalho cintilantes, e que os cordeiros,
Já saciados, saltam e brincam, brilhando ao sol.
Tudo isto, porém, visto á distância, é apenas uma mancha azulada
Esbranquiçada, repousando numa colina verde.’
Sobre a evolução das espécies – Livro V (em espanhol)
1179 –
‘… Todo lo muda la Naturaleza,
Todo lo altera, todo lo transforma:
Pues empobrece un cuerpo y se consume
A fuerza de años; otro cresce y sale
A la verdad del cieno: de este modo
Todo lo muda el tiempo, y de continuo
Pasa la tierra de un estado a otro
Y pierde la energía que tenía
Por hacerse de nuevas propiedades,
Y la Tierra aún entonces se esforzaba
Por sacar animales de figura
Y de disposición extraordinaria.’
1222 –
‘…Porque los animales existentes
Que ves ahora, sólo se conservan
O por astucia, o fuerza, o ligereza
De que ellos al nacer fueron dotados,
Menos un cierto número que habemos
Puesto nosotros bajo nuestro amparo
Por las utilidades que acarrean.
La fuerza protegió a la raza fiera
De los leones y feroces bestias,
A las zorras el dolo y fuga a ciervos:
Empero el fiel y vigilante perro,
Y acémilas, y ovejas regaladas,
Y bueyes laboriosos son especies
Generalmente confiadas, Memmio,
A la guarda y tutela de los hombres:’
1314-
‘Cuando las hierbas, árbores y frutos
Que aún hoy dia produce en abundancia
Jamás pueden nacer entre si unidos.
Cada ser tiene su progresso propio,
Y confome a las leyes inmutables
De la Naturaleza entre sí guardan
Todas las diferencias de su espécie.’
Notas
- AEC: Antes da Era Comum; EC: Era Comum.
- Segundo o dicionario eletrônico Houaiss, verso hexâmetro é uma descrição do verso clássico grego ou latino composto de seis pés, podendo os quatro primeiros ser dátilos (que tem quatro tempos, sendo uma sílaba longa e duas subsequentes breves) ou espondeus (que tem duas sílabas longas, correspondente a quatro tempos), sendo o quinto dátilo e o sexto espondeu.Compilação: Joaquina Pires-O’Brien (UK)
Pires-O’Brien, J., compiladora. Tito Lucrécio Caro (c.99 – 57 AEC). PortVitoria, Beccles, UK, v.12, Jan-Jun, 2016. ISSN 2044-8236, https:portvitoria.com