Fernando da Mota Lima

O affair Sakineh, o caso da mulher iraniana que em 2010 foi condenada por adultério e sentenciada com a pena de morte por apedrejamento, repõe mais uma vez no cerne dos contatos entre culturas a controversa questão universalismo versus relativismo. Antes de entrar na questão especificamente referente a Sakineh, ressalto um fato óbvio: o desapreço ou a pura e simples rejeição no presente de qualquer teoria de fundamentação universalista. Sérgio Paulo Rouanet é um dos poucos herdeiros da tradição racionalista que têm corajosamente argumentado e polemizado em defesa da razão e do universalismo. Basta que se pense nestes dois livros em muitos sentidos admiráveis: As Razões do Iluminismo e Mal-estar na Modernidade.

Seria difícil fornecer razões suficientes para a rejeição do universal no clima intelectual e ideológico hoje corrente. Uma delas parece-me evidentemente consistir no fracasso colossal de ideais utópicos inspirados na tradição do pensamento de esquerda. Embora o marxismo, por exemplo, tendesse a adotar feições nitidamente nacionalistas na periferia do capitalismo onde mais fortemente se difundiu, seu alvo último era universalista: a luta de classes sobreposta às contradições típicas do nacionalismo versus imperialismo, a comunidade utópica universal sobreposta ao enxame de particularismos que domina a cena pós-moderna.

Outra razão decorreria de uma contradição gerada pelo acelerado processo de globalização econômica e cultural. Invadidos pela maré montante da globalização, que tende a dissolver as tradicionais fronteiras que antes demarcavam as diferentes nacionalidades, assistimos a uma acentuação contraditória da defesa de valores e símbolos nacionais. Digo-a contraditória porque ela anda ombro a ombro com a absorção de símbolos que a negam. No mundo da comunicação virtual, vinculando todos os extremos imagináveis, persistem ideologias e movimentos espontâneos que espelham de modo atordoante o convívio íntimo, não raro inconsciente, do global com o local, do estranho ou longínquo com o familiar e o próximo.
O affaiar Sakineh ilustra exemplarmente a atmosfera cultural acima grosseiramente esboçada. De repente a cultura ocidental, confusamente movida por valores hedonistas e permissivos, é assaltada por valores típicos de uma ética comunitária que impiedosamente anulam qualquer veleidade de autonomia da mulher no plano da ética religiosa e sexual. Que atitude adotar diante do problema ou mesmo aporia (direi entre parênteses beco sem saída, para ser mais claro) que se abre diante da nossa perplexidade?

Para o relativista cultural, se ele quer ser coerente, parece-me que a atitude é simples. Ele simplesmente cruza os braços, pois adota uma teoria baseada no reconhecimento da singularidade irredutível de cada cultura. Noutras palavras, se cada cultura é única e portanto intraduzível numa outra, tudo que nos resta é coerentemente respeitar os valores próprios a cada cultura. Mais claramente: não há tradução ética no Ocidente, central e periférico, para o que está ocorrendo no Irã com Sakineh.

Meu argumento se desdobra precisamente na linha avessa ao relativismo. Ele se fundamenta no reconhecimento necessário de valores éticos universais. É o único meio passível de autorizar algum tipo de argumentação crítica contra o que, da minha perspectiva, constitui a expressão de uma ética pré-moderna e comunitária que precisamos lutar para que seja superada. É por acreditar no sentido de um valor moderno de procedência ocidental, com perdão do truísmo, que me oponho à punição imposta a Sakineh.

Sei que já disse o suficiente para que relativistas, pós-colonianistas e outras tribos do particularismo irredutível caiam sobre mim. Podem de pronto acusar-me de aderir, sob a pele de uma justiça imbricada no universal, à ideologia da superioridade ocidental, à justificação do imperialismo que sempre se valeu de ideais universalistas para espoliar uma infinidade de culturas periféricas às quais impôs seu poder inclemente. A história é farta de exemplos que o presente pode ampliar ao gosto do leitor ávido por reivindicar a autonomia e singularidade de cada cultura. Trocando em miúdos, esta me parece a conclusão lógica dos relativistas, ninguém tem o direito de meter o bedelho na cultura iraniana. Ela é regida por valores próprios, que decorrem de uma história e de uma formação cultural intraduzível nos termos dos valores individualistas do ocidente cujas consequências estão aí à vista de quem as queira ver: o consumismo infrene, o narcisismo que reduz o outro a puro reflexo do que espelha, o hedonismo dissolvente da unidade e dignidade éticas que antes imprimiam solidez e harmonia à família e às relações humanas fundadas na tradição e na organicidade de uma ética comunitária.

O enredo acima, oposto à babel da cultura ocidental, é sem dúvida tentador. Por isso é compreensível que tantos, inteiramente perdidos no cerne de uma cultura que parece mover-se desprovida de norte e referenciais confiáveis convertam-se a seitas irracionalistas e malandras ideadas por charlatães que vendem qualquer coisa aos mendigos da luz consoladora da religião, aos órfãos da utopia e da esperança capazes assim de renunciar à última moeda da sobrevivência material para cair nas garras de vendilhões e mistificadores da alma e da salvação que querem apenas salvar sua rapinagem num mundo em que o fetiche da mercadoria tornou-se transparência deslavada e cínica. E todavia nem um cego carente de luz mistificadora, nenhum espoliado por falsos profetas ousa remover a névoa do engodo suspensa à luz do dia das farsas que pululam nas emissoras de rádio, na TV e outdoors da cidade, na fachada das igrejas que não passam de mercadinhos da fé.

Sei que meu argumento em defesa do universalismo me expõe a críticas procedentes de todas as correntes teóricas imagináveis. Sei ainda que o próprio conceito de universalismo é vulnerável ou impreciso. Ele é produto da Europa hegemônica, com extensões norte-americanas, que portanto sempre conciliou ideais universalistas com colonialismo e imperialismo. Não sou ingênuo ou tendencioso ao ponto de ignorar esses fatos. Ainda assim, não importando o quanto limitado seja o alcance concreto dos ideais universalistas, não reluto em aderir a eles. Digamos, para simplificar esse ponto, que sejam antes um mito do que um fato, uma realidade efetiva. Pois afirmo que, mito por mito, prefiro antes o dos ideais universais do que qualquer mito particularista, como o do nacionalismo ou qualquer expressão do relativismo cultural.

O mito do universalismo, no meu entender, produz efeitos de realidade muito mais positivos. É claro que nunca alcançamos nem nunca alcançaremos a plena realização dos direitos humanos, a plena realização da dignidade humana universal. Mas a luta por esses ideais tende a produzir efeitos de realidade muito mais positivos. Quem hoje no Ocidente e suas extensões periféricas ousa defender publicamente o racismo, a inferioridade da mulher, a dominação de uma nação por outra, a supressão das liberdades civis, a unificação da religião com o Estado e semelhantes formas de opressão decorrentes de ideologias particularistas? Se nenhum grupo politicamente hegemônico ousa adotar essas ideologias perniciosas, deduzo que esse avanço civilizacional é fruto das lutas e conquistas decorrentes do mito universalista.

Mito por mito, antes um orientado para o bem do que para o mal, antes um mais amplo que restrito. A propósito, gosto sempre de lembrar uma anedota relatada por Ray Monk na sua extraordinária biografia de Wittgenstein. Certo dia um discípulo deste procurou-o ansioso por saber o que deveria fazer para melhorar o mundo. Resposta de Wittgenstein: Procure melhorar a si próprio, pois isso é tudo o que você pode fazer para melhorar o mundo. Transpondo esse sábio conselho da esfera individual para a social, do relativo para o universal, diria eu parafraseando o filósofo: procure cultivar e lutar por mitos culturais que concorram para melhorar a sociedade na qual vivemos. Diria mais: para melhorar o mundo universalmente compreendido em que vivemos. Assim você fará algo no sentido de melhorar o mundo.

Fernando da Mota Lima é poeta, ensaísta, resenhista, crítico cultural e professor universitário recentemente aposentado. O seu blog http://fmlima.blogspot.com/ é lido por milhares de pessoas em todo o mundo.

© Fernando da Mota Lima
Reimpresso do Bloque http://fmlima.blogspot.com/
Recife, 18 de junho de 2010

Como citar este artigo:
Mota Lima, F. Universalismo versus relativismo. PortVitoria, UK, v. 4, Jan-Jun, 2012. ISSN 2044-8236, https://portvitoria.com/

Joaquina Pires-O’Brien

Resenha do Livro Tábula rasa: a negação contemporânea da natureza humana de Steven Pinker. Tradução de Laura Teixeira Motta. Companhia das Letras. 2004. ISBN 85-359-049-8

Título Original: The Blank Slate: The Modern Denial of Human Nature. Copyright © Steven Pinker, 2002. ISBN 13:978-0-140-27605-3. ISBN 10: 0-140-277605-X

A maioria das pessoas certamente já ouviu a frase retirada de uma poesia de William Ross Wallace (1819-1881) convertida em ditado popular: ‘as mãos que balançam o berço dirigem o mundo’. Tal frase reflete a crença de que o adulto é mais um produto da criação do que da natureza. Em outras palavras, são os pais e/ou educadores – os que balançam o berço – quem fazem o adulto. Essa crença, por sua vez, baseia-se na doutrina da tábula rasa, segundo a qual a mente humana no nascimento é completamente destituída de predisposições, daí a responsabilidade dos educadores. A doutrina da tábula rasa (ou da lousa limpa) permaneceu na teoria das ciências sociais associada à ‘condição humana’ defendida por essas últimas, e acabou por gerar a polêmica da natureza versus criação, quando as ciências sociais continuaram a negar a importância da biologia na formação da condição humana, mesmo depois da teoria evolutiva ter sido confirmada pela genética.

A questão da natureza versus criação é o tópico principal do livro de Steven Pinker Tábula rasa: a negação contemporânea da natureza humana, originalmente publicado em 2002. Nesse livro Pinker demole não apenas o mito da tábula rasa, mas também dois outros mitos associados ao mesmo: o do ‘nobre selvagem’ e o do ‘fantasma na máquina’. A ideia da tábula rasa foi acolhida por diversos pensadores do período Romântico incluindo o filósofo francês, nascido na Suíça, Jean Jacques Rousseau (1712-78). Rousseau levou a ideia adiante, ao introduzir o conceito do ‘nobre selvagem’, onde ele contrastou a fidalguia e nobreza do ‘homem no estado da natureza’ com a maldade do ‘homem no estado social’. Como mostra Pinker, o início do desmoronamento das teorias da tábula rasa e do selvagem nobre foi o descobrimento de furos nas pesquisas da antropóloga cultural Margareth Mead (1901-78). Mead havia ficado famosa em todo o mundo na década de trinta, com os seus livros descrevendo os nativos da Nova Guiné como pacíficos, igualitários e materialmente satisfeitos; e os da Samoa Oeste como sendo livres de conflitos sexuais. Entretanto, a sugestão de Mead de que as pessoas deveriam aprender com os nativos da Nova Guiné e da Samoa Oeste não passou de um anseio influenciado pelo seu determinismo cultural.

Quando o antropólogo Derek Freeman revisitou algumas comunidades da Samoa Oeste alguns anos mais tarde, ele ficou sabendo que duas das informantes usadas por Mead haviam pregado uma peça nela, com relação à informação de que tinham uma vida sexual sem problemas. Aquelas confessaram que, na realidade, a verdade era o oposto. Os Samoanos costumavam bater e até matar as filhas se elas não fossem virgens na sua noite de núpcias; e a família de uma adúltera podia agredi-la e até matá-la. Apesar de ter um grande respeito por Mead e de reconhecer a profundidade de suas visões, Freeman decidiu corrigir os erros das suas observações de campo. Outros estudos antropológicos posteriores também mostraram que a violência não era exclusiva das sociedades avançadas e que era corriqueira entre as pré-sociedades indígenas.

O mito da tábula rasa fez com que as pessoas interpretassem as conexões observadas entre o comportamento dos pais e de seus filhos como uma prova do mesmo. Entretanto, uma boa parte das semelhanças entre pais e filhos deve-se aos genes que os mesmos compartilham. Filhos de bons pais às vezes tornam-se maus; e filhos de maus pais, ou crianças que cresceram em famílias que fogem das normas aceitáveis, muitas vezes tornam-se bons adultos.

Se a impressão cultural pressupõe uma tábula rasa a ser impressa pela educação, os conceitos da tábula rasa e do selvagem nobre apontam um terceiro conceito ainda mais poderoso que os dois primeiros: a ideia da existência de um componente imaterial dentro do corpo, descrito como alma, mente ou espírito. Tal componente imaterial encontra-se presente na mitologia de todas as civilizações e foi amplamente discutido pelos filósofos seguidores de Pitágoras e mais tarde por Platão. Durante a fase inicial do Cristianismo, o escolástico católico São Tomás de Aquino tomou emprestado algumas ideias filosóficas de Pitágoras e de Platão, incluindo o dualismo da mente e matéria, traduzido ainda como alma e corpo. A doutrina do dualismo foi elaborada pelo filósofo cristão René Descartes (1596-1650), o qual afirmou que, sem a mente, o corpo não passa de uma máquina. Quando o filósofo inglês Gilbert Ryle (1900-76) revisou o dualismo cartesiano no seu livro The concept of mind (O conceito da mente), publicado em 1949, ele referiu-se ao mesmo com o ‘fantasma na máquina’, uma sátira que desde então vem sendo amplamente citada.

Quando Pinker ainda era um estudante de graduação em Montreal, ele acompanhou a celeuma em torno do livro Sociobiology (Sociobiologia), de Edward Wilson, uma síntese da vasta literatura sobre o comportamento dos animais sociais e cujo derradeiro capítulo é dedicado à espécie humana. Desde então, Pinker passou a acompanhar de perto a pesquisa existente sobre biologia evolutiva, da qual ele extraiu muitas das ideias que ele depois desenvolveu. Mais tarde, quando ele foi para Harvard para fazer o seu PhD, ele conheceu Wilson, então professor daquela universidade. Outro biólogo cujas ideias o impressionaram foi Richard Dawkins, cujo livro The selfish gene (O gene egoísta), publicado em 1976, e tratando da base genética do altruísmo humano, também tinha atraído tanta polêmica quanto o livro de Wilson já mencionado. De alguma forma, Pinker conseguiu expor ideias similares às de Wilson e Dawkins, porém, sem atrair a mesma ira que os outros dois atraíram. Dando mostra de seu grande cavalheirismo, Pinker reconheceu a sua grande sorte pelo fato de não ter sofrido o mesmo tipo de agressão que sofreram os seus predecessores.

Dos três mitos que Pinker erradicou da teoria das ciências sociais, o do ‘fantasma na máquina’ é o que causou a maior polêmica, devido às implicações do mesmo com a fé e a religião. Se a mente e o corpo são a mesma coisa, então não existe a alma independente do corpo, nem a vida depois da morte e tampouco a divindade sobrenatural. Para Pinker, a única fissura dualista que existe é aquela entre objetos físicos, e respectivos conceitos.

Nesse livro Pinker enfrenta cada um dos grandes medos relativos à explicação biológica da condição humana, apontando as falácias que se escondem por detrás dos mesmos. O primeiro grande medo, a imperfectibilidade, tem duas causas: a crença de que a condição humana é inalterável, e a crença que tudo o que é natural é bom. Tal medo tem a ver com a preocupação de que, se a violência, o adultério e o etnocentrismo forem comprovadamente naturais no homem, eles seriam inevitáveis. Entretanto, conforme frisou Pinker, o homem já nasce com um senso de moralidade, o qual inclui a distinção entre o certo e o errado. O segundo grande medo é o determinismo, a noção de que, no fundo, as nossas escolhas são dirigidas pelo destino. Tal medo reside nisso poder significar o fim da responsabilidade pessoal e tornar inútil a busca da melhoria da sociedade. Pinker contra-argumenta que a existência de uma explicação biológica para uma má ação em particular, não significa que tal ação seja desculpável. O terceiro grande medo é o niilismo, a ideia de que, sem um grande propósito de vida eterna, tudo o que nos resta são as tentativas dos nossos genes de se replicarem. Tal medo tem a ver com a percepção comum de que a falta da divindade eterna traria apenas o vazio e a ausência de moral, solidariedade e empatia. Nesse ponto, Pinker faz uso da proposição de Richard Dawkins, segundo a qual, dentro do egoísmo da replicação dos nossos genes existem comportamentos altruísticos genuínos, tais como o amor pelos filhos e a fidelidade nos relacionamentos com nossos cônjuges e amigos. O conhecimento de que a alma não é eterna e que o inferno não existe, não justifica que o homem seja mal e egoísta. Pelo contrário, quando a vida no além for retirada do quadro, as pessoas terão mais tempo para usufruir com os filhos e amigos, enquanto que mais recursos poderão ser disponibilizados para fazerem o bem aqui mesmo na terra.

Embora Pinker se descreva como um psicólogo cognitivo, o peso de sua bagagem coloca-o entre as super-estrelas da ciência contemporânea. Nascido em 1954 numa comunidade de judeus anglófonos de Montreal, no Canadá, ele graduou-se com honras em psicologia na McGill University em 1976, seguido-se um doutorado na Harvard, em 1979, e um pós-doutorado no MIT. Antes de sua nomeação definitiva para lecionar em Harvard em 2003, ele passou vinte anos no MIT, cuja cultura de interdisciplinaridade permitiu que ele interagisse profissionalmente com filósofos, neurobiologistas e linguistas, bem como com pesquisadores interdisciplinares

Tomei conhecimento de Pinker em 1999, quando li o seu livro How the mind works (Como a mente funciona), publicado em 1997, tendo ficado impressionada com a capacidade do mesmo de explicar os mais complexos temas através de trivialidades. Durante uma viagem ao Brasil em 2004, eu encontrei numa livraria a edição em português do livro The blank slate, lançada em 2004 pela Companhia das Letras, e traduzido por Laura Teixeira Motta. Comprei o livro com vista a estudar a tradução, já que nessa altura eu nutria o desejo de traduzir livros de não-ficção. A tradução de Motta é de excelente qualidade, mostrando competência em todos os aspectos necessários, como precisão da terminologia científica, a fluidez do texto e a preservação do estilo original do autor.

Com Tábula rasa, Pinker mais uma vez conseguiu demonstrar não apenas o seu conhecimento do assunto, mas também a facilidade com que ele consegue transitar de uma disciplina científica para outra. Cada grande tema e seus subtemas são abordados com um elevado grau de seriedade e humor. O resultado maior foi extirpar e reduzir à categoria de mitos, três grandes disparates das ciências sociais: a tábula rasa, o nobre selvagem e o dualismo. O único desapontamento que o leitor poderá ter será descobrir que, se a mente ao nascimento não é uma tábula rasa, então as mãos que balançam o berço não são necessariamente as mãos que governarão o mundo futuro. Tirar toda essa pressão dos pais e educadores não é tão ruim como parece. Se nascer numa boa família, receber uma boa educação parental e frequentar boas escolas fossem condições absolutamente necessárias para o sucesso na idade adulta, que esperança haveria para milhões e milhões de jovens de todo o mundo que foram privados de tais condições?
________________________________________________________________________________
Citação:

PINKER, S. Tábula rasa: a negação contemporânea da natureza humana. São Paulo, Companhia das Letras, 2004. ISBN 85-359-049-8. Resenha de: PIRES-O’BRIEN, J. (2011). As mãos que balançam o berço. PortVitoria, UK, v. 2, Jan-Jun, 2011. ISSN 2044-8236, https://portvitoria.com

Joaquina Pires-O’Brien

Oriunda do latim ‘vox populi, vox dei’, a expressão ‘a voz do povo é a voz de Deus’ já era conhecida entre os antigos Gregos e Romanos, sendo citada por Tito Lívio (59 BCE – 17 AD) em sua obra Ab Urb Condita Libri (Livros Desde a Fundação da Cidade de Roma), famosa narrativa nacionalista da história de Roma.

Outro registro antigo da expressão ‘vox populi, vox dei’ aparece numa carta do abade, estudioso e educador inglês Alcuíno de York (730s ou 740s – 804), seguidor do venerável Bede (c. 673-735), endereçada a Carlos Magno, de quem era conselheiro. Nela Alcuíno sugere a Carlos Magno não dar ouvidos aos que afirmam vox populi, vox dei, já que a voz da turba era mais parecida com a voz da loucura do que com a sabedoria divina.

Nicolau Machiavelli (1469-1527), um burocrata e diplomata a serviço da corte de Florença, explorou melhor do que nenhum outro a ideia contida na expressão ‘a voz do povo é a voz de Deus’, em seu livro O Príncipe, publicado postumamente em 1532, contendo conselhos sobre como ganhar e preservar o poder. Nele Machivelli sublinha a importância da relação entre opinião pública e poder, e de manter a aparência de virtuosidade perante o público ignorante. Um dos conselhos de Machiavelli aos que desejam segurar o poder é dar poder ao povo, cuja voz seria mais constante e mais sábia do que a voz dos príncipes.

No seu livro O contrato social (1762), Rousseau, o influenciador da Revolução Francesa, proclamou o direito do povo de se rebelar contra a tirania do monarca atendendo à voz da natureza dentro de cada um de nós. Ao procurar analisar o ‘desejo geral’ a fim de verificar se o mesmo era capaz de direcionar o Estado a buscar o ‘bem comum’, o objeto pelo qual o mesmo foi instituído, Rousseau optou pelo mesmo, apesar de ter reconhecido que o povo podia ser enganado a decidir erradamente contra o bem comum. Para Rousseau tudo o que é decidido pelo desejo comum está correto por tender às vantagens do povo, uma visão bem dentro daquilo que o filósofo inglês Bertrand Russell descreveu como sendo a filosofia política das ditaduras pseudo democráticas.

A Idade Moderna que Rousseau ajudou a deslanchar marcou o começo da era ideológica caracterizada pela massificação das ideias e da indústria de formação de opinião. A história dos séculos dezenove e vinte mostra dezenas de genocídios cometidos com o pleno conhecimento e participação da população. A voz do povo é a voz da turba desvairada e sedenta de sangue. As massas são seduzidas e manipuladas pelo jogo do ‘nós contra eles’, que nada se assemelha à justiça absoluta ou qualquer tipo de justiça que transcende a justiça humana implícita na metáfora do Deus.

A visão de maior profundidade sobre a expressão ‘a voz do povo é a voz de Deus’ é a de Stephen Pinker, psicólogo cognitivo e professor da universidade de Harvard. Ele costuma afirmar que a violência é muito mais do que uma moléstia social e que não dá para ser compreendida pelos ditados populares dos pára-lamas de caminhões. Compreender a violência requer pesquisas científicas sobre todos os contextos conhecidos em que a violência é fermentada tais como o etnocentrismo, o senso de justiça e a honra. Segundo ele, o denominador comum de todo comportamento de violência são as táticas de desumanização feitas para rebaixar o indivíduo de ‘pessoa’ para ‘não-pessoa’. A desumanização torna fácil a tortura e o homicídio, fazendo com que os mesmos se equivalham a jogar uma lagosta viva dentro de um caldeirão de água fervente.

Na sociedade pós-industrial diminuiu o fenômeno da turba enfurecida e aumentou o número de buscadores de poder e peritos em manipular não só o desejo profundo de justiça natural mas também as utopias ao mesmo ligado. Conforme mostrou Pinker, desde a concepção das idéias acerca do Jardim do Éden e do mundo celeste, a história universal já registrou um número incontável de utopias. No mundo de hoje, as utopias prevalentes são o socialismo Marxista e o ambientalismo. Os ‘zelotes’ atuais são mestres no uso de utopias para coagir segmentos do público a atacar indivíduos e organizações fazendo uso de bullying, vitimização, difamação e boicotes.

Na moderna democracia a voz do povo é traduzida pela eleição, na qual ganha poder quem tem o apoio da maioria. O processo da eleição não é infalível, mas mesmo assim serve para legitimar a resolução tomada. A fim de impedir que as democracias modernas se tornem ditaduras da maioria, foram desenvolvidos uma série de mecanismos controladores, como o caráter individual e secreto do voto.

Reconhecer que o comportamento de turba e outros tipos de violência fazem parte da nossa natureza não significa que a sociedade deva aceitá-los. A mesma seleção natural que moldou na nossa mente a capacidade de responder inconscientemente a situações também moldou a capacidade de controlar nosso instinto de agressão sempre que o mesmo vem à tona como uma reação de reflexo instantâneo. Exemplos disso são os casos quando temos pensamentos homicidas, mas não agimos sobre os mesmos. No calor do momento um marido pode desejar que a sua sogra morra sem ter nenhuma concreta intenção de matá-la. O desenvolvimento da capacidade de controlar o instinto inconsciente é a base de um dos princípios mais importantes da civilização Ocidental: a crença de que a razão pode e irá exercer uma pressão seletiva na direção certa.
________________________________________________________________________

Citação
Pires-O’Brien, J. A voz do povo é a voz de Deus? PortVitoria, UK, v. 2, Jan-Jun, 2011. ISSN 2044-8236, https://portvitoria.com