Wilfred M. McClay

Poderíamos viver juntos melhor se acreditássemos que fomos criados para isso. W.H. Auden

Poucas linhas do poeta W.H. Auden é mais familiar do que sua declaração, em uma elegia comovente (embora às vezes estranhamente sentimental) chamada “Em Memória de Sigmund Freud”, que o fundador da psicanálise era “… não mais uma pessoa / agora, mas um total clima de opinião / sob a quem conduzimos nossas vidas diferentes: / Como o clima, ele só pode atrapalhar ou ajudar … ”[1]. Palavras amáveis ​​e retumbantes, cheias de admiração. Mas está claro o que Auden quis dizer com elas?

O que, por exemplo, significa “um total clima”? Será que Auden quis dizer que Freud era uma influência intelectual e cultural tão titânica e central que absolutamente tudo na cultura do mundo foi transformado por sua própria existência, seja diretamente através de seus escritos e práticas ou indiretamente através de seus efeitos sobre atitudes gerais em relação à sexualidade, agressão, criação de filhos, sonhos, memória reprimida e uma infinidade de outras coisas? E que doravante poderíamos dividir todo o tempo entre Antes de Freud e Depois de Freud?

Ou será ele quis dizer algo muito menos abrangente, e bem mais modesto: que Freud estava “lá” em nossa cultura da mesma maneira que o clima está lá, como pano de fundo, um elemento no contexto em que nossas ações ocorrem, mas muito longe de ser a força determinante por trás dessas ações? Como as nuvens sombrias que escurecem o nosso humor, a tempestade que dificulta a nossa viagem ou o céu ensolarado que eleva os nossos corações, o clima pode “atrapalhar ou ajudar”, pode fazer a diferença nas margens, como impedimento ou apoio, mas, caso contrário, tem um alcance limitado. Freud, “esse médico” (como Auden o chamou de maneira reveladora), era um dos “que nos faziam algo de bom / que sabia que nunca era suficiente, mas esperava melhorar um pouco vivendo”. Isso parece um endosso muito menos dramático, lembrando a afirmação de Freud de que seu objetivo era converter “a miséria histérica em infelicidade comum”. O que não é uma coisa pequena, com certeza, mas não é bem um clima.

E, de qualquer forma, o clima muda. Como argumenta o sociólogo Howard L. Kaye[2] neste estudo altamente inteligente e artisticamente compactado de Freud: “Faz quase oitenta anos desde a morte de Freud: um período que pode ser dividido aproximadamente em quarenta anos de idealização, seguidos por quarenta anos de difamação. “Poucas figuras estimularam uma gama tão ampla de paixões em um período tão curto de tempo. E, no entanto, a imagem idealizada de Freud como o gênio solitário, o ‘conquistador’ (como ele às vezes se imaginava), que vestiu seu capacete brilhante e se aventurou bravamente nas terras exóticas do inconsciente, onde nenhum homem moderno ousara se aventurar antes, tal imagem é principalmente uma coisa do passado. A originalidade de suas visões, a eficácia de suas terapias, a validade científica de suas afirmações, o radicalismo de sua perspectiva: tudo isso sofreu uma imensa desvalorização nos últimos anos. Pode até parecer que chegamos a um ponto de exaustão em nosso interesse por Freud e suas influências, que o clima tenha mudado decisivamente.

Ou, talvez seja mais uma questão de a coruja de Minerva voando ao entardecer. Talvez o recuo da reputação de Freud abra caminho para uma apreciação mais racional e moderada dele, que não reclame (ou negue) demais e não seja excessivamente manchada por paixão ou partidarismo. Essa seria uma descrição justa do que o livro de Kaye tenta fazer. Aluno de Philip Rieff, que compartilha algumas das ambivalências de seu professor em relação a Freud, Kaye não procura elogiá-lo desordenadamente nem enterrá-lo prematuramente, mas sim entendê-lo com mais precisão e defender sua importância duradoura como pensador social. Não como cientista, ele insiste. Freud, ele argumenta, apresentou-se ao mundo como cientista médico como um meio de ‘encobrir’ os seus pensamentos em um respeitável jaleco branco de laboratório e garantir que suas muitas especulativas e indomáveis ideias se beneficiassem e fossem protegidas pela deferência  mostrada à ciência.

Mas, de fato, argumenta Kaye, o próprio Freud entendeu que ele não era realmente um cientista e que ‘filosofia social e crítica cultural’ sempre foram os pontos focais de seus interesses mais profundos. O que Freud realmente buscava era uma nova ‘interpretação da cultura’, uma que se prestaria à transformação da cultura. A ciência foi valorizada não por sua capacidade de determinar a verdade incontestável, mas pelo seu poder como uma arma crítica, um solvente cultural capaz de dissolver o domínio ilusório de forças opressivas como religião, hierarquia social e moralidade burguesa. O abandono juvenil de Freud ao direito e à [ciência] política em favor da ciência não era, como argumentaram o historiador Carl Schorske e outros, um retiro ‘epimeteano’[3], no qual Freud optou por ‘escutar’ os ‘processos eternos’ da natureza, em vez de tentar mudar o mundo. Foi melhor entendido como uma mudança de tática em busca desse mesmo fim.

Qual era o âmago dessa nova filosofia social? No centro havia uma certa concepção da natureza humana, para a qual Freud se aproximara de forma incremental, às vezes tropeçando. Mas a sua direção final ficou clara a partir do momento em que ele rejeitou a ‘teoria da sedução’ – que havia localizado a fonte da neurose nas experiências de abuso sexual real na infância – a favor de uma teoria que afirmava que era a administração dos desejos e fantasias duradouras, e dos impulsos associados à infância, que constituíam o problema fundamental por detrás da formação das neuroses. Foi a projeção externa da vida interna selvagem e confusa do indivíduo, incluindo a sexualidade infantil, ao invés da internalização da experiência externa, que se tornou o ponto de partida de Freud. Como Kaye expressa, “podemos, com o tempo, nos tornar animais políticos e morais, mas mais fundamentalmente, estamos fantasiando e estetizando animais”.

Assim, chegamos à filosofia freudiana da natureza humana, uma visão de nossa natureza que colocou desejo e fantasia no centro da vida mental humana. Como Kaye acrescenta, foi o padrão universal desses desejos e fantasias, fundamentado em nossa dotação biológica – a saber, o complexo de Édipo, entre muitos outros exemplos – que determinou a agenda do pensamento social. Ou seja, havia certas fixidades na natureza humana –  um ‘certo conteúdo intratável’, como Kaye afirma –  conteúdo esse específico para o termo ‘natureza humana’, um conteúdo que poderia ser cruel, egoísta, brutal e até impronunciável em sua perversidade, mas isso não pode ser desejado ou condicionado. O trabalho da filosofia social era criar um equilíbrio ideal entre os elementos intratáveis ​​da natureza humana e as exigências da vida vivida em conjunto, em uma sociedade avançada e organizada. Que esse equilíbrio pudesse ser, como Freud o expressou de maneira tão memorável em Civilização e seus descontentes, uma coisa bastante tênue e desconfortável, algo que não podia ser evitado.

Aqui, curiosamente, Kaye está em rebelião aberta contra uma das principais tendências de sua própria disciplina da sociologia: a sua tendência a adotar uma concepção ‘supersocializada’ do homem, na qual os seres humanos são definidos como ‘seres sem natureza’ que podem ser transformados em qualquer coisa que uma determinada ordem social exija. Ou, nas palavras de Richard Rorty, “somos capazes de transformar-nos em qualquer coisa que nossa habilidade e coragem permita imaginar”. Tal afirmação soa quase como a sabedoria convencional de nosso tempo, de uma forma um pouco mais respeitável do que a habitual psicodiscurso dos terapeutas de Hollywood e dos mascates da Madison Avenue. O espírito de Freud, com sua insistência nas fixações da natureza humana, sempre esteve em firme oposição a tais coisas. De fato, foi precisamente esse aspecto de Freud, como um antídoto para todo o poder da cultura consumidora, que atraiu pensadores como Lionel Trilling para ele.

Por melhor que este livro seja, ele poderia ter sido ainda melhor por duas coisas. Primeiro, Kaye poderia ter explicado, com mais detalhes do que fez, as maneiras específicas pelas quais o pensamento social de Freud permanece de valor duradouro para nós, mesmo que a base científica de suas reivindicações tenha sido demolida. Essa é uma consideração importante porque, se a teoria social de Freud foi fundamentada em uma visão do indivíduo que não é apoiada pelo estado atual do entendimento científico, como é que as extrapolações dessa visão resultaram em uma teoria social que é maior que o interesse histórico (que é o caso que Kaye fortemente sugere)?

Kaye acha que eles podem, o que me leva a uma segunda preocupação relacionada, que procede de uma das maiores virtudes do livro. O tratamento de Freud por Kaye lembra, sob muitos aspectos, a grande era dos escritos sociológicos, quando a sociologia era uma investigação filosófica da mais alta ordem, e seus praticantes – Durkheim, Marx, Weber, Simmel, Tönnies, entre outros – pertenciam a uma longa e ilustre sucessão intelectual cuja trajetória pode ser traçada a Tocqueville, Hume, Hobbes (a quem Kaye compara Freud), e até os antigos. Mas o que torna essa sucessão tão ilustre é o fato de que todo pensador que nela se encontra ainda está, de uma certa forma, disponível para nós. Não em todos os aspectos, é claro, mas muito mais do que muitos imaginam. Por exemplo, nossa rejeição da maioria dos aspectos da ciência da natureza de Aristóteles e sua afirmação de doutrinas como a escravidão natural não esgotam seu interesse por nós. Temos todos os motivos para nos interessarmos por um pensador que entende os indivíduos humanos como sendo, em certo sentido, feitos para a vida em comunidade, ao invés de vê-los como feitos para a gratificação isolada de desejos instintivos, e tornados sociais apenas pela disciplina coercitiva da socialização.

Kaye, no entanto, traça uma linha dura entre o pensamento social antigo e o moderno, e embora eu ache que ele caracterize a diferença com precisão – os antigos entendendo a ‘natureza’ como uma expressão do melhor e mais completo desenvolvimento humano, ocorrendo dentro de um contexto social, e os modernos entendendo a ‘natureza’ como aqueles propulsores e impulsos que nos motivam sem referência à sociedade – ele não fornece uma razão para favorecer o segundo em detrimento do primeiro. Dada a escassez de evidências para reivindicações freudianas a favor deste último, para não mencionar a falta de evidências de que algo como um estado ‘hobbesiano’ da natureza já existiu – algo que seria muito difícil para o tipo de mamífero que somos – talvez não seja um mau momento para reconsiderarmos. Poderíamos viver juntos melhor se acreditássemos que fomos criados para isso.

                                                                                                                                   

Ensaio originalmente publicado em inglês  no The Hedgehog Review 22.1 (Spring 2020). Tradução e notas de rodapé de JPO.

Retornar à HomePage

[1] O poema citado foi publicado no livro de W. H. Auden Another Time (Random House. 1940). Link.

[2] Kaye, H. L., Freud as a Social and Cultural Theorist: On Human Nature and the Civilizing Process (Classical and Contemporary Social Theory). Routledge, 2018. Originalmente publicado pela Yale University Press em 1986.

[3] Na mitologia grega, Epimeteu (/ ɛpɪˈmiːθiiəs /; grego: Ἐπιμηθεύς, que poderia significar ‘retrospectiva’, literalmente ‘pensador’) era o irmão de Prometeu (tradicionalmente interpretado como ‘previsão’; trad. çit. ‘pensador’), um par de ‘Titãs’ que ‘atuavam como representantes da humanidade’.

Human character is ambivalent by nature and by nurture, and this ambivalence is reflected in almost everything that man does. Nietzsche identified this ambivalence in art, through the concepts of Appolonian and Dyonisian art, the first appealing to logic, prudence and purity, and the second to emotions and instincts. Psychologists recognize that people often fall in one of the two clusters of values. One very common representation of human ambivalence is the different judgements of historical persons, while the capacity to judge oneself is another. This edition of PortVitoria has essays on three historical individuals who were judged incorrectly by public opinion: Sigmund Freud (1856-1939), Louis Agassiz (1807-1873) and the Marquis of Pombal (1699-1782). As Wilfried McClay suggests in his article on Freud, he was vilified for about forty years, but that a fresh look into his legacy revealed him as an endowed and original social philosopher. In my essay on the Marquis of Pombal, I try to show that for over a century he was reputed as a power craze tyrant, until a fresh look on his life revealed his great intelligence and statesmanship in guiding Portugal in the aftermath of the Lisbon earthquake of 1755. Michelle Raji’s article on Agassiz, a Swiss biologist and geologist who in 1832 became a university professor first at Neuchâtel, Switzerland, and in 1847 of Harvard, when he gained notoriety for his method of observing and analysing fishes, deals specifically with an expedition he made to Brazil from 1865 to 1868. As Raji points out, Agassiz was a ‘sensational figure in his day’, loved by many of his colleagues, although one of the students who accompanied him to Brazil spotted his biases and was disgusted by them. The student in question was no other than William James (1842-1910), the future founder of pragmatism. A fourth character in this edition is the Mexican poet, thinker and a polymath Octavio Paz (1914-1998), a man I consider the most brilliant mind that came of Latin America, but who is sadly underappreciated among the speakers of Spanish and Portuguese.

It is easy to make mistakes in judging the character of other people; it is easy to ignore the deserving and to put the undeserving on pedestals. However, the problems that arise from our mistakes in judging others are now much greater, since the advent of the digital age and the availability of social media make everyone a potential judge of character, deeds and reputations. As early as 2013 Bruce Schneider, a technologist in safety, raised the alarm regarding the recrudescence of the court of public opinion since the advent of social media, in an article published in Wired,  here republished in Portuguese. To Schneider, the court of public opinion is about reputational justice, when the arguments of each party are measured in relation to reputation, and the end result is not justice but the loss of reputation. Reputation is also an important theme in the essay by Fernando Genovés, which is an excerpt from his latest book Dinero S.L De la sociedad de proprietaries a la comunidad de gestores, or Money Inc. (From the society of owners to the community of managers, Kindle edition. 2020). In this book, Genovés shows that in the existing conflict between the left and the right, the left wins not because it is the better alternative but because it has a kind of glamour that attracts people to it. As he points out, people don’t go for substance but for images, which is why it makes no difference that the glamour they fall for is false. Reading Genovés book reminded me how universities have become cohortative to the cult of image and false glamour. It inspired me to write an essay on the history of teaching and the universities, which I hope will serve as food for thought on the future of middle and higher education, especially in my native Brazil.

On a final note, when I created PortVitoria as the magazine of the Iberian culture, back in 2010, what I had in mind was well-informed scholarly articles that could incentivize reflection and discussion. This is obviously a disadvantage in a world that highly addicted to soundbites and images. The reader of PortVitoria is an individual who is well-educated but never takes his education for granted, habitually reflects about things that matter, and enjoys face to face conversation with others.  If this is you, and you would like PortVitoria to continue, you can help by putting a link to it in your site, or by simply spreading the word of mouth about it.

Joaquina Pires-O’Brien

July 2020

Joaquina Pires-O’Brien

O ensino formal do Ocidente tem suas raízes na ‘paideia’ (tradução literal: ‘educação da criança’), o sistema de educação e formação ética que surgiu na antiguidade clássica da Grécia, e que se espalhou para o mundo helênico[i], e deste, para o mundo romano. O objetivo da paideia era formar um cidadão[ii] perfeito e completo, capaz de liderar e ser liderado e desempenhar um papel positivo na sociedade. As meninas gregas eram excluídas da paideia, pois, embora também fossem consideradas  cidadãs, a sua cidadania era incompleta, visto que não tinham o direito de votar, e consequentemente, participar diretamente na polis. Os professores, chamados ‘paidagōgos’, ensinavam a leitura e a escrita, atletismo, música, e boas maneiras.

Em Roma, a educação era feita através do ensino em casa por tutores contratados, o que era comum nas famílias mais abastadas, assim como através de escolas básicas, as Ludi (de ludus literarius), para meninos de 7 a 14 anos de idade. Os Ludi eram bastante simples, e, no geral, consistiam em salas de aula improvisadas atrás de lojas, comumente separadas por uma simples cortina. O período de estudo era de um dia inteiro, com uma pausa para o almoço. As crianças trabalhavam no ábaco para aprender matemática básica, e aprendiam o latim através de ditados. Os alunos escreviam em tábulas de madeiras revestidas de cera. Estiletes com uma extremidade afiada e outra arredondada eram usados para escrever e apagar. Havia aulas todos os dias exceto nos dias de mercado e nos feriados religiosos, que eram muitos. Os alunos não precisavam saber por que algo estava certo, mas apenas que estava certo. O professor, conhecido como litterator, ensinava aos alunos o que era considerado certo mas não necessariamente o porquê das coisas. Tinha o direito de aplicar correção física nos alunos pelas mínimas ofensas, batendo neles com uma vara ou com um chicote. Os romanos das classes mais abastadas, e que tinham o costume de contratar tutores para os seus filhos,  também se preocupavam com a educação de suas filhas, conforme evidenciado pelas cartas enviadas por mulheres romanas a seus maridos que serviam nas diversas províncias.

Os romanos também reconheciam a importância de uma educação mais avançada para preparar os jovens que aspiravam entrar na política. Eles tomaram emprestado a organização disciplinar da Academia de Platão, em Atenas, introduzindo um sistema educacional baseado nas sete artes liberais. A gramática, a lógica e a retórica formavam o curriculum do trivium, enquanto que a aritmética, a geometria, a música, e a astronomia formavam o curriculum do quadrivium. Entretanto, o ensino do trivium e do quadrivium era particular, e os professores eram tutores contratados.

A educação pública envolvendo o ensino do trivium e do quadrivium é um dos legados de Carlos Magno (742-814 EC), o rei dos francos que em 800 foi coroado ‘Sacro Imperador do Oeste’ (i.e., do Império Romano do Ocidente), pelo Papa Leão III. A estreita relação entre Carlos Magno e a Igreja Católica Romana explica o seu interesse pela educação pública. Primeiro, Carlos Magno criou seminários voltados a formar clérigos bem preparados e dotados de um elevado padrão moral, e, em seguida, criou escolas paroquiais, onde os clérigos atuavam como professores. A chamada ‘renascença carolíngia’ tem a ver com os esforços de resgatar a educação do mundo clássico. A renascença própria, definida pela busca e valorização da arte clássica, incluindo a literatura e a filosofia, somente teve início a partir do século XIV.

 A academia de Platão

Em 387 AEC Platão retornou a Atenas após um exílio autoimposto em decorrente da morte de Sócrates (c. 469-399 AEC) e logo começou a trabalhar na construção de uma escola de preparação de jovens promissores para o exercício de cargos públicos. O local da escola era em um sítio chamado Akádemeia (Academia), que significa, ‘bosque de Akademos’, herói mítico de Ática, o país do qual Atenas era a capital, localizado fora dos muros da cidade. O nome Akádemeia, por fim,  passou a ser o nome da escola de Platão.

Há poucas referências documentais acerca da escola de Platão, cujo objetivo era permitir que os alunos, os quais eram selecionados pela aptidão, apreendessem a realidade e os seus aspectos mais relevantes ao bem, à justiça e à sabedoria.  A aptidão requerida para a admissão à escola de Platão incluía a veneração às musas da literatura, da ciência e das artes da mitologia grega[iii], indicativa do desejo de aprender, bem como conhecimentos de geometria. Sobre as disciplinas ensinadas, a academia oferecia matemática, dialética, música, ciências naturais e esportes. Sobre o modelo de administração da escola de Platão, há uma referência de que esta era uma entidade corporativa com um diretor vitalício, eleito pela maioria dos seus membros. A partir dos próprios textos platônicos, os eruditos fizeram algumas inferências sobre como a escola de Platão funcionava.

A leitura mais comum dos textos de Platão é de que o filósofo favorecia a aristocracia à democracia, sendo que a aristocracia de Platão referia-se ao governo do rei filósofo, isto é, de ‘guardiães’ especiais, tanto por serem as pessoas mais capazes quanto por serem livres das tentações da riqueza – eles eram proibidos de acumular propriedade. Entretanto, há uma leitura alternativa dos textos de Platão a qual afirma que a apologia de Platão à aristocracia – o governo do rei filósofo, tem mais a ver com o regime da sua academia, na qual os alunos  eram obrigados a deixar suas famílias para viver no espaço da escola, junto com os seus colegas e professores. Exatamente como ocorre nas universidades mais tradicionais do Ocidente.

Depois da morte de Platão em 348 AEC, o seu sobrinho Espeusipo (?- c. 338) foi eleito para sucedê-lo. É razoável presumir que a Academia de Platão tenha sido fechada e reaberta diversas vezes. Não obstante, os historiadores reconhecem três fases, uma mais antiga, uma média e outra mais nova. A fase mais antiga vai de Platão aos seus sucessores conservadores como Espeusipo, Xenócrates, Polemon e Crates, indo até o ano 265 AEC. A fase média inclui diversas academias que apareceram e fecharam, como a quarta academia fundada por Fílon de Larissa, na Tessália, que terminou com a morte deste em 83 EC. Três anos depois, em 86 EC, os romanos, sob o comando do general Sulla, saquearam Atenas e destruíram a academia e a sua biblioteca. A fase mais nova descreve o período, já na Idade Média, quando surgiu uma escola neoplatônica que funcionou de 410 EC a 529 EC, quando o imperador bizantino Justiniano I, motivado pelo desejo de criar uma ortodoxia católica, mandou fechá-la.

 O liceu de Aristóteles em Atenas. A Escola Peripatética

Aristóteles (c. 384-322 AEC) nasceu em Estagira, no norte da Grécia, sendo filho de um médico da corte da Macedônia. Em 367 AEC, quando tinha 17 anos de idade, ele entrou para a Academia de Platão, e lá permaneceu até a morte de Platão em 348 AEC. Nesse mesmo ano, Aristóteles deixou Atenas e foi morar em Assos, Mísia, onde conheceu sua primeira esposa, Pítia, com quem teve uma filha também chamada Pítia. Em 333 AEC Aristóteles foi chamado para a corte da Macedônia, em Pela, onde o seu pai havia servido como médico da corte. Aristóteles trabalhou três anos como professor de Alexandre, filho de Felipe II e sua esposa Olímpia, e de outros nobres.

Em 335 AEC, Aristóteles retornou a Atenas e fundou o Liceu, na parte leste da cidade e fora dos seus muros, o qual dispunha de uma vasta biblioteca e de um museu. O estilo de ensino do Liceu de Aristóteles era mais formal do que aquele adotado pela Academia de Platão. Há estudiosos que consideram o Liceu de Aristóteles o verdadeiro precursor não só das universidades do Oeste mas também das instituições de pesquisa como os museus. Aristóteles fundou o seu Liceu (Lykeion ou Lyceum) em 335 AEC. O Liceu de Aristóteles é também conhecido como ‘Escola Peripatética’ devido ao fato de que muitas aulas eram dadas enquanto os alunos e os professores caminhavam através de um bosque ou alameda, que em grego era denominada ‘peripeto’. Por essa mesma razão, os alunos e seguidores de Aristóteles eram conhecidos como ‘peripatéticos’. A Escola de Aristóteles e dos peripatéticos ensina que a essência das coisas que nós experimentamos é eterna e imutável, e por essa razão, podemos descobrir a verdade, o propósito e a virtude de cada coisa através de uma cuidadosa combinação de observação e análise.

Durante o período que passou na Macedônia, Felipe II conquistou a Grécia. Portanto, em 335 AEC, o ano em que o Liceu de Aristóteles começou a funcionar, a Grécia já se encontrava há três anos sob o domínio da Macedônia. No ano anterior, Filipe II da Macedônia foi assassinado, sendo sucedido pelo seu filho Alexandre III, que partiu com o seu exército para invadir a Pérsia. Na qualidade de ex-professor de Alexandre, Aristóteles tinha uma posição de prestígio em Atenas. Entretanto, isso mudou depois da morte prematura de Alexandre em 323 AEC[iv], quando surgiu em Atenas uma onda de perseguição aos amigos dos macedônios. Aristóteles foi acusado de impiedade, o mesmo crime pelo qual Sócrates havia sido condenado. Percebendo que sua vida estava em perigo, Aristóteles entregou o Liceu e a sua obra ao seu ex-aluno Teofrasto (c. 372- c. 287), e fugiu para Cálcis, na Ilha de Eubeia, onde faleceu em 322 AEC, aos 62 anos de idade. O próprio Teofrasto foi acusado do mesmo crime por ter denunciado a prática de sacrifícios de animais, mas escapou de ser condenado.

As escolas filosóficas da cultura grega

A Academia de Platão e o Liceu de Aristóteles não foram as primeiras escolas da Grécia, mas as primeiras a funcionar como corporação. É que o conceito de escola também se aplica a linha de pensamento ou de doutrinas criada por um mestre e seus seguidores. Nesse sentido, Sócrates teve uma escola de filosofia, assim como os pensadores conhecidos como pré-socráticos. Havia ainda a escola de retórica de um grupo de professores itinerantes conhecidos como sofistas. A retórica ensinada pelos sofistas empregava táticas baseadas na emoção, que tanto Platão quanto Aristóteles condenavam como sendo desonestas. A retórica que Platão e Aristóteles ensinaram era baseada no logos, e portanto, na educação liberal.

Depois do desaparecimento das escolas peripatéticas, surgiu na Grécia, ou melhor, no mundo helênico, uma série de escolas filosóficas, como as dos Céticos, dos Epicuristas, e a dos Estoicos.

O Neoplatonismo, um sistema filosófico e religioso desenvolvido por Plotino no século III EC em torno de Platão e seu interesse pelo místico, foi muito bem exemplificado pela  conexão do amor à ‘beleza eterna’. Plotino derivou daí a frase “o ser é um traço do Uno”, que atraiu pensadores tanto cristãos, como Santo Agostinho de Hipona, quanto islâmicos, como Al-Farabi e Avicena. Uma das falhas do Neoplatonismo foi exagerar o misticismo de Platão, o qual também se interessou pelo estudo da natureza em si, através da observação. O discípulo principal de Plotino e continuador de sua filosofia foi Porfírio (c.233-305 EC), o qual dedicou-se também a Aristóteles e outros pensadores, e procurou um sistema filosófico capaz de resistir aos ataques dos teólogos cristãos. Por fim, diversos pensadores cristãos abraçaram o Neoplatonismo, sendo o mais notório desses, Santo Agostinho de Hipona (354-430 EC).

 O ‘Mouseion’ ou Biblioteca Real de Alexandria

Dentre os importantes legados de educação e pesquisa do período helenístico, o mais notável de todos é o ‘Mouseion’ ou Templo das Musas, a Biblioteca Real de Alexandria, a maior do mundo antigo.

O Mouseion foi planejado por Alexandre o Grande (356-323 AEC), na ocasião em que havia conquistado o Egito. Alexandre imaginou uma cidade do conhecimento que fosse uma nova Atenas, na belíssima ilha de Faros, a oeste do delta do rio Nilo. A cidade teria uma biblioteca capaz de abrigar toda a literatura e todo o conhecimento existente no mundo, e espaço de trabalho para os estudiosos. E, como símbolo do conhecimento, a cidade teria também um enorme farol, construído no topo de um penedo.  Alexandre não pôde levar adiante os seus planos pois morreu na Babilônia, no local da atual Bagdá, em maio de 323 AEC, com apenas 33 anos de idade[iv]. Um de seus generais, Ptolomeu I (366-285/283 AEC) assumiu o governo do Egito, e, decidiu levar adiante a construção da cidade de Alexandria, incluindo a gigantesca biblioteca real e um magnífico farol.

Ptolomeu I iniciou o seu governo trabalhando na restauração da ordem no Egito, adiando a construção da cidade de Alexandria para depois que tivesse a adesão dos egípcios. Ele conseguiu ganhar a afeição dos egípcios, que lhe atribuíram o título de ‘Soter’, ou ‘Salvador’. Logo que tomou as rédeas do Egito, Ptolomeu I decidiu trazer o corpo de Alexandre para ser sepultado na nova cidade que levaria o seu nome. Ele conseguiu interceptar a caravana, vinda da Babilônia, que levava o corpo de Alexandre para a Macedônia, e desviá-la para Mênfis. Ptolomeu I, o Salvador, conseguiu dar início às obras da nova cidade de Alexandria, e quando ele morreu em 282 AEC, a cidade ainda era um enorme canteiro de obras, repleto de trabalhadores de todas as nacionalidades. Ele foi substituído pelo seu filho Ptolomeu II (283-246 AEC), designado ‘Philadelphus’ – ‘Amor de Irmão’, o qual terminou a construção da grande biblioteca real, por volta do ano 270 AEC.

A descrição da biblioteca real de Alexandria que chegou até nós é aquela feita pelo geógrafo Estrabão (c.64 AEC – 14 EC). A descrição que Estrabão deu da biblioteca da Alexandria, no Egito, é de uma biblioteca-escola, pois dispunha de alojamentos, áreas para palestras, jardins e um zoológico. Era melhor conhecida como ‘Mouseion’, ou ‘morada das musas’, devido às suas estátuas das nove musas das artes e da ciência da mitologia grega. Essa biblioteca não deve ser confundida com uma segunda biblioteca construída posteriormente no Templo de Serapis, conhecida como Serapium.

Segundo Estrabão, o Mouseion ficava na zona dedicada à realeza greco-macedônica, chamada Bruchium, onde também ficava o Mausoléu de Alexandre e o teatro. Ptolomeu II também conseguiu terminar o grande farol, considerado uma das sete maravilhas do mundo antigo. As palavras ‘museu’ e ‘farol’ são derivadas de ‘Mouseion’ e ‘Faros’, respectivamente.

A dinastia dos Ptolomeus, que terminou com Cleópatra VII (c.70/69 –  30 AEC), zelou pela manutenção do Mouseion e de suas atividades culturais. Estima-se que a biblioteca tenha chegado a ter entre 500.000 e 700.000 rolos de pergaminhos e manuscritos de todas as partes do mundo, incluindo a Grécia, a Pérsia a Assíria e a Índia.

Durante o seu apogeu, a Alexandria foi uma das mais importantes cidades do mundo antigo, além de ser também um dos maiores centros culturais do mundo civilizado. Era uma cidade altamente cosmopolita, onde diversas culturas conviviam pacificamente, incluindo uma extensiva comunidade de judeus. O Mouseion tornou-se um respeitado centro de estudos que atraía estudiosos das mais diversas nacionalidades. Dentre os seus famosos pesquisadores estão Euclides, Erastóstenes e Aristarco de Samos. Lá ocorreu ainda a mistura do patrimônio cultural egípcio, helênico e judaico, que por sua vez influenciou os primeiros textos do cristianismo.

Há diversas narrativas históricas que afirmam que a biblioteca real (Mouseion) foi destruída acidentalmente no ano 48 AEC por um incêndio causado por Júlio César, e que a biblioteca Serapium tomou o lugar da primeira até ser ela própria destruída no ano 391 durante a guerra civil que ocorreu no reinado do imperador Aureliano. Tais narrativas já foram descartadas como sendo erradas, conforme apontou Theodore Vretos no seu interessante livro Alexandria, City of Western Mind (Alexandria, cidade da mente ocidental). Nesse livro, Vretos descreve a Alexandria como um farol que guiava as mentes mais criativas do dia. Cientistas, filósofos, teólogos e artistas vieram de todo o mundo ocidental para estudar em sua imensa biblioteca e universidade, onde fizeram extraordinárias descobertas. Thales, Euclides e Apolônio inventaram a prova matemática. Aristarco foi a primeira pessoa a colocar o sol no centro do nosso sistema solar. Eratóstenes calculou a circunferência da Terra, e Herófilo inventou a anatomia. Foi também ali que Clemente (c. 150 – c. 215 EC) fundou a primeira escola de filosofia helênica-cristã, em cujos trabalhos ele se referiu a Jesus como o ‘tutor’ ou ‘pedagogo’ da humanidade, e, que também serviu de base para a escola neoplatônica.

 As escolas do Oriente Médio

O Mouseion ou Biblioteca da Alexandria foi o maior centro de conhecimentos do mundo antigo, mas não foi o único do mundo helênico. Havia ainda a Academia de Gundishapur (ou Jundishapur), na antiga Pérsia, criada em 271 AEC onde já havia uma escola de medicina. A Academia de Gundishapur era um centro de estudos e de traduções, cuja biblioteca tinha cerca de 400 mil livros. Consta que Gundishapur recebeu muitos dos professores da antiga Escola de Atenas, depois que esta foi fechada a mando do imperador Justiniano em 529 EC.

No século IV, a Síria ganhou duas escolas importantes, a Escola de Teologia da Antioquia, e a Escola de Direito Romano de Berytus (a atual Beirute).

A Escola de Pandidakterion, em Constantinopla, foi fundada em 425 EC por Teodósio II, Imperador do Império Romano do Oriente. Considerada uma das primeiras universidades do mundo, a Escola de Pandidakterion tinha autonomia e oferecia um amplo leque de disciplinas.

Na Mesopotâmia, a Universidade Beit al Hima (ou Casa da Sabedoria), de Bagdá, Iraque, foi fundada por al-Ma’mun (reinou de 813 a 833 EC), filho do califa Harun al-Rashid (reinou de 786 a 809 EC), a partir da biblioteca criada pelo seu pai. Essa Casa da Sabedoria de Bagdá atraiu tanto os estudiosos muçulmanos quanto os judeus e cristãos. Lá trabalharam estudiosos poliglotas que ensinaram astronomia, física, matemática, medicina, química e geografia. Foi destruída pela invasão mongol de 1258. Outra importante instituição do Iraque foi a Universidade (Nezamiyeh) al-Nizamiyya, fundada em 1065. Na Idade Média era considerada a maior universidade do mundo, chegando a ter 3 mil alunos. Também foi destruída pela invasão mongol de 1258.

No mundo árabe islamizado, surgiram as universidades de al-Karaouine, no Marrocos, fundada em 859 EC, e a Universidade al-Azhar (Jamiat al-Azhar em árabe), no Cairo, fundada em 970-972.

A Universidade de al-Karaouine (ou Al Qarawiyyin), localizada em Fez, no Marrocos, e associada à uma mesquita de mesmo nome, foi criada em 859 por uma mulher rica e bem educada, chamada Fatima Fihriyya. Essa universidade foi a principal instituição educacional do mundo muçulmano, e perdurou por mais de mil anos. Outro dado interessante sobre essa universidade é o fato de ter sido recentemente reconstruída.

No Cairo, no Egito, a Universidade al-Azhar (ou Jāmiʿat al-Azhar) foi um grande centro de cultura islâmica e árabe, fundada em 970 EC pelos seguidores da dinastia Fatimida, isto é, da filha do Profeta Maomé, chamada ‘al-Zahra’, isto é, ‘a luminosa’. No início de sua existência era uma instituição relativamente informal, sem currículos formais ou diplomas. A Universidade al-Azhar começou a decair na segunda metade do século XII, após a conquista de Saladin, o fundador da dinastia Suni Ayyūbid. Foi reconstruída depois de ter sido parcialmente destruída pelo terremoto do início do século XIV. Sobreviveu às mais diversas situações políticas, incluindo a invasão napoleônica do início do século XVIII, e ainda hoje é a principal universidade do Cairo.

Conforme visto acima, o Oriente Médio antecedeu à Europa em muitos séculos no tocante a academias de estudos. As primeiras academias do Oriente Médio tinham origens helênicas, bizantinas, árabes e islâmicas. Foi graças a essas academias que a Europa recuperou o conhecimento da cultura clássica.

 A escola de Plínio, o Velho (23-79 EC)

Plínio, o Antigo, em latim Gaius Plinius Secundus, nascido na Gália em 23 da Era Comum, foi um sábio romano e autor da célebre História Natural, um trabalho enciclopédico de precisão desigual que foi tido como uma autoridade em assuntos científicos até a Idade Média. Oriundo de uma família próspera, Plínio, o Antigo, aproveitou todas oportunidades que teve para estudar matemática e história natural, mas também serviu ao exército romano, foi advogado, e administrador do império. O legado de Plínio, o Velho, foi preservado e disseminado pelo seu sobrinho e filho adotivo, Plínio, o Jovem (61-113 EC), o qual foi criado por ele. A História Natural é considerada como sendo uma primeira enciclopédia, pois consiste em uma gigantesca compilação que abarca cerca de 20 mil tópicos organizados em 36 livros. Podemos dizer que Plínio, o Velho, fez escola pelo fato de que a sua obra serviu de base para os estudiosos que viveram depois dele.

As primeiras escolas da Europa

As primeiras escolas da Europa foram as escolas monásticas ou escolas catedrais, as quais proliferaram no Império Carolíngio fundado por Carlos (Karl) Magno (742-814 EC), rei dos francos[v], que foi o primeiro monarca europeu a acumular uma função religiosa junto com a secular, quando, no ano 800 EC, foi coroado Sacro Imperador do Oeste, pelo papa Leão III. Carlos Magno ordenou o estabelecimento de seminários e conventos voltados à educação do clero, e que conventos, mosteiros e igrejas, construissem escolas para leigos. As escolas monásticas ou catedrais ofereciam uma ‘educação liberal’[vi], pelo fato de ensinarem as ‘artes liberais’[vii] da antiguidade grega[viii], embora também ensinassem a religião cristã.

O período Carolíngio valorizou a cultura clássica grega e latina e promoveu os centros de estudos que eram conhecidos como ‘scriptoria’, voltados a copiar os códices clássicos de história, literatura e filosofia, e retraduzir certas obras do grego para o latim. Um desses centros era o de Aix-la-Chapelle (Aachen) em Compiègne, local da residência preferida de Carlos Magno, onde este mandou construir uma grande catedral inspirada no estilo da Basílica de San Vitale em Ravena. Situada a 5 km da junção das fronteiras com a Alemanha, Países Baixos e Bélgica, a catedral de Aix-la-Chapelle só foi terminada depois a morte de Carlos Magno, sendo o local da coroação do seu filho Luís, o Pio (814-840)[ix].

O surgimento de novas ordens religiosas baseadas inteiramente na vida contemplativa foi também o início do fim das escolas monásticas ou catedrais. No lugar dessas últimas surgiram as escolas citadinas, que, apesar de laicas, eram também religiosas. Depois do ano 1000, as antigas escolas monásticas ou escolas catedrais ressurgiram como faculdades, acompanhando as radicais transformações na vida política, na arte, na economia e na tecnologia, e no espaço de um século, transformaram-se nas primeiras universidades da Europa.

A escola de tradução de Toledo. Gerard de Cremona (1114-1187 EC)

No início do século XII, a ciência europeia ficou para trás da ciência árabe.  Isso é muito bem demonstrado através da obra do filósofo islâmico árabe Abu Nasr Al-Farabi (870-950 EC), que não apenas escreveu nos campos da filosofia política, metafísica, ética e lógica, mas foi também cientista, cosmólogo, matemático e estudioso de música. A sua obra mostra como a ciência árabe se beneficiou do estudo de textos gregos que eles encontraram quando conquistaram Damasco e outras cidades no Egito, Síria e Iraque. Entre esses textos estavam trabalhos científicos de Ptolomeu e obras filosóficas de Aristóteles, Platão, e obras de geometria de Euclides e de medicina de Galeno. A ciência árabe também se beneficiou de seu estreito contato e intercâmbio com o Império Bizantino e com cientistas e matemáticos da Índia e da Pérsia. O desaparecimento das obras em grego de Aristóteles e de outros filósofos gregos é outra mostra do atraso intelectual da Europa no primeiro milênio da era cristã. Uma das explicações mais plausíveis para esse desaparecimento é a rejeição dos primeiros teólogos cristãos, ao perceberem que Aristóteles desprezava as noções da criação, da alma imortal, e do Deus pessoal.

O conhecimento filosófico e científico do mundo árabe foi levado para a Península Ibérica pelos mouros que construíram a Andaluzia. Ali, o médico, astrônomo, filósofo, e poeta persa Avicena (Ibn Sina; 980-1037 EC)  seguidor da filosofia do Neoplatonismo, escreveu o seu Cânon de Medicina (Al-Qanun fi’l-tibb), em 14 volumes, completado em 1025 EC, em persa e em árabe, um apanhado dos conhecimentos de medicina no mundo islâmico, o qual incluiu as tradições médicas de Galeno e, portanto, de Hipócrates, assim como vários ensinamentos de Aristóteles. Outro sábio mouro da Andaluzia foi Averróis (Ibn Rushd; 1126-1198 EC), nascido em Córdoba, o qual examinou criticamente a suposta tensão entre filosofia e religião no seu Tratado Decisivo, desafiou os sentimentos antifilosóficos dentro da tradição sunita, e desencadeou um reexame semelhante dentro da tradição cristã, influenciando uma linha de estudiosos que viriam a ser identificados como os ‘averroístas’.

Um dos primeiros ‘averroístas’ foi o estudioso lombardo Gerard de Cremona (1114-1187), o qual decidiu mudar-se para Toledo, agora no reino de Castela[x], com a intenção de estudar o árabe e trabalhar na tradução das obras de Aristóteles e outros filósofos para o latim. Lá ele tomou conhecimento do Almagest, a obra de matemática e astronomia de Ptolomeu (c. 100 – c. 170 EC), datada do segundo século da era comum. O Almagest foi o seu mais importante trabalho de tradução, concluído 1175. Dentre os outros autores gregos que ele traduziu a partir de versões em árabe estão Aristóteles, Euclides, e Galeno. O interesse de Cremona não se limitou ao  pensamento grego, pois ele também estudou o acima mencionado filósofo árabe Al-Farabi. Embora ele também seja creditado com a tradução do Cânon de Medicina de Avicena, há indicações de que um outro tradutor de nome bem parecido, Gerard de Sabbioneta, um astrônomo do século XIII, tenha sido o verdadeiro tradutor dessa obra para o latim, já que era especializado na tradução de tratados de medicina. Além disso, é preciso ressalvar a possibilidade de uma mesma obra ser traduzida mais de uma vez por tradutores diferentes.

Gerard de Cremona deixou, como legado intelectual à cidade de Toledo, o interesse pela tradução. Em meados do século XII , a Escola de Tradução de Toledo foi criada, e seu impacto ajudou a alavancar o conhecimento na baixa Idade Média. Por ter sido criada no reinado do rei Afonso X, o Sábio (1221-1284), é também conhecida como Escola de Tradução Afonsina. Os textos ali traduzidos incluíram tanto obras de não ficção quanto de ficção, principalmente do árabe, do grego e do hebraico para o latim e o castelhano.

 O treinamento nas ‘guildas’

Durante a Idade Média, o treinamento da mão de obra nos diversos ofícios era feito nas ‘guildas’ (do inglês guild), associações de trabalhadores autônomos. As guildas controlavam a entrada de novos profissionais no mercado. Os mestres de cada ofício treinavam os aspirantes, cujo  treinamento incluía um período como aprendiz e outro como empregado. São exemplos de ofícios comuns da Idade Média:  pedreiros (stone masons), tecelões (weavers), tingidores (dyers), ourives (goldsmith), boticários (chemists), armistas (coat of arms makers), fabricante de armas (armorers), pergaminheiros (parchment makers), encadernadores (bookbinders), pintores (painters), padeiros (bakers), curtidores de couro (leatherworkers), bordadeiros (embroiderers), sapateiros (cobblers), galocheiros (pattenmakers), fabricantes de sapatos (shoemakers), cirieiros (candlemakers), fabricantes de autômatos (automaton makers), etc.

Havia também guildas de profissões, como as ligas de mercadores, e as associações de advogados e de profissionais da medicina. As ligas de mercadores, designadas ‘hanses’ (do alemão hanse, que significa comboio), foram criadas para facilitar o comércio internacional[xi]. Um exemplo era a liga hanseática de Bergen (Noruega), especializada no comércio da pesca, principalmente do bacalhau, com representações em diversas cidades da Europa, quase sempre nas cidades-porto. As ligas de mercadores originaram as primeiras escolas de contabilidade comercial e bancária, e as primeiras faculdades de direito e de medicina também surgiram das respectivas guildas.

Embora as guildas fossem independentes da Igreja Católica, elas tinham um caráter religioso, marcado pelo santo patrono das profissões. Esse caráter religioso das guildas foi transferido para as primeiras faculdades e universidades. Apenas no século XVIII é que as universidades começaram a emancipar-se da influência da Igreja (veja abaixo Universidades e religião. Uma relação incestuosa).

 Ensino superior. Escolas, studia e universitas

Podemos considerar que o ensino superior começou com escolas informais, como as escolas filosóficas do mundo grego, o Mouseion ou Templo das Musas, de Alexandria, e os centros de tradução como o de Toledo na Espanha, e outros espalhados pelo Império Bizantino. Em 1077, em Salerno, no sudoeste de Nápoles, Itália, no local de um mosteiro beneditino, surgiu uma schola de medicina, que ganhou fama devido a ter no seu quadro de professores o médico tunisiano, nascido em Cartago, Constantino Africano (1015-1087), que traduziu para o latim os textos clássicos da medicina disponíveis em árabe.  A escola de Salerno atraiu alunos não só da Europa mas também da Ásia e da África. Em 1221, Frederico II (1194-1250), Sacro Imperador Romano[xii], mesmo sem dar a Salerno o direito de emitir diplomas, decretou que nenhum médico poderia praticar medicina sem ser examinado e aprovado pelo seu corpo docente.

Os Studia (sing. studium) eram um novo tipo de escola que também surgiu na Itália.  Inicialmente havia apenas studia de conhecimento específico. Muitos studia cresceram e viraram facultatem, termo traduzido do termo grego ‘dynamis’, que significa ‘ramo de conhecimento’. Na língua inglesa o termo equivalente é ‘college’. Em seguida surgiram os studia generalia, ou escolas de conhecimentos gerais, cujos ensinamentos não eram restritos a uma única área do conhecimento.

Os studia generalia deram origem às primeiras universidades –  universitas, termo que evoluiu para acompanhar o desenvolvimento do ensino superior na Europa. O termo universitas designava, inicialmente, as corporações escolásticas de alunos e docentes, que existiam dentro do studium, mas posteriormente passou a significar as universitas magistrorum, universitas scholarium, ou universitas magistrorum et scholariu. As universidades, como nós as conhecemos, instituições de ensino superior independentes, que atuam em múltiplas áreas de conhecimento, com a autoridade para conferir títulos e diplomas, e, sancionadas pelas autoridades civis ou eclesiásticas, surgiram apenas no final do século XIV.

Conforme mostrado na Tabela 1, as primeiras universidades da Europa somente surgiram na Idade Média, definidas pela estrutura organizacional constituída por comunidades de professores e de alunos. Essas primeiras universidades eram, na verdade, faculdades, visando o ensino de disciplinas bastante específicas como direito (civil e canônico), medicina e teologia. Com a descoberta do Novo Mundo no final do século XV, as Américas foram colonizadas e a cultura europeia transportada para as mesmas pelos colonizadores, o que incluiu o estabelecimento de universidades (Tabela 2).

A primeira universidade da Europa é a de Bolonha, fundada em torno de 1088 EC, e que abarcava tanto uma faculdade de medicina quanto uma faculdade de direito especializada na lei civil e na lei canônica. Bolonha, assim como a maior parte das primeiras universidades, não oferecia alojamentos para os alunos.  Em Bolonha, os alunos se organizavam os seus próprios alojamentos, conforme as suas nacionalidades. A primeira escola a oferecer alojamentos para professores e alunos foi a de Paris, considerada a segunda universidade da Europa, especializada em teologia. A terceira universidade mais antiga é a de Oxford, criada nos moldes da Universidade de Paris. A quarta foi a Universidade de Cambridge, que começa em 1209 a partir da chegada de alunos e professores de Oxford. Poucos anos depois, Cambridge recebeu outra leva de alunos e professores que saíram da Universidade de Paris.  Essas primeiras universidades não tinham prédios permanentes e a sua propriedade corporativa era bastante limitada, razão pela qual estavam sempre sujeitas à debandada de alunos e professores insatisfeitos.

Uma outra boa parte das primeiras universidades europeias por fim passou para o controle de governos ou das autoridades religiosas, ou, das duas. É que, na Idade Média, o poder temporal dos monarcas ainda encontrava-se ligado ao poder espiritual representado pelo papa. A ligação entre o poder temporal e o religioso era representada pelo Sacro Império Romano, instituído no ano de 800 EC pelo papa. O Imperador do Sacro Império Romano era uma autoridade concessora de Cartas de Reconhecimento para essas universidades. A primeira a receber tal carta de reconhecimento foi a Universidade de Toulouse, do Papa Gregório IX (1229). Em 1224, a Universidade de Nápoles ganhou a sua Carta de Reconhecimento de Frederico II (1194-1250), Imperador do Sacro Império Romano. Também, Charles IV (1316-78), Sacro Imperador Romano e rei da Boêmia, reconheceu as universidades de Praga (Boêmia), Pecs (Hungria) e Pávia (Itália). Outra mostra da estreita ligação entre as universidades e a Igreja é o fato de as universidades terem tanto um reitor quanto um chanceler ou delegado da autoridade eclesiástica, isto é, do bispo local. A primeira universidade que se rebelou contra essa ligação foi a de Paris, que, em 1229 fez uma série de greves, e no final conseguiu transferir o poder do chanceler para os docentes.

O ‘saber europeu’ concentrado nas faculdades e universidades disseminou-se com a migração dos eruditos e dos estudantes, levando a radicais transformações sociais na Europa, como a expansão das cidades e do comércio, e o aperfeiçoamento das leis e das normas burocráticas.

Tabela 1. As primeiras instituições de ensino superior do Ocidente

Nome Ano de fundação da escola inicial e/ou universidade Status político e outros dados
Bolonha 1088 Principado de Bolonha, na Emília Romana; então sob o domínio feudal do papa. Começou como uma faculdade de direito, seguida por outra medicina.
Paris, ou Sorbonne

 

Primeiras escolas: 1150 e 1170.

Universidade: 1200

França, sob a dinastia Capetiana, aliada ao papado romano. Começou com uma escola de teologia ligada à catedral de Notre Dame, ganhando em seguida outras escolas. Entre 1240 e 1260, as escolas viraram faculdades, destacando-se o Collège de Sorbon, em torno do qual surgiu a Universidade de Paris. A partir de 1970, a U. de Paris foi reorganizada em 12 universidades autômatas (Universidade de Paris I-XIII).i
Oxford c. 1167 e 1201 Inglaterra, sob Henrique II, da dinastia Plantageneta, que controlava ainda: Normandia, Anjou, Maine, Touraine e Aquitaine. A data da criação da U. de Oxford, 1167, é a data em que Henrique II proibiu ingleses de frequentar a U. de Paris. Em 1201, a universidade era dirigida por um magister scolarum Oxonie, ao qual foi dado o título de Chanceler (Reitor) em 1214.
Salerno 1077 Principado de Salerno, Lombardia, então sob o domínio feudal de Roger I da Sicília. Inicialmente era um studium de medicina, mais tarde passou a oferecer cursos de filosofia, teologia e direito, sendo eventualmente transformada em universidade.
Cambridge 1209 Reino da Inglaterra, sob João I, considerado um monarca controverso, conhecido por ter assinado a Magna Carta em 1215 e pelas disputas com o papa, cujas políticas também eram controversas. A criação da U. de Cambridge deve-se à um grupo de descontentes da U. de Oxford, que resolveram criar outra universidade.
Salamanca 1218 e 1254

 

Reino de Leão, sob Afonso IX. Suas primeiras faculdades eram: direito (civil e canônico), teologia, medicina e Artes & Filosofia.
Montpellier Primeiras escolas: 1220

Universidade: 1289

Montpellier, região de Languedoc-Roussilon, sob o lorde feudal Guilherme VIII (1157-1202). Começou com uma escola de medicina criada no molde da Salerno, a qual atraiu estudiosos árabes-islâmicos e judeus.
Pádua 1222 Pádua, região de Veneto. A U. de Pádua foi criada a partir de dissidentes da U. de Bolonha. Iniciou como uma escola de medicina, mas, por fim, tornou-se um importante centro de cultura humanista. É creditada por ter o primeiro jardim botânico.
Arezzo 1222 Arezzo, região da Toscana. Importante escola de letras, que se tornou um centro de cultura humanista.
Nápoles 1224 Nápoles, então parte do Reino da Sicília. Criada por Frederico II (1194-1250), da dinastia Hohenstaufen, rei da Sicília e Sacro Imperador Romano. Os primeiros professores eram empregados do imperador.
Toulouse 1229 Toulouse, capital da província francesa de Occitana. Começou com escolas de direito (civil e canônico), teologia, e artes e humanidades. Foi fechada em 1793, devido à Revolução Francesa.
Siena 1240 República de Siena, Toscana. A U. de Siena foi criada a partir de dissidentes da U. de Bolonha. Inicialmente era uma escola de estudos gerais e de medicina.
Lisboa, depois Coimbra 1290 Lisboa e Coimbra, Portugal. Criada pelo rei D. Dinis como uma escola de estudos gerais, funcionando inicialmente no palácio real em Lisboa, tendo depois se expandido para Coimbra, que tornou-se a sede definitiva em 1537.
Macerata 1290 e 1540 Província de Macerata, das propriedades papais na Itália.
Alcalá de Henares ou Complutense 1293 e 1504 Madrid, Reino de Castela. Iniciou como escola de estudos gerais. Mais tarde virou universidade, por intermédio do Cardeal Francisco Cisneros (1436-1517), confessor da rainha Isabel, a Católica (1451-1504).
Lleida 1300 Lleida, Catalunha, Reino de Aragão, Reinado de Jaime II de Aragão e Sicília (1264-1327). Iniciou como escola de estudos gerais.
La Sapienza de Roma 1303 Roma. Iniciou como escola de estudos gerais, criada pelo papa Bonifácio VIII (1235-1303).
Perugia 1308 Perugia. Iniciou como um studium, uma universidade especial, cujos diplomas só eram reconhecidos localmente. O ano 1308 marca o seu reconhecimento pelo imperador e pelo papa.
Florença 1321 e 1364 República de Florença, Itália. Iniciou como escola de estudos gerais, que ora funcionava em Florença ora em Pisa, em função da morada da família Médici. Passou a  universidade em 1364.
Camerino 1336 e 1727 Camerino, Itália. Começou com faculdades de direito (civil e canônico) e medicina. Foi transformada em universidade em 1727.
Pisa 1343 República de Pisa, Itália. Começou onde já havia outras escolas. Foi reconhecida como universidade pelo Papa Clemente VI (1291-1352). Em 1473, ganhou um importante prédio de Lourenço de Medici (1449-1492).
Praga 1348 Reino da Boêmia, atual República Checa. Era chamada Universidade Charles, em homenagem a Charles IV (1316-78), Sacro Imperador Romano e rei da Boêmia.
Pavia 1361 Pávia, Itália. Começou como faculdade de direito e escola de estudos gerais. Foi reconhecida em 1361 pelo Sacro Imperador Romano Charles IV (1316-78).
Cracóvia (atualmente chamada U. Jagiellonia) 1364 Cracóvia, Reino da Polônia. Iniciou como uma escola de estudos gerais, fundada pelo rei Casimiro o Grande (1310-70), oferecendo cursos de artes liberais, medicina e direito. Foi extinta e depois recriada pelo rei Vladislau Jagiello em 1400.
Viena 1365 Viena, Áustria. Foi fundada pelo duque Rodolfo IV (1339-1365) junto com seus dois irmãos, no modelo da U. de Paris.
Pecs 1367 Pecs, Hungria. Foi fundada por Charles IV (1316-78).
Heidelberg 1386 Heidelberg, Alemanha. Anteriormente conhecida como Ruperto Corola, é a universidade mais antiga da Alemanha. No século XVI tornou-se num centro de humanismo. Após a Reforma Protestante tornou-se num centro calvinista.
Ferrara 1391 Ferrara, Emília Romana, Itália. Começou como uma escola de estudos gerais, fundada em 1391 pelo Marquês Alberto V D’Este (1347-1393, com a permissão do papa Bonifácio IX (1356-1404).
Würzburg 1402 Würzburg, Alemanha.
Leipzig 1409 Leipzig, Alemanha.
Aix-en-Provence 1409 Aix-en-Provence,
Saint Andrews 1411 Saint Andrews, Escócia.
Rostock 1419 Rostock, Alemanha.
Louvain/Leuven 1425 Leuven, Bélgica
Catania 1434 Catania, Reino da Sicília, Itália.
Poitiers 1431 Poitiers, França.
Barcelona 1450 Barcelona, Reino de Aragão, Espanha.
Glasgow 1451 Glasgow, Escócia.
Valencia 1454 Valência, Espanha.
Greifswald 1456 Greifswald, Alemanha.
Friburgo 1457 Friburgo, Alemanha. Transferida temporariamente para Constance em duas ocasiões.
Basileia 1460 Basileia, Suíça.
Nantes 1460 Nantes, França.
Bourges 1463 Bourges, Bélgica.
Munique 1472 Munique, Alemanha. Fundada em Ingolstadt em 1459, transferida para Landshut em 1800, e para Munique em 1826.
Bordeaux 1472 Bordeaux, França.
Trier ou Treves 1473 Trier, Alemanha.
Uppsala 1477 Uppsala, Reino da Suécia.
Tübingen 1477 Tübingen, Alemanha.
Copenhagen 1479 Copenhagen, Dinamarca.
Gênova 1481 República de Gênova, Itália.
Aberdeen 1494 Aberdeen, Escócia. Resultou da fusão entre a King’s College, fundada por uma bula papal em 1495. e Marischal College em 1593.
Santiago de Compostela 1495 Santiago de Compostela, Galícia, Reino de Castela, Espanha.
Valencia 1499 Valencia, Reino de Aragão, Espanha.
Halle-Wittenberg 1502 Halle-Wittenberg, Alemanha.

 

Tabela 2. As primeiras faculdades e universidades das Américas.

Nome Ano de Fundação Outros Dados
U. do México 1551 Cidade do México. Foi inspirada na Universidade de Salamanca.
U. São Tomás de Aquino 1580 Bogotá, Colômbia.
U. de Córdoba 1613 Córdoba, Argentina.
Real Pontifícia São Francisco Xavier 1624 Chuquisaca, Bolívia.
Harvard 1636 Boston, Massachussets.
Laval 1663 Québec, Canada.
Yale 1701 Yale, Connecticut
Princeton 1746 Princeton, Nova Jersey
Pensilvânia 1749 Filadélfia, Pensilvânia.
Columbia (King’s College) 1754 Nova Iorque, Nova Iorque.
New Brunswick 1785 New Brunswick, Canadá.
King’s College 1789 Ontário, Canadá.
Cornell University 1800 Ithaca, Nova Iorque.
University of Michigan (Detroit; Ann Arbor) 1817 Detroit, Michigan. Em 1837 foi transferida para Ann Arbor.
Washington University 1853 St. Louis, Missouri.
Stanford University 1891 Stanford, California.

As universidades se desenvolveram durante um longo período, mas, em decorrência de conflitos de interesse e abusos de poder, estão permanentemente sujeitas a retrocessos. A partir do final do século XX,  diversos críticos têm apontado a profunda decadência do ensino superior do Ocidente.

 As academias ou sociedades científicas

No final do século XVI surgiram as primeiras academias, sociedades científicas voltadas a atender as necessidades da nova época, como a liberdade de expressão e de pensamento pela qual muitos eruditos ansiavam. O filósofo, político e polímata inglês Francis Bacon (1561-1626) é considerado o grande precursor desse anseio, e, foi também um crítico contundente dos erros de raciocínio  dos escolásticos de sua época. O que fez de Bacon uma espécie de divisor de águas é o fato de que ele escrevia para o público, sem dar a menor importância à recomendação da lei canônica de que os livros deveriam ser submetidos à autoridade eclesiástica antes de serem publicados, cuja autorização era designada pela palavra latina Imprimatur (Imprima-se). O seu livro Novum Organum, escrito em latim e publicado em 1620, é uma referência ao livro Organon  de Aristóteles, que era seu tratado sobre lógica e silogismo. Nele, Bacon faz críticas severas a Aristóteles, e introduz um novo sistema de raciocínio, a indução, que ele apresentou como sendo superior ao silogismo, para o desenvolvimento da ciência. Nesse livro, Bacon classificou as falácias intelectuais de seu tempo em quatro títulos que ele chamou de ídolos. Ele os distinguiu como ídolos da tribo, ídolos da caverna, ídolos do mercado e ídolos do teatro. Os ídolos da tribo, representados pelos os erros e incoerências causados pelas falhas da compreensão humana, resultam da tendência natural de buscar evidência para aquilo que já acreditamos ser a verdade. Os ídolos da caverna (uma alusão à caverna de Platão) são representados pelos preconceitos e os pré-condicionamentos naturais das pessoas. Os ídolos do mercado são representados pelos preconceitos e os pré-condicionamentos derivados dos meios de comunicação formais e informais. Os ídolos do teatro, representados pelos dogmatismos e preconceitos que são repassados através dos sofismas embutidos nos sistemas de conhecimentos tradicionais, embora os mesmos nunca tenham passado por testes científicos de verificação. É pertinente registrar que as críticas de Bacon a Aristóteles foram mais tarde revisitadas, quando ficou demonstrado que os problemas que Bacon apontava eram da escolástica (ou escolasticismo), a doutrina que tentou reconciliar a filosofia de Aristóteles à doutrina cristã, ou seja, a epistemologia à axiologia. Outra revisitação desse tópico foi o debate entre o racionalismo e o empirismo, que resultou no reconhecimento de que ambos eram necessários à ciência.

Não se sabe se a Royal Society de Londres foi a primeira academia ou sociedade científica, mas certamente foi a primeira dentre as principais que surgiram na Europa. Ela começou a funcionar em 1660, quando um grupo de cientistas e amigos da ciência (Isaac Newton, Robert Hooke, Hans Sloane, Robert Boyle, etc) começaram a promover encontros de discussão. Em 1662, recebeu o selo real do rei Charles II, ganhando o nome formal de The Royal Society of London for Improving Natural Knowledge. Outra importante academia de ciências é a de Paris – a Académie des Sciences, fundada por Lu[is XIV em 1666 por sugestão de Jean-Baptiste Colbert. A terceira academia de que se tem conhecimento é Academia Real de Ciências da Prússia, fundada em 1700 por Frederick III, o Príncipe-eleitor de Brandenburg. Afora essas, surgiram muitas outras, conforme mostra a Tabela 3.

As Academias sempre foram instituições de prestígio, com um número limitado de membros, escolhidos por quando da morte de um associado. O polímata francês Voltaire (1694-1778), dramaturgo, homem de ciência, horologista, ensaísta, novelista, e poeta, foi candidato diversas vezes à Academie des Sciences, mas sem sucesso. Segundo o astrônomo Jérome Lalande, o motivo da ‘bola preta’ é o fato de que ao ser perguntado sobre o que o atraía acerca de Versalhes, ele teria respondido: “não é o mestre da casa”, uma referência ao rei Luís XV. Entretanto, em 1741 Voltaire foi eleito fellow da Royal Society, e finalmente foi votado membro da a Académie em 1746. Voltaire defendia a independência das academias, quer do poder secular quer do poder da autoridade religiosa.

Tabela 3. Importantes academias da Europa.

Nome Ano de Fundação Outros Dados
Royal Society 1662 London. Seus membros eram seguidores de Francis Bacon, introdutor do método indutivo e crítico da Escolástica.
Royal Academie des Sciences

 

1666 Paris. Descartes, Pascal, Gassendi, Fermat,etc.
Academia Real de Ciências da Prússia

Königlich-Preußische Akademie der Wissenschaften

 

1700 Berlim. Leibniz.
Academia dei Lincei 1603-30 Lincei, Roma. Fundada por Federico Cesi, lidava tanto com ciência quanto com filosofia. Um de seus membros foi Galileu Galilei.
Academia Físico-Matemática 1677-98 Roma.
Academia del Cimento 1657-1667 Florença. Seue membros eram considerados seguidores de Galileu, como Viviani e Torricelli.

 

Academia egli Investiganti 1663-1670 Nápolis.
Accademia dela Traccia 1666- c. 1678 Bolonha.
Accademia degli Inquieti 1690-1714 Bolonha.
Accademia degli Argonauti 1684-1718 Veneza.
Academia de São Petersburgo 1724 São Petersburgo.

As Academias de ciência deixavam transparecer a liberdade de pensar e agir que é essencial para a atividade científica. Por acaso essa liberdade não existia nas universidades? Procurarei examinar essa pergunta no título a seguir.

Universidades e religião. Uma relação incestuosa

O surgimento das universidades mostra uma abertura ao conhecimento que até então não existia na Europa. Entretanto, tal abertura ao conhecimento era condicionada à ordem eclesiástica existente. Assim sendo, havia uma relação incestuosa entre as primeiras universidades europeias e o catolicismo romano, a qual impedia o pensamento independente e a inclusão das mulheres. A ordem eclesiástica era a grande defensora do patriarquismo (o machismo associado ao enorme poder do pater familias), conforme muito bem evidenciado na seguinte citação de São Paulo: “Calem-se as mulheres nas assembleias, pois não lhes é permitido falar.” (I Cor 14, 34). As mulheres eram excluídas das escolas monásticas e das escolas citadinas, e continuaram a ser excluídas das faculdades e universidades.

A Reforma Protestante iniciada em 1517 por Martinho Lutero (1483-1546) levou à criação de diversas denominações cristãs, que, assim como a Igreja Católica  Romana, também se preocuparam com a educação, muito embora sem encorajar o pensamento independente, e sem reconhecer a igualdade das mulheres. Algumas dessas denominações cristãs beiravam o fanatismo. Os séculos XVI e XVII foram palcos de diversas seitas de protestantes fanáticos, como o puritanismo da Grã Bretanha e da Nova Inglaterra, que enfatizava o Velho Testamento da Bíblia sobre o Novo Testamento, e pregava a sua literalidade. Outro problema das universidades medievais era a priorização da teologia em relação a todas as outras disciplinas do conhecimento.

As primeiras universidades do Ocidente foram verdadeiros presentes com strings attached, isto é, com condições. Tais condições eram geralmente contrárias ao livre pensar e ao desenvolvimento do conhecimento. Uma das principais justificativas para a criação das primeiras universidades foi a ideia de que a busca da verdade acerca do mundo era uma forma de descobrir o Deus criador. Entretanto, assim como aconteceu nos primeiros anos do cristianismo, as autoridades da Igreja suspeitavam que os textos dos eruditos gregos e árabes-islâmicos eram uma ameaça à ortodoxia cristã. Do outro lado dessa guerra cultural estavam os teólogos filósofos que buscaram conciliar a erudição pagã ao cristianismo, ou reja, a razão metodológica à fé cristã, dando origem ao método escolástico. O fundador da Escolástica latina que procurou reformar a enciclopédia árabe aristotélica do conhecimento foi Santo Alberto Magno (1200-1280), mas foi um aluno dele, São Tomás de Aquino (c.1225-1274), quem elevou e firmous a escolástica. No seu livro Summa Theologica, escrito de 1265 a 1274, ele procura mostrar as ligações entre a ciência, razão, filosofia, fé e teologia. Outro erudito que seguiu a linha escolástica foi o inglês Roger Bacon (c. 1220-1292). Ele procurou mostrar às autoridades eclesiásticas que não precisavam se preocupar com os estudos que não viessem da revelação divina, como a filosofia de Aristóteles, argumentando que a verdade era uma só e vinha de Deus. Entretanto, conforme veremos abaixo, Bacon chegou a abandonar a universidade a fim de poder se dedicar ao estudo de Aristóteles e Avicena e escrever, mas os colegas da ordem franciscana lhe puxaram o tapete.

Santo Alberto Magno (canonizado em 1931) era um frei dominicano nascido na Suábia, atual Alemanha. Foi professor de Tomás de Aquino, e, um notável proponente da escolástica ou escolasticismo, doutrina caracterizada pela busca da harmonização entre os ensinamentos de Aristóteles e outros filósofos da antiguidade e os da Igreja Católica. Depois de ter estudado artes liberais em Pádua, Bolonha e na Alemanha, passou a ensinar teologia em diversos conventos da Alemanha. Por fim, ele foi transferido para o convento de Saint Jaques, que fazia parte da Universidade de Paris, onde teve contato com os textos de, ou sobre, Aristóteles e outros eruditos gregos e islâmicos. Deixou uma obra de metafísica cristianizada, baseada na sua interpretação das quatro causas de Aristóteles.

São Tomás de Aquino nasceu na vila de Roccasecca, próxima de Aquino, na Sicília. Entrou para o mosteiro de Monte Cassino como noviço e posteriormente foi estudar na recém-fundada Universidade de Nápoles, criada pelo Imperador Frederico II. Em Nápoles, ele tomou conhecimento das obras de ciência e filosofia grega que estavam sendo traduzidas do grego e do árabe. Em seguida, ele se afiliou à ordem dominicana com o propósito de ter mais liberdade para meditar. Quando se encontrava no convento de Saint Jaques, em Paris, que era o centro de estudos universitários dos dominicanos, ele estudou com o pensador alemão Alberto Magno. A teoria filosófica de Tomás de Aquino é inspirada na teoria do corpo e da alma de Aristóteles, que afirma a existência de uma ‘alma’ responsável por dar vida ao corpo, quer do homem quer dos outros animais. A fim de criar a sua própria tese filosófica, ele tomou a ideia de Aristóteles que afirmava que a alma humana era diferente da dos outros animais, não só porque é capaz de entender as coisas e de agir por si própria, como também porque não deixa de existir depois da morte do indivíduo, acrescentando que, por fim, voltará a se reunir com o corpo como consequência do juízo final. Reconhecendo que tal não podia ser provado pela razão, Aquino afirmou que se trata de um ‘mistério da fé’. A ‘filosofia teológica’ de Aquino foi aceita pelas autoridades católicas, que lhe conferiram o título de ‘doutor angélico da Igreja’, e em 1323, canonizou-o.

Roger Bacon, pensador inglês nascido em Ilchester, Somerset, estudou matemática, astronomia, ótica, alquimia, e línguas. Tornou-se docente das Universidades de Paris e de Oxford onde ficou conhecido como ‘Professor Prodígio’. Assim como Tomas de Aquino, Bacon encantou-se em descobrir o pensamento de Aristóteles e de Avicena (980-1037 EC) ao ponto de largar a academia e se juntar à ordem dos franciscanos a fim de poder dedicar-se mais ao estudo. Grande estudioso da filosofia, Bacon afirmou a importância do método empírico e da prova matemática, e fez diversas especulações científicas futuristas como máquinas voadoras mais leves que o ar, o transporte mecânico por terra e por mar, a circum-navegação do globo e a construção de microscópios e telescópios. Bacon também escreveu sobre a ética e apontou como principais causas da ignorância humana, a autoridade indigna, o mau hábito, os preconceitos da cultura popular e a presunção infundada. Entre 1266 e 1267, Francis Bacon trabalhou na sua Opus majus (Obra maior), onde reuniu todos os seus estudos, críticas filosóficas e especulações. Em seguida ele começou a trabalhar numa enciclopédia de ciência e filosofia, embora apenas fragmentos desta tenham sido publicados. Escreveu ainda Opus minus (Obra menor) e Opus tertium (Terceira obra). Bacon escrevia num estilo altamente deferente ao papa e ao cristianismo mas mesmo assim os seus colegas de ordem indignaram-se com seus escritos e o denunciaram ao Papa Clemente IV. Os próprios franciscanos prenderam Bacon entre 1277 e 1279 por ‘novidades suspeitosas’ nos seus ensinamentos.

Os quatro exemplos acima foram os primeiros a mostrar a estreita ligação que havia entre as universidades e a Igreja e como essa ligação cerceava o pensamento dos acadêmicos. A peste negra que assolou a Europa de 1348 a 1350 fez com que as autoridades católicas desconfiassem de tal catástrofe teria sido uma punição divina pelas ideias contrárias aos textos da Bíblia. Pensadores, tanto das universidades quanto fora dela, passaram a viver sob a ameaça de serem presos e até mortos na fogueira por suas teses heréticas. Essa é uma razão pela qual os pensadores só discutiam com os seus pares e não tinham o hábito de escrever para a população leiga. Nicolau Copérnico (1473-1543), o autor do livro Das revoluções dos corpos celestes (em inglês: On the revolutions of heavenly bodies) acerca da sua tese heliocêntrica, era extremamente cuidadoso em escolher com quem discutir suas ideias, e adiou a publicação desse livro até bem perto de sua morte. Em 1616, o mesmo foi listado no Índice de Livros Proibidos. Em 1669 um professor de filosofia da Universidade de Cambridge, na Inglaterra, Daniel Scargill (1647-c.1690), foi demitido simplesmente por ter apoiado o filósofo Thomas Hobbes (1588-1679), um ateísta declarado. O próprio Hobbes foi escorraçado da sociedade, impedido de publicar novos livros, e até acusado de ter atraído, pelo seu ateísmo, a ira da Divina Providência, causadora do grande incêndio de Londres de 1666. Em 1616, o físico e matemático Galileu Galilei (1564-1642) chegou a ser condenado por de heresia pelo tribunal da Inquisição[xiii], após ser denunciado pelos próprios colegas da Universidade de Pisa.

Uma das regras douradas da civilização é graduar a responsabilidade das pessoas ao seu nível educacional. Portanto, é natural presumir que entre os professores das universidades a virtude sempre supera o vício. É dessa pressuposição que surgiu a metáfora da torre de marfim aplicada ao mundo acadêmico. Entretanto, os acadêmicos não apenas possuem vícios e virtudes na mesma medida que o resto da população, como também possuem vícios próprios, como a arrogância decorrente da pressuposição de certeza.

 Do secularismo iluminado às universidades modernas

O Iluminismo ou o Século das Luzes é o divisor d’águas da libertação da mente do indivíduo dos grilhões da religião e do Estado, marcando a emergência do secularismo. Dois pensadores que se destacaram na campanha pelo secularismo foram o já anteriormente mencionado Voltaire (1694-1778), e o escritor, jornalista e inventor inglês naturalizado americano Thomas Paine (1737-1809). Paine escreveu um livro intitulado ‘The Age of Reason (A idade da razão), argumentando que a Bíblia era mitológica, embora tivesse um valor literário, e discutindo o lugar da religião na sociedade. O Iluminismo do século XVIII estendeu o conhecimento erudito e científico a toda a população leiga, através de livros, jornais e revistas, assim como da Enciclopaedia editada por Dennis Diderot (1713-1784) e Jean le Rond d’Alembert (1717-1783).

Apesar da luta dos pensadores iluministas pela liberdade de estudar e publicar os frutos de seus estudos, pelo menos uma parte da produção acadêmica continuava cerceada pelas autoridades religiosas. A Universidade de Saint Andrews, na Escócia, originalmente católica, mas depois tornada protestante, rejeitou o filósofo David Hume (1711-76) para um posto acadêmico devido aos rumores de que ele era ateu. Em 1798, o filósofo Immanuel Kant (1724-1804), professor da Universidade de Könisberg, na antiga Prússia, recebeu uma reprimenda oficial por ter contrariado a ortodoxia teológica, após uma denúncia de colegas da própria universidade.

A Península Ibérica, onde as ideias iluministas do naturalismo, do secularismo, e da educação universal, só se assentaram no século XIX, assistiu à ascensão do anticlericalismo, que visava tirar da Igreja o monopólio do ensino primário e livrar as universidades do cerceamento religioso. Entretanto, em diversas partes da Europa pipocavam movimentos contrários às ideias iluministas. Felizmente, a opinião pública bem informada não desapareceu de todo, e onde havia esta, havia também universidades inteiramente seculares.

Foi, no século XVIII, na Alemanha, que as universidades foram reformadas dentro das ideias iluministas[xix] do século XVIII, como a independência de pensamento. Tal reforma provou ser um sucesso em termos de produção acadêmica original. As universidades alemãs reformadas eram autônomas, tinham currículos modernos, que abrangiam desde as inovações da ciência às profundas incursões da filosofia, da sociologia e da história.  A Alemanha foi o primeiro país a desenvolver a educação científica (wissenschaftliche Bildung). A influência das universidades alemãs logo se espalhou para os demais países de língua germânica, principalmente para a Universidade de Viena, na Áustria, que no início do século XX passou a ser um importante núcleo da inteligência ocidental.  O modelo alemão de ensino superior foi transplantado para diversas universidades dos Estados Unidos, em especial para aquelas que fazem parte da Ivy League.

Dois pensadores analisam o papel da universidade: Max Weber e Karl Jaspers

Max Weber (1864-1920) e Karl Kaspers (1883-1969) foram dois grandes pensadores do início do século XX que se preocuparam em avaliar o papel da universidade. Os dois eram amigos e isso fez com que trocassem ideias. Weber e Jaspers foram os mais capazes peritos acerca do ensino superior e da universidade.

Weber era um sociólogo, filósofo, jurista e economista político alemão. Ele iniciou seus estudos na Universidade de Heidelberg em 1882, mas teve que trancar matrícula depois de dois anos para se alistar no serviço militar. Finda a guerra, ele se matriculou na universidade de Berlim para concluir seus estudos e depois na universidade de Göttingen. Seu trabalho mais conhecido é A ética protestante e o espírito do capitalismo (1930), (Die protestantische Ethik und der Geist des Kapitalismus 1904–05), mostrando a correlação estatística entre o sucesso em empreendimentos capitalistas e a mentalidade protestante, pelo menos em sua terra natal, a Alemanha. Weber é também é conhecido por sua profunda compreensão da história e de outras ciências e por sua profunda compreensão da natureza humana. A vida e a carreira de Weber foram interrompidas pela Primeira Guerra Mundial. Em 1918, ele aceitou a cadeira de sociologia da Universidade de Viena, onde morreu dois anos depois, aos 56 anos. Durante seu breve período como acadêmico, ele se dedicou ao tema de educação, especialmente do ensino superior, e apontou que os sistemas educacionais, por estarem embebidos noutras instituições sociais, políticas, econômicas, religiosas e legais, careciam de avaliação crítica.

Jaspers foi um pensador polímata que se destacou na psiquiatria, na filosofia e na educação superior. Na psiquiatria, ele foi pioneiro no sistema de classificação de tipos básicos de personalidade. Na filosofia, ele publicou Philosophie (1932), uma importante  obra em três volumes. Na educação superior, ele foi um dos principais líderes do projeto de reconstrução das universidades alemãs depois da Primeira Guerra mundial. Jaspers entendia a universidade como sendo “uma comunidade livre, de acadêmicos e estudantes, envolvidos na tarefa de buscar a verdade”  e colocou essa ideia no ensaio de 1923 intitulado  ‘A ideia da universidade’. Neste ensaio, Jaspers levanta diversas perguntas relevantes acerca do sistema da universidade. Quais são as ferramentas chaves da universidade?  Qual é a relação entre a universidade e o Estado? Quais são as justificativas para a manutenção da universidade? Infelizmente, a carreira acadêmica de Jaspers foi paralisada pelo nazismo alemão em desforra por suas frequentes críticas ao partido de Hitler. Não contentes com o essa punição, em 1938, os nazistas proibiram Jaspers de publicar e começaram a ameaçá-lo por causa de sua esposa judia. Apesar de tudo, Jaspers e sua esposa decidiram permanecer na Alemanha. O casal já havia sido agendado para deportação para um campo de concentração quando o exército dos EUA entrou em Heidelberg em abril de 1945. Em 1946, Jaspers publicou uma nova e aumentada edição do ensaio de 1923 sobre a universidade, no qual ele aponta o papel da universidade na reabilitação da Europa após a Segunda Guerra mundial, bem como no resgate das mais nobres ideias do Iluminismo. Escreveu ele:

A universidade cumpre as suas tarefas – pesquisa, instrução, treinamento, comunicação – dentro de uma estrutura institucional. Requer edifícios, materiais, livros e institutos de sua administração ordenada. Privilégios e deveres devem ser distribuídos entre seus membros. A universidade representa um todo corporativo independente com sua própria constituição.

A universidade existe apenas na medida em que é institucionalizada. A ideia se concretiza na instituição. A extensão em que faz isso determina a qualidade da diversidade. Despojada de seu ideal, a universidade perde todo o valor. No entanto, “instituição” implica necessariamente compromisso. A ideia nunca é perfeitamente realizada. Por esse motivo, existe na universidade um permanente estado de tensão entre a ideia e as deficiências da realidade institucional e corporativa.

Até as melhores instituições da universidade tendem a se deteriorar e a se distorcer. Assim, a própria tradução do pensamento para a forma ensinável tende a empobrecer sua vitalidade intelectual. Uma vez que as conquistas intelectuais são admitidas no corpo do aprendizado aceito, essas realizações tendem a assumir um ar de finalidade. Portanto, é apenas uma questão de convenção em que ponto um assunto termina e o outro começa. Além disso, é possível que um excelente estudioso não consiga encontrar um lugar para si nas divisões departamentais estabelecidas. Um estudioso medíocre pode ser preferido a ele simplesmente porque seu trabalho se encaixa no esquema tradicional. Qualquer instituição tende a se considerar um fim em si mesma. (Cap. 6.)

Em 1948, já com 65 anos de idade, Jaspers aceitou o convite para lecionar na universidade de Basileia, na Suíça, e decidiu por recomeçar a vida acadêmica naquele país.

A morada dos sábios

Existe algumas pressuposições sobre a universidade que advém do histórico do sucesso da universidade no projeto civilizatório das sociedades, como a noção de que é a morada das melhores mentes ou a mais importante alavanca do avanço tecnológico e científico. Essas pressuposições não apenas são erradas mas também contribuem para a falta de avaliação crítica da universidade.

O simples exame da relação de autores canônicos refuta a ideia de que as universidades são a morada das melhores mentes. Considerando-se apenas a era moderna, a maior parte dos pensadores do Iluminismo, incluindo o editor e os principais colaboradores da primeira Enciclopédia, não tinha vínculos com universidades. Os grandes pensadores e cientistas dos séculos XIX e XX eram independentes ou tiveram apenas curtas passagens por universidades, como: Arthur Schopenhauer (1788-1860), John Stuart Mill (1806-73), Charles Darwin (1809-82), Gregor Mendel (1822-84) e Friedrich Nietzsche (1844-1900). Os exemplos do século XX incluem: George Santayana (1863-1952), Bertand Russell (1872-1970), José de Ortega y Gasset (1883-1955), Ludwig Wittgenstein (1889-1951), Jean Paul Sartre (1905-80) e Simone du Beauvoir (1908-86). Outro exemplo notório é Albert Einstein (1879-1955), que escreveu as suas duas teorias de relatividade quando trabalhava num escritório de patentes, e só posteriormente virou professor universitário.

A ideia de que as universidades são os conduítes por excelência do conhecimento é também falsa. Os brilhantes criadores das startups da tecnologia da informação, que deram origem à a Apple e a Microsoft, não trabalharam em universidades mas em suas casas e garagens. O cientista Greig Venter, (1946-), que, em 2001, publicou a sequência completa dos genes humanos, também não tinha ligações com nenhuma universidade. Ele fez esse trabalho na empresa Celera Genomics, que ele próprio fundou, em 1988, com o objetivo de sequenciar e analisar genomas.

Embora o conhecimento seja um único conjunto de entendimentos, a hiperespecialização resultante do aprofundamento do conhecimento gerou uma multiplicidade de departamentos nas universidades, sendo que muitos dos quais passaram a funcionar como feudos. Um fato bastante observado nesses feudos é a blindagem da disciplina do chefe de departamento contra a contratação de professores de capacitação maior. Na melhor das hipóteses, os novos mestres ou doutores tem oportunidades de lecionar numa universidade em áreas secundárias ou terciárias às de suas especializações. Assim, um jovem gênio da área de cálculo diferencial acaba por lecionar não no departamento de matemática, mas no departamento de economia.

Ultimamente tem surgido muitas críticas às universidades do Ocidente, em especial àquelas que dependem da contribuição financeira do Estado. Como exemplos de críticos da universidade eu gostaria de citar Roger Scruton (1944-2020), David Horowitz (1939-), Camile Paglia ( 1947-), Stephen Hicks (1960-) e Jordan Peterson (1962-). Todos esses concordam que a universidade ocidental está decadente, e apontam a narrativa coletivista[xv] que nelas se aninhou a partir da década de 1960, como sendo a maior causa dessa decadência. O mais contundente desses críticos é Scruton, falecido em janeiro deste ano, que escreveu: “Não podermos mais confiar a nossa alta cultura às universidades.” E ainda: “Quando as instituições são incuravelmente corrompidas, assim como as universidades foram corrompidas pelo comunismo, nós devemos começar de novo, mesmo que o custo seja tão alto quanto foi na Europa ocupada pelos soviéticos”.

 Conclusão

É difícil encontrar uma pessoa sensata que negue a importância do ensino ou que não considere a universidade como o seu pináculo. Entretanto, o ensino e a universidade também têm faltas e fraquezas. Os sinais dessas estão na cegueira deliberada acerca de abusos de poder, ineficiências e nepotismos. Sobre os nepotismos, esses apenas aparecem em boatos, e a questão é quase sempre varrida para debaixo do tapete.[xvi]. Conforme escreveu David Hume, “a corrupção das melhores coisas resulta na geração das piores”. Encarar de frente os problemas das universidades é uma condição necessária para assegurar que sobrevivam e continuem cumprindo seus objetivos de ensino e pesquisa.

Referências

Cronck, Nicholas. Voltaire: A Very Short Introduction. Oxford University Press. 2017.

Davies, Norman. Vanished Kingdoms: The History of Half Forgotten Europe. 2011.

Greenblatt, Stephen. The Swerve: How the World Became Modern. Norton, 2011.

Jaspers. K. The Idea of the University. Edited by Karl W. Deutsch. Preface by Robert Ulich. Boston, Bacon Press, 1959.

Scruton, R. The end of the university. First Things, April 2015. (Disponível em português em PortVitoria, 20, 2020).

Vretos, Theodore. Alexandria, City of Western Mind (Alexandria, cidade da mente ocidental). 2001.

Wiesehöfer, Joseph. Ancient Persia from 550 BC to 650 AD. Translated by Azizeh Azodi. L. B. Tauris Publishers, London. 1996. Kindle edition.

Williams, Hywel. Emperor of the West. Charlemagne and the Carolingian Empire. Quercus, 2010.

Outras (Consultar JPO)

                       

Joaquina Pires-O’Brien, uma brasileira residente no Reino Unido,  é fundadora e editora de PortVitoria.

Retornar à HomePage

 

Notas

[i] O termo ‘mundo helênico’ refere-se à cultura grega do mundo mediterrâneo durante os três séculos após Alexandre, o Grande, que morreu em 323 EC.

[ii] A cidadania grega era entendida como a afiliação formal à polis, que dava direitos como votar em questões do governo, ser votado para cargos no governo, e, possuir terras. Devido a esse objetivo, é mister entender o sistema grego de cidadania. Havia uma regra de que apenas aqueles residentes livres e que podiam rastrear sua ascendência a um famoso pioneiro da cidade eram considerados cidadãos. Essa regra abria exceções para a pessoas de fora dotadas de grande riqueza ou de habilidades valiosas. A noção de cidadania da Roma antiga era parecida com a dos gregos em termos de responsabilidades e privilégios, Embora os romanos fossem bem mais abertos do que os gregos na concessão da cidadania, Roma instituiu duas categorias de cidadania, com e sem o direito ao voto.

[iii] Na mitologia grega, musas inspiradoras da literatura, da ciência e das artes eram as nove filhas de Zeus e Mnemósine (a personificação da memória). São elas: Calíope (da poesia épica), Clio (da história), Érato (da poesia de amor), Euterpe (da poesia lírica), Melpômene (da tragédia), Polihimnia (da poesia sagrada e da eloquência), Terpsícore (da dança), Tália (da comédia) e Urânia (da astronomia). Dentre as diversas narrativas acerca das musas destaca-se o poema ‘Erga kaí Hemérai’ (lat.: ‘Opera et Dies’; ing.: Works and Days’), de Hesíodo, escrito em torno de 700 AEC.

[iv] Após a morte prematura de Alexandre em 322 AEC, nenhum herdeiro foi inicialmente apontado para o trono e os generais macedônios que acompanharam Alexandre nas suas conquistas, 74 ao todo, tramaram a forma de dividir o império entre si. Dentre esses, Arridaeus era meio-irmão reconhecido de Alexandre, e Ptolomeu um possível meio-irmão. Ptolomeu havia sido o principal guarda-costas de Alexandre, e portanto, tinha uma ascendência sobre os demais. Ele encarregou Arridaeus de trazer o corpo de Alexandre para que fosse sepultado no Egito. Em 321 AEC, os antigos generais de Alexandre fizeram o acordo conhecido Partição de Triparadisus. Através deste, Felipe Arrhidaeus, mais o filho de Alexandre com Roxana, que nasceu após a morte do pai, foram ambos reconhecidos como herdeiros. Em consequência disso, o império macedônico ganhou dois reis, Felipe III, um portador de doença mental, e Alexandre IV, que ficou sob a guarda de Perdica. Tanto Felipe II quanto Alexandre IV foram assassinados, assim como Perdica. Daí pra frente os generais competiram entre si pelos diversos reinos acéfalos. Ptolomeu I Soter (323-283 AEC) virou rei do Egito e fundou a dinastia dos Ptolomeus, que inclui a infame Cleópatra VII. Entre 312 e 302 AEC, Seleuco organizou um exército de mercenários e ficou com a Síria, então um vastíssimo império.

[v] Tribo germânica que ocupava os atuais territórios da Bélgica, França, Luxemburgo, Holanda e oeste da Alemanha.

[vi] A expressão ‘educação liberal’ é assim chamada por ser o tipo de educação que considerada digna do homem livre, em contraposição com a educação de escravos, que era sempre dirigida a algum ofício. As artes liberais da antiguidade grega foram preservadas no ensino da escola helenística, que, por sua vez, influenciou o sistema educacional latino, baseado no trivium (o trívio do ensino básico: gramática, retórica e lógica) e no quadrivium (o quadrívio do ensino mais adiantado: matemática, geometria, astronomia e música).

[vii] A emergência do cristianismo provocou o desmantelamento do sistema de educação liberal oferecida tanto no mundo grego quanto no latino. O primeiro pensador cristão a defender a educação liberal foi Agostinho (354-430), que apontou o valor do saber antigo, inspirando alguns pensadores cristãos a reconsiderar o ensino das artes liberais. No primeiro século após a queda do Império Romano do Ocidente as artes liberais receberam a bipartição em trivium (gramática, retórica e lógica) e quadrivium (matemática, geometria, astronomia e música), após terem sido reabilitadas pelos educadores Boecio (c. 480-c.525 EC) e Cassiodoro (c. 490-c.583 EC).

[viii] O programa educacional introduzido por Carlos Magno foi orientado pelo sábio inglês Alcuíno (Ealhwine, Alhwin ou Alchoin) de Iorque (723-804 EC), clérigo católico, estudioso e professor, nascido na Inglaterra, onde teve como mentor o Venerável Beda (673-735 EC). Durante uma estadia na Itália, Alcuíno conheceu Carlos Magno e tornou-se seu amigo e conselheiro. Sob a orientação de Alcuíno, Carlos Magno ordenou o estabelecimento de escolas episcopais, em conventos, mosteiros e igrejas, voltadas tanto para a formação de padres quanto para a educação da população leiga.

[ix] Luís, o Pio, foi o último monarca do império carolíngio, o qual foi dividido após a sua morte. O Império Carolíngio transformou-se, então, em duas unidades políticas – França Oeste que se tornou o reino da França, e França Leste, a precursora da Áustria e da Alemanha. Embora Carlos Magno tivesse recebido do papa o título de ‘Imperador Romano’, o primeiro a receber o título de ‘Sacro Imperador Romano’ foi o rei alemão Otão I, coroado na catedral de Aix-la-Chapelle em 936.

[x] Toledo foi capturada em 1085 e passou a ser a cidade mais importante da Espanha cristianizada.

[xi] Um grande avanço nessa área ocorreu no século XIII, quando os países da Europa e do Oriente Médio começaram a emitir moedas de ouro. Com isso, o comércio por trocas desapareceu e deu lugar ao sistema monetário, bem como ao sistema de contabilidade baseado em livros-caixa de dupla entrada, introduzidos entre 1050 e 1350. O livro-caixa foi uma inovação altamente relevante pois permitia visualizar a situação do negócio a qualquer momento. A partir daí surgiu o sistema de treinamento de aprendizes de contabilidade e de bancos.

[xii] Frederico II (1194-1250), também chamado Constantino Frederico Roger, era também rei da Sicília, duque da Suábia e rei alemão, e apesar do título de Sacro Imperador Romano, ele defendeu o poder imperial contra o papado.

[xiii] Galileu havia escrito um ensaio resgatando a tese heliocêntrica de Copérnico, depois de ter observado as órbitas dos planetas ao redor do sol com o uso do seu telescópio. Graças às amizade dele com a família Médici, ele foi deixado sem punição até 1632, mas, em 1633, a pena de ser queimado na fogueira foi comutada pela prisão domiciliar, depois que ele admitiu publicamente que a Terra era o centro estacionário do universo. Galileu perdeu o cargo na universidade e passou o resto da vida em Florença, onde morreu aos 77 anos de idade.

[xiv] Muitos autores reconhecem um Iluminismo maior, que inclui tanto Idade da Razão do século XVII quanto o Século das Luzes do século XVIII.

[xv] O filósofo alemão Juhann Gottlieb Fishte (1762-1814) foi um dos primeiros a pregar a ideia da superioridade do coletivismo sobre o individualismo, com sua concepção teológica do ‘eu’. Para Fichte, o indivíduo nada vale sem a sociedade, e deve deixar de existir, a não ser para o grupo – Gattung. O homem isolado contradiz a sua própria natureza. A sociedade é a grande fogueira em torno do qual as pessoas se juntam. Outro filósofo alemão, Georg W. F. Hegel (1770-1831), tomou a ideia de Fichte sobre a primazia do grupo sobre o indivíduo para a sua ideia de um espírito do mundo que dirige o curso da história.

[xvi] Entretanto, um estudo sobre o nepotismo nas universidades da Itália foi publicado como notícia no jornal The Independent, do Reino Unido, de 25 de setembro de 2010: “A revista de investigação L’Espresso e o jornal La Repubblica revelaram o surpreendente grau em que os empregos de professor universitário  são mantidos na família, no esclerótico sistema de ensino superior da Itália. Na Universidade La Sapienza, em Roma, por exemplo, um terço do corpo docente tem membros próximos da família como colegas. No geral, as instituições superiores do país têm 10 vezes mais chances de empregar dois ou mais membros da mesma família que outros locais de trabalho.” E ainda: “Nenhuma instituição italiana aparece no ranking mundial de universidades do Times Higher Education 2010.” Fonte: https://www.independent.co.uk/news/world/europe/family-fiefdoms-blamed-for-tainting-italian-universities-2089120.html

Neera K. Badhwar e Russell E. Jones

É surpreendente que Aristóteles dedique vinte por cento da Ética a Nicômaco (EN) a uma discussão sobre amizade – mais do que às virtudes de coragem, temperança, generosidade, magnificência, magnanimidade, brandura, graça, veracidade, sagacidade e mortificação apropriada, combinadas; e mais do que o dobro do espaço à justiça ou à virtude intelectual. Isso é um forte contraste com o espaço dedicado hoje em dia à amizade na maioria das obras sobre ética. Talvez isso não nos devesse surpreender: Aristóteles enfatiza corretamente que é da própria natureza dos humanos viver em associação com os outros (Política I.2). “Ninguém escolheria viver sem amigos”, ele nos garante, “nem mesmo se ele tivesse todas as outras coisas boas” (1155a5-6).i Além disso, porque as virtudes são parcialmente constitutivas da mais alta forma de amizade, a amizade baseada no caráter virtuoso, uma discussão sobre esse tipo de amizade envolve uma discussão das virtudes em um contexto que deixa claro como elas nos beneficiam.

Aristóteles chama essa forma mais elevada de amizade, a baseada no caráter dos amigos, de ‘completa’ (teleion). É o caso paradigmático da amizade, o caso central, em cuja referência as amizades incompletas, de utilidade ou prazer, são compreendidas. Por isso, nós nos concentramos no caso central, a fim de esclarecer a explicação de Aristóteles sobre a amizade de maneira mais ampla (Seção I). É uma questão de alguma controvérsia no tocante a quão distantes do caso central as outras formas de amizade divergem, e em que aspectos.ii Sobre a interpretação que adotamos e discutimos a seguir, o que torna as outras formas de amizade incompletas não é que elas não tenham a marca chave da amizade, a boa vontade mutuamente reconhecida. Na verdade, esses amigos desejam coisas boas uns para os outros, e, até o fazem pelo bem do outro e não simplesmente pelo que ganham com o relacionamento. No entanto, essas amizades são incompletas porque a sua base – prazer ou lucro, em vez de bom caráter – é incidental à identidade dos amigos. Embora não o façam plenamente, eles percebem algo do que admiramos no caso central da amizade de caráter [também conhecida como amizade de virtude, amizade de excelência ou amizade perfeita. NT].

O caso central em si levanta várias questões difíceis que discutiremos abaixo. Um diz respeito à base do relacionamento (Seção II). Aristóteles, às vezes, é levado a sustentar que a única coisa que tais amigos precisam para compartilhar uma vida e amar uns aos outros é a virtude. Mas essa visão levanta a questão de por que não podemos amar apenas uma pessoa virtuosa que cruza nosso caminho.iii Além disso, vários textos na EN mostram que no eu amável há mais do que a virtude como tal, e há mais em uma vida compartilhada do que a atividade virtuosa compartilhada como tal.

Outra questão concernente ao caso central decorre do fato de que Aristóteles frequentemente traça uma imagem idealizada de pessoas virtuosas e amizades baseadas na virtude, um quadro que o leva a observar que tais amizades são raras porque a virtude é rara (1156b24-5). Isso confinaria a maioria de nós a formas menores de amizade. Como veremos, no entanto, Aristóteles também costuma pintar um retrato não ideal da pessoa virtuosa e da amizade de caráter [ou de virtude], tecendo essa imagem mais realista com sua imagem idealizada (Seção III). Essa concepção realista, argumentamos, nos permite participar da forma completa de amizade em graus variados, dependendo do grau em que somos virtuosos.

Também discutimos duas implicações importantes do reconhecimento de Aristóteles de amizades de caráter imperfeito (Seção IV). Uma delas é que tais amizades geram a necessidade de virtudes de resposta adequada a essas imperfeições. Mostramos que Aristóteles discute essas virtudes, embora o fato de que ele o faça sem nomeá-las, infelizmente tenha resultado em sua marginalização por [parte de seus] intérpretes. Outra implicação é que a teoria da amizade de Aristóteles pode reconhecer uma amizade conjugal virtuosa na qual os cônjuges têm virtudes e papéis diferentes, mas complementares, como uma amizade entre iguais. O próprio Aristóteles falha em reconhecer isso, mantendo, em vez disso, a ideia de que os maridos virtuosos são naturalmente superiores às esposas virtuosas. Vale observar que o seu erro surge de um relato equivocado da natureza humana, não especificamente de sua teoria da amizade. O resultado de nossa discussão é que, embora o próprio Aristóteles seja responsável por obscurecer certas características positivas de sua teoria da amizade, a sua visão é mais realista e mais plausível do que é às vezes reconhecida, e admite desenvolvimento e adaptação ao mesmo tempo em que permanece completamente aristotélica.

I. A concepção básica de amizade de Aristóteles

A concepção de philia de Aristóteles, geralmente traduzida como amizade, é mais ampla que a nossa, incluindo não apenas nossas relações com amigos ou parceiros em vários empreendimentos, mas também entre pais e filhos, entre irmãos, e entre relacionamentos maritais e eróticos. Envolve pessoas que chamamos de amigos e aquelas que chamamos de amantes, e inclui relacionamentos nos quais o afeto que cada um sente em relação ao outro é naturalmente expresso usando o termo ‘amor’, como nas relações familiares e eróticas, bem como aqueles como parcerias de negócios, em que o carinho é expresso com termos como ‘sentimento amigável’ ou o ‘gostar’. Seguindo Aristóteles, nós nos referimos a todos esses relacionamentos por um termo genérico, amizade, porque existe um núcleo comum a todos eles. De fato, uma pequena investigação revela que os vários termos os quais habitualmente usamos são apenas variações de um tema, e a concepção central de amizade que está em jogo é realmente bastante familiar. O que torna um relacionamento uma amizade é a mútua philēsis, isto é, o afeto ou amor ou gosto que se manifesta no desejo e realização de coisas boas entre si, pelo bem de cada um, e não apenas pelo nosso (1155b31-32). Mas o carinho, o amor ou o gosto podem existir sem amizade: pode-se amar alguém que não tem ideia da existência daquele que a ama, ou que não retribui o amor recebido, enquanto a amizade exige reciprocidade. Há amor não correspondido, mas não há amizade não correspondida. Pode-se também amar o vinho, o dinheiro ou a honra, mas a pessoa deseja isso para o próprio bem, ao passo que, na amizade, cada um deseja isso pelo bem do outro. Ademais, o afeto ou desejo de amizade é ativo, envolve cada amigo tentando trazer coisas boas para o outro, em vez de um mero sentimento ou atitude, o que pode ocorrer a todas as pessoas decentes em todos os lugares. Essa qualidade ativa de amizade não se limita à ação em nome do amigo como benfeitor do beneficiário, embora, é claro, haja um lugar para isso. Muito mais crucialmente, a amizade envolve o tempo gasto juntos em atividades compartilhadas. Os amigos fazem mais do que agir em nome um do outro, pois podemos agir em nome de uma vítima de desastre que nunca encontramos; e o tempo que passam juntos vai além da mera proximidade, pois até as vacas passam tempo juntas no cocho (1170b12-14). Amigos se envolvem uns com os outros em atividades compartilhadas.iv

Dentro desta ampla caracterização, no entanto, há espaço para muita variação. Observe, por exemplo, como diferentes amizades simétricas entre companheiros de idade e status semelhantes são de amizades assimétricas entre pessoas de status diferentes, como pais e filhos, mesmo que continuem sendo caracterizadas pela boa vontade mútua e pelo tempo que passam juntos. Aristóteles explora muitas dessas variações, mas a que mais lhe interessa é a variedade em que se fundamenta uma amizade. Os fundamentos da amizade são, em geral, três: utilidade, prazer e virtude. Além das relações familiares, escolhemos principalmente nossos amigos e, quando escolhemos as poucas pessoas com quem nos engajamos em várias atividades, fazemos isso por um ou mais desses motivos.

Considere-se, primeiro, a utilidade. Muitos de nossos relacionamentos se formam porque cada um de nós pode ser útil ao outro de maneiras específicas. Por exemplo, considere John, que vende vinho para Sally. John é útil para Sally, fornecendo-lhe vinho, enquanto Sally é útil para John, contribuindo para a rentabilidade de sua loja e, portanto, para seu sustento. Observe que, mesmo que a utilidade de cada um para o outro seja o que dá origem à amizade, é natural, em tal amizade, desejar que o outro obtenha vários bens para o próprio bem, e não apenas na medida em que os outros bens obtidos por ele o tornarão mais útil para você.v Então, se John está sendo considerado para um prêmio do Better Business Bureau pelo seu excelente serviço ao cliente, Sally pode desejar que ele o receba, mesmo reconhecendo que tal honra, embora seja um reflexo da utilidade de João para ela (e para outros como ela), dificilmente aumentará essa utilidade. Mesmo assim, a amizade é baseada na utilidade: se John parar de vender vinho, ou se Sally parar de comprar, a amizade se dissolverá.

Outras amizades são baseadas no prazer. Suponha que Sally e Brady gostem de provar vinho, analisá-lo e aprender sobre suas várias propriedades e métodos de produção. Eles podem, então, ter o hábito de provar juntos o vinho que Sally adquire de João. O que fundamenta a amizade deles é esse prazer compartilhado. Novamente, mesmo que seja o prazer compartilhado da degustação de vinhos que dá origem à amizade, é natural que eles desejem bens um para o outro que não tenham relação com sua atividade conjunta. Suponha que Sally queira viajar para visitar sua família. Brady pode coerentemente desejar esse bem para ela, mesmo que isso impeça temporariamente a atividade compartilhada de degustação de vinhos. Mesmo assim, a amizade é baseada no prazer. Talvez se aprofunde com o tempo ou se expanda para abranger outras atividades agradáveis. Mas, se a amizade deles permanecer baseada principalmente no prazer compartilhado da degustação de vinhos, e, se um dos dois perder o interesse por essa atividade, a base para o relacionamento desaparecerá e, assim, a amizade se dissolverá.

Uma maneira pela qual uma amizade pode se aprofundar ao longo do tempo é para aqueles que podem ter começado a passar tempo um com o outro principalmente com base na utilidade ou prazer, para começar a apreciar um ao outro pelas boas qualidades que vão além daquelas que estão envolvidas em suas atividades úteis ou prazerosas. Brady pode ter apreciado Sally pela sua profunda lembrança de fatos enológicos, pelo seu discernimento das sutilezas do sabor e pela sua curiosidade. Todas essas qualidades formam um ótimo parceiro de degustação de vinhos. No entanto, quando passam algum tempo juntos, Brady pode apreciar a generosidade de Sally, a maneira sábia e corajosa como ela lida com circunstâncias difíceis, e sua infalível justiça em suas relações com as pessoas. Isto é, ele pode vir a apreciar qualidades que vão além de fazer de Sally uma boa companheira de degustação de vinho, qualidades que a tornam uma boa pessoa. Se esse reconhecimento do bom caráter for mútuo, e eles desenvolverem afeição um pelo outro por causa disso, a amizade passa a ser fundamentada na virtude.vi Esse embasamento agrega novo valor ao relacionamento. Considerando que antes, Brady e Sally podem ter avançado em seu conhecimento do vinho juntos, encorajando um ao outro em sua atividade conjunta, agora eles podem avançar juntos de maneiras muito mais importantes, encorajando a virtude um no outro. Além disso, ao reconhecer o bom caráter um do outro, cada um deles pode entender melhor o seu próprio. E como esse tipo de amizade se baseia nos traços mais centrais de cada pessoa, ela tenderá a ser duradoura, ameaçada apenas por uma mudança fundamental para um caráter pior, ou por uma longa separação.

Este último tipo de amizade, muitas vezes chamado de amizade de caráter [ou de virtude], é para Aristóteles o caso paradigmático da amizade; assim, ao entender o caso paradigmático, podemos entender melhor os outros. Ele a considera paradigmática não apenas porque está fundamentada em traços centrais, duradouros e importantes das pessoas envolvidas, como também porque a amizade baseada na virtude se revela útil e agradável em adição (1156b7-24). Assim, diferentemente das outras formas, tem o potencial de abranger tudo de bom sobre a amizade. Como é o tipo central de amizade, é teoricamente mais significativo, por isso seguimos a orientação de Aristóteles e concentramos a maior parte de nossa atenção na amizade de caráter.

Em amizades de caráter, distintas das amizades de utilidade e de prazer, Aristóteles diz que gostamos da outra pessoa e desejamos coisas boas para ela por conta dessa pessoa (1156b9-11).vii Aqui ele não quer dizer que é somente em amizades de caráter que um amigo se importa com o outro pelo bem do outro; Aristóteles é enfático ao afirmar que tal carinho é uma marca de amizade em geral, embora, é claro, os relacionamentos possam diferir marcadamente na qualidade e na intensidade desse cuidado.viii Quando ele diferencia as amizades de caráter, dizendo que apenas amigos de caráter (ou talvez no mais alto grau) desejam coisas boas uns para os outros por conta de quem eles realmente são, ele está marcando as boas qualidades de caráter de uma pessoa como mais centrais para quem ela realmente é do que aquelas qualidades – como amar filmes noir ou ser bons em banheiros – que meramente a façam agradável ou útil para sua amiga. O pensamento de Aristóteles consiste no fato de que o que é ser útil ou agradável para outra pessoa depende das necessidades, desejos ou recursos incidentais de cada um. Se duas pessoas são agradáveis ​​uma com a outra, isso se baseia no fato de que seus vários desejos, hobbies, características físicas ou afins respondem uns aos outros de maneira agradável. Contudo, essas são conexões contingentes: quando a necessidade ou recurso desaparece, ou os desejos ou interesses mudam, o fundamento da utilidade ou da amizade prazerosa se dissolve.ix Por outro lado, o bom caráter, segundo Aristóteles, é a compreensão do que um ser humano é por natureza.x Portanto, desenvolver-se em virtude é progredir no sentido de tornar-se cada vez mais plenamente aquilo que de fato somos. Ou, colocando de uma forma um pouco menos paradoxal: na medida em que a pessoa é virtuosa, ela percebe o próprio potencial, como ser humano, como sendo aquilo que é em essência.

Dizer tudo isto é explicar por que desejamos bens para a outra pessoa: porque, no caso de uma amizade de caráter, ela é boa. O mesmo tipo de resposta é apropriado para as outras formas de amizade. Desejamos bens para nossa amiga porque ela é agradável ou porque ela é útil. É crucial reconhecer que esta é a resposta para uma questão específica: Qual é a base do nosso benquerer? Essa base é exatamente o que produz o sentimento amigável que guia e sustenta nosso relacionamento. Sua bondade, sua simpatia ou sua utilidade não servirão como resposta a uma pergunta diferente, relativa ao objeto das nossas querenças. Não estamos desejando que ela esteja bem apenas, e nem sobretudo, para que ela continue a ser útil ou agradável para nós, embora, ao mesmo tempo, não desejamos para ela bens a impeçam de ser útil ou agradável para nós. Mesmo no caso de amizade de caráter, Aristóteles observa que não queremos que um amigo se torne um deus, porque a amizade não poderia sobreviver a tal transformação (1159a5-12). Assim, embora a natureza do relacionamento e o desejo de sua continuidade imponham restrições aos bens que podemos desejar para um amigo, desejamos, no entanto, coisas boas para ele, para seu próprio bem. É por isso que Aristóteles pode definir a própria amizade, e não apenas a amizade de caráter, por esse tipo de desejo, enquanto divide a amizade em três tipos por seus vários fundamentos: ‘As pessoas amam por três coisas [motivos]. . . Mas eles dizem que é preciso desejar coisas boas para um amigo pelo bem do amigo [objeto]. . . Então eles devem ter boa vontade e desejar coisas boas uns para os outros [objeto]. . . por causa de uma ou outra das [três] coisas que dissemos [motivos] ‘(1155b27-1156a5; cf. Retórica 1380b36-1381a2).xii

O que diferencia a amizade de caráter dos outros tipos de amizade é, portanto, uma questão de fundamentos, não de desejar coisas boas para o benefício do outro. E, os fundamentos fazem uma grande diferença na qualidade da amizade. A virtude é mais estável que o prazer ou a utilidade. Ela é mais essencial para quem devemos nos dar, considerando quem somos como seres humanos –  ou, para colocar o mesmo ponto de forma ligeiramente diferente, para quem devemos nos dar, considerando quem somos. Mas louvar a amizade de caráter acima de tudo não é repudiar as outras formas, que são amizades genuínas marcadas por uma preocupação pelo bem do amigo.

II. A vida compartilhada: Mais do que vida de virtude compartilhada

Aristóteles sustenta que os amigos de caráter [ou amigos de virtude] amam e desejam o bem um ao outro por causa de suas virtudes. Isto pode ser usado para sugerir que tudo o que determina se duas pessoas desenvolvem e mantêm uma amizade de caráter são suas virtudes. Mas tal visão é problemática, porque parece implicar que, além das restrições de tempo, não há razão para que não possamos amar e ser amigos de qualquer boa pessoa que cruze nosso caminho. Claramente, no entanto, embora não existam barreiras psicológicas para admirar todas as pessoas virtuosas, há muitas barreiras para amar e desejar fazer amizade com todas as pessoas virtuosas. A experiência ensina que simplesmente não é o caso de que todas as pessoas virtuosas possam ser ‘eus mútuos’, como Aristóteles insiste que devem ser para que sejam amigos de caráter.

Uma resposta comum é que, a história compartilhada com um amigo virtuoso é que torna o amigo insubstituível. Todavia, isso ainda pressupõe que, antes que haja uma história compartilhada, qualquer pessoa virtuosa bastará para qualquer outra pessoa virtuosa. Além disso, se a única vertente importante em uma história compartilhada é o caráter virtuoso e as ações virtuosas abstratamente consideradas, pode-se transferir o amor e a amizade para uma pessoa mais virtuosa sem perda. Não faz mais sentido ficar com o velho amigo quando surge uma perspectiva melhor, da mesma forma que ficar com o antigo livro de geografia quando surge um melhor. Todavia, tratar amigos como livros desatualizados parece contrário ao espírito da amizade. Uma concepção plausível de amizade deve, portanto, reconhecer que há mais em uma vida compartilhada do que a atividade virtuosa compartilhada.

Há outro problema com a sugestão de que tudo o que é necessário para a amizade de caráter é a virtude. Como Lawrence Blum coloca, essa visão de amizade é implausivelmente ‘supermoralizada’, porque “o gosto compartilhado e o cuidado (e reconhecimento mútuo destes pelos amigos) e as atividades compartilhadas nas quais eles são expressos…. embora não estejam desvinculados do caráter moral de uma pessoa, também não estão fundamentados nelas”.xiii Essa queixa perde um pouco de sua força quando se reconhece que a concepção de virtude de Aristóteles é muito mais abrangente do que a de muitos filósofos contemporâneos. Para Aristóteles, a virtude é exigida em todas as áreas importantes da vida: nas relações sexuais, no manejo do dinheiro e, até mesmo, nas atividades de comer, beber e conversar. Assim, por exemplo, a inteligência, em oposição à bufonaria e à vulgaridade, é uma virtude nas relações amistosas (1128a1-12), e a phronesis ou sabedoria prática são exigidas tanto para aquelas preocupações que são basicamente relativas a si mesmas quanto para aquelas que são primariamente relativas a outras. Como Martha Nussbaum assinala, uma das distinções do pensamento de Aristóteles está em ver a expressão da excelência humana no cenário aparentemente trivial do cotidiano; então, os seres humanos que amam o outro pela sua excelência vão querer compartilhar mesmo naquilo que é simples e mundano.”xiv Nancy Sherman chega a ponto de dizer que “a força física e um bom nascimento” são virtudes para Aristóteles.xv

Este último, no entanto, é controverso, e nós não precisamos dele para salvar a explicação de Aristóteles da acusação de ser supermoralizada. Mostramos abaixo que uma imagem mais rica e mais plausível da amizade, embora nem sempre reconhecida por comentaristas ou críticos, está implícita no relato de Aristóteles sobre uma vida compartilhada, precisando apenas ser destacada. A atenção às circunstâncias externas e aos traços de personalidade que Aristóteles considera importantes para uma vida compartilhada, mostram o realismo psicológico de seu relato, e explicam por que não podemos ser amigos de qualquer pessoa virtuosa, e, por que os amigos de caráter não são fungíveis.

Aristóteles afirma que, embora os amigos de caráter amem e desejem o bem uns aos outros por causa de suas virtudes, grandes desigualdades de idade (1161b34-35), riqueza ou status (1158b34-1159a4) podem impedir que duas pessoas boas se tornem amigas. Isso ocorre porque os amigos precisam ‘viver juntos’ – isto é, passar tempo juntos em conversas e outras atividades – a fim de ir além do simples sentimento de amizade para a amizade genuína (1170b11-14), e uma grande diferença de idade, riqueza ou status é geralmente uma barreira para passar tempo juntos. A necessidade de atividades e conversas compartilhadas também implica que grandes distâncias tornam difícil, senão impossível, manter a amizade, (1157b10-14) – pelo menos na ausência de sistemas modernos de telecomunicações. Atividades compartilhadas levam tempo, e, assim, a falta de tempo também limita o número de amizades de caráter que podemos ter (1171a1-10).

A alegação de Aristóteles de que grandes desigualdades em idade, riqueza ou status podem impedir que duas pessoas boas compartilhem uma vida sugere que há mais na identidade de um amigo como amigo, e mais na sua ‘desejabilidade’ como amigo do que meras virtudes, consideradas abstratamente. Para passar tempo juntos, os amigos devem sentir prazer um com o outro e nas mesmas coisas (1157b22-24). As pessoas que não desfrutam das mesmas coisas não podem compartilhar conversas e atividades de maneira consistente. Presumivelmente, é por isso que uma grande desigualdade de idade, riqueza ou status, como a que existe entre governante e cidadão, pode impedir a amizade (1158b33-1159a3). Grandes diferenças em riqueza e status geralmente significam uma diferença nos interesses, preocupações e prazeres de duas pessoas. Com a idade, também, os nossos interesses e atividades tendem a mudar, e nem sempre de forma a complementar os interesses e atividades de alguém muito mais jovem. Podemos suportar o que é doloroso por um tempo, mas não continuamente. Fazendo um chiste em relação a seu mentor, Aristóteles insiste que “mesmo ‘a forma do bem’ [de Platão] seria uma companhia insuportável, se fosse constantemente dolorosa” (1158a24-25).xvi Ele faz um ponto semelhante na Ética Eudemiana (EE): um amigo deve ser “não simplesmente bom, mas bom para você, se ele vai ser seu amigo” (1238a3-4; ver também Magna Moralia (MM) 1209b38-1210a6).

À luz dessas e de outras declarações semelhantes, a alegação de John Cooper de que embora um amigo de caráter “espera prazer e vantagem de sua associação com seu amigo”, ele “associa-se a uma pessoa boa por causa de sua bondade”, e não porque proporciona prazer ou vantagem, subestima, desse modo, a importância do prazer e da vantagem na amizade de caráter.xvii As virtudes do amigo virtuoso, como são expressas em suas conversas e ações, devem ser prazerosas para o amigo, a fim de começar a amizade e mantê-la. Por que outra razão A escolhe o B virtuoso como amigo, ao invés de alguma outra pessoa virtuosa da mesma idade, status e riqueza? Além disso, se A é atraído por B porque essa pessoa é boa e é uma companhia prazerosa, ele também deve acreditar, mesmo que apenas tacitamente, que essa pessoa irá inspirá-lo a se tornar uma pessoa melhor e a estar presente nas horas de necessidade, pois tais são as virtudes de amizade. Assim, ele deve estar tacitamente ciente da vantagem de ter B como um amigo. À medida que a sua amizade se desenvolve, ele também deve descobrir que ela fornece a ele uma autoconsciência prazerosa (IX.9) e autoconhecimento (MM 1213a10-26). Se ela não o fizer, a amizade deles não será uma amizade de caráter. Portanto, devemos concluir que, para Aristóteles, quando A escolhe B porque ela é boa, ele a escolhe simultaneamente porque a sua bondade é ao mesmo tempo prazerosa e vantajosa para si.xviii

Aristóteles enfatiza que um amigo de caráter é “aquele que passa tempo e escolhe as mesmas coisas” que o seu amigo (1166a6-7). Isso deixa claro que ele não tem em mente que os amigos escolhem as mesmas coisas simplesmente no sentido mais amplo de que ambos escolhem o que é certo ou virtuoso. Em vez disso, ele quer dizer que eles propositadamente escolhem os mesmos projetos e atividades; eles escolhem agir juntos. Em outras palavras, os amigos de caráter não estão apenas em harmonia ao tomar decisões virtuosas no curso de suas próprias atividades, eles estão em harmonia sobre o envolvimento em (muitas das) mesmas atividades. Assim, um amigo “lamenta e se alegra com seu amigo” (1166a7-8) tanto porque se importa com seu amigo e se identifica com ele, quanto porque, em alguns casos, ele se preocupa com os mesmos projetos que seu amigo, cujo fracasso ou sucesso resulta em sua angústia ou prazer. No IX.6, Aristóteles enfatiza a importância da homonomia ou mesmice da mente sobre questões práticas entre amigos (cf. EE 1241a15-30). Sherman aponta que homonomia é uma extensão da ideia de que os amigos escolham uns aos outros por conta de quem são, de seus caracteres, e, ao fazê-lo, comprometam-se a criar uma vida eudemônica juntos.xix Assim, a sua homonomia pode consistir nos dois amigos decidindo juntos que tipo de presente de casamento comprar para um conhecido ou, para tomar emprestado de Sherman, como responder a alguém que os ofendeu, de modo que qualquer que seja a felicidade ou desapontamento resultante de sua resposta seja compartilhado, assim como a responsabilidade por isso. Esses exemplos ilustram a declaração de Aristóteles de que conviver para os seres humanos é “compartilhar conversa e pensamento”, e não compartilhar o mesmo espaço (1170b12-14). O acordo dos amigos sobre suas vidas juntos também pode – e muitas vezes isso acontece – se estender à adoção de algumas atividades preexistentes, ou à adoção de novas atividades.xx

É esse entrelaçamento de vidas, em toda a sua particularidade, que constitui uma amizade. Uma “história compartilhada”, diz Talbott Brewer, “pode mudar tanto a experiência subjetiva quanto a ontologia objetiva das atividades atuais…. a experiência subjetiva dos companheiros de longa data pode ser  dourada (ou manchada) pela presença persistente do passado.”xxi Da mesma forma, os amigos “continuamente improvisam maneiras mutuamente atraentes de conversar e interagir”, ampliando e refinando “uma sensibilidade avaliativa compartilhada – por exemplo, um senso compartilhado do que vale a pena fazer ou dizer, do que é engraçado, do que é mortalmente sério, do que agradavelmente irônico.” São esses “seres e feitos” compartilhados que tornam os amigos insubstituíveis.xxii

Se Aristóteles pode reconhecer a importância de os amigos terem interesses e atividades semelhantes ou complementares, não há nenhuma razão baseada em princípios para que ele não possa reconhecer a importância de os amigos terem traços de personalidade semelhantes ou complementares. Aqui estamos nos aventurando além do texto, mas não contra o mesmo. Faz parte da experiência comum que os traços de personalidade – o senso de humor de uma pessoa, a sua maneira de conversar, o seu estilo de raciocínio e até mesmo o estilo de seu caráter – desempenham um papel importante em estimular e preservar a amizade. Considere, por exemplo, duas pessoas boas que diferem das seguintes maneiras: uma é solitária, a outra gregária e extrovertida; um tem um humor seco, o outro conta histórias engraçadas; um tende a ser lento, sério e inquisitivo, ao lidar com questões cotidianas, e o outro é rápido e intuitivo; um busca situações que exigem, especialmente, coragem física, e o outro situações que exigem generosidade. Eles podem se complementar e se dar bem, descobrindo que suas diferenças enriquecem suas vidas. Como no caso de interesses e atividades, nem todos os traços de personalidade precisam ser compartilhados para os amigos se darem bem, ou para terem a compreensão mútua e a harmonia necessárias para serem “outros eus” um do outro. No entanto, pessoas com traços de personalidade ou estilo de personalidade muito diferentes também podem colidir entre si e se irritar um ao outro se não entenderem de onde o outro está vindo e não conseguirem se comunicar. E não precisa haver nada de racional ou irracional em relação à resposta: ambas as respostas podem ser fatos básicos com causas, mas não razões, nas psicologias das duas pessoas. E assim, se os amigos tentam explicar por que eles se amam, em vez de alguém com características e interesses semelhantes, tudo o que eles podem dizer é que são porque são quem são.xxiii

Em suma, o reconhecimento da virtude de cada um é o reconhecimento da possibilidade de amizade, mas para a possibilidade virar realidade, devemos gostar de passar tempo juntos, e tal gozo requer interesses e traços de personalidade comuns ou complementares. É em uma vida compartilhada que a possibilidade de amizade gradualmente se realiza, à medida que os amigos passam a amar a pessoa que é revelada e constituída pelas atividades e interações virtuosas particulares que compõem a sua amizade.

Essa análise da amizade de caráter é intuitivamente plausível e consistente com o texto. Ele explica o que torna os amigos insubstituíveis um ao outro e também explica por que não consideramos simplesmente qualquer pessoa virtuosa como candidata à amizade. Assim, também fornece uma resposta a uma pergunta diferente: por que devemos ter amigos íntimos para viver a ‘eudemonia’? Essa questão é levantada por Richard Kraut, o qual lamenta o fato de que Aristóteles não explica satisfatoriamente por que não basta, para viver a ‘eudemonia’, agir virtuosamente em relação a outros membros virtuosos de nossa comunidade. Ele pergunta: por que a cooperação ocasional com cada um deles “em um espírito de boa vontade e admiração … não fornece espaço suficiente para atividades virtuosas e uma vida bem vivida?” De acordo com Kraut, a resposta de Aristóteles de que um amigo é outro eu (IX.4), e de que precisamos nos perceber em outro para viver a ‘eudemonia,’ não responde a pergunta, pois não há razão para que “a percepção da atividade virtuosa em concidadãos não seja um substituto adequado para a percepção da virtude em seus amigos”.xxiv Mas Kraut não captura a resposta ou as respostas que Aristóteles fornece, porque ele assume que o ‘eu’ de uma pessoa virtuosa é definido pelas suas virtudes, concebidas abstratamente, e assim toda pessoa virtuosa é um ‘eu’ para todas as outras pessoas virtuosas. Nessa visão, o ‘eu’ virtuoso de A e a atividade virtuosa na situação S, são substituíveis sem perda pelo ‘eu’ virtuoso de B e pela atividade virtuosa na situação S, que, por sua vez, são substituíveis sem perda por C … e assim por diante. No entanto, como argumentamos, o texto não suporta essa interpretação da visão de Aristóteles (e, afirmamos, nem é uma visão que descreve com exatidão a atividade virtuosa real e os ‘eus’ virtuosos). Atividades virtuosas e ‘eus’ virtuosos estão incorporados nas particularidades da vida das pessoas, incluindo seus interesses e traços de personalidade, e os ‘eus’ que os amigos criam em uma vida compartilhada não são substituíveis sem perda por outros ‘eus’.

Evidentemente, a nossa explicação sobre por que escolhemos os amigos e por que eles se tornam insubstituíveis não é a única. Elijah Millgram engenhosamente interpreta Aristóteles como sustentando que amamos apenas as pessoas virtuosas que ‘criamos’, porque somente as nossas criações podem ser ‘outros eus’. Como evidência para essa interpretação, Millgram aponta as muitas passagens nas quais Aristóteles argumenta que nós amamos as nossas produções ou criações porque nos realizamos através delas. É por isso que os pais amam seus filhos (1161b22-29), os artesãos amam seus produtos (1167b33-35) e os poetas amam seus poemas (1168a1-2). Da mesma forma, Millgram argumenta que devemos entender Aristóteles dizendo que amamos os nossos amigos porque, através de nossa influência causal sobre eles, nos realizamos através deles, tornando-os assim nossos ‘outros eus’.

No entanto, isso, não explica o que dá início a uma amizade de caráter, ou seja, por que os amigos de caráter começam a se tornar amigos antes de terem uma influência moral salutar entre si por meio de conversas e atividades conjuntas. A resposta de Millgram é que eles podem ter uma influência tão involuntária uns sobre os outros através de suas ações virtuosas, ou através de “boa vontade espontânea”, mesmo antes de serem amigos. xxvi

O ponto sobre a influência involuntária é certamente verdadeiro, mesmo que o próprio Aristóteles nunca o faça. Mas essa influência não é suficiente para justificar a afirmação de que eles criaram o ‘eu’ um do outro em qualquer sentido, mas sim no sentido mais marginal. Mais importante, pelas razões que demos acima, essa influência mútua não é necessária nem suficiente para a atração recíproca que pode levar ao amor mútuo de amizade. A pode influenciar e ser influenciado por B, C e D até certo ponto sem ser atraído por eles, e A e E podem ser atraídos um pelo outro sem ter qualquer influência um sobre o outro. De fato, Aristóteles argumenta explicitamente que “geralmente a boa vontade se dá por causa de algum tipo de virtude e decência, sempre que uma pessoa parece à outra ser boa ou corajosa ou algo desse tipo” (1167a18-20). A boa vontade torna-se amizade quando perdura e os dois passam a se conhecer (1167a10-12; compare com 1156b25-32). Nenhuma menção aqui ou em outro lugar de que as pessoas têm que ter influenciado um ao outro antes de se tornarem amigos, a fim de se tornarem amigos.

Millgram acha que a visão que se atribui a Aristóteles é desagradável, e com razão. Felizmente, os textos não apoiam a sua interpretação. Os textos dizem que, na ausência de barreiras externas para uma vida compartilhada, tudo o que duas pessoas precisam para se tornar amigas é o reconhecimento da virtude e do prazer um do outro na companhia um do outro, um reconhecimento e prazer os quais lhes dizem que, em uma medida importante, eles já são os outros ‘eus’ um do outro, adequados para compartilhar uma vida juntos. Depois de começarem a passar tempo juntos, eles contribuem, de fato, para criar os ‘eus’ um do outro, moldando as sensibilidades e os interesses um do outro e inspirando um ao outro para se tornarem seres humanos melhores. E isso, como Millgram argumenta, fortalece o seu amor mútuo. Mas o seu amor mútuo precede essa criação recíproca, e não se limita, ao longo da sua amizade, àquelas características do ‘eu’ um do outro que eles ajudaram a criar.

III. A virtude não ideal e a amizade de caráter virtuoso

A afirmação de Aristóteles de que os amigos de caráter virtuoso inspiram uns aos outros a se tornar seres humanos cada vez melhores mostra que ele acredita que uma amizade de caráter não está limitada a pessoas perfeitamente virtuosas, mesmo que ele tenda a se concentrar na amizade dos perfeitamente virtuosos. Como Cooper argumenta que, desde que a base de uma amizade seja estabelecida sobre as qualidades virtuosas dos amigos, a amizade é de caráter, mesmo que ambos os amigos tenham falhas e reconheçam as falhas um do outro.xxvii Na verdade, um dos principais valores da amizade de caráter, como acabamos de salientar, é que nos permite tornar-nos pessoas melhores.xxviii Mas tal visão se encaixa mal com a maneira como Aristóteles é tipicamente entendido quando fala sobre pessoas virtuosas no resto da EN, onde ele parece predisposto a fazê-las perfeitamente virtuosas.

Argumentaremos que, assim como ele apresenta dois retratos de amizade de caráter, ele apresenta dois retratos da pessoa virtuosa: um retrato idealizado e um retrato realista. Começaremos discutindo as amizades de caráter entre pessoas imperfeitamente virtuosas e, então, procederemos a uma discussão sobre pessoas perfeitamente e imperfeitamente virtuosas. Isso nos ajudará a esclarecer tanto sua visão da amizade de caráter quanto sua visão da pessoa virtuosa. O amigo imperfeitamente virtuoso aparece em vários lugares na discussão de Aristóteles sobre amizade. Em VIII.13-14, Aristóteles afirma que dentro de cada um dos três tipos de amizade, pode haver amizades de iguais e desiguais. Ele inclui explicitamente os amigos de caráter nessa generalização, enfatizando que os igualmente bons podem tornar-se amigos uns dos outros e que uma pessoa melhor pode tornar-se amiga de uma pior (1162a34-b1). Assim, amizades de caráter podem existir entre pessoas desigualmente boas .

Em IX.3, Aristóteles discute dois casos de amizade de caráter imperfeito. Primeiro, ele considera se você deve permanecer amigo de uma pessoa virtuosa que mudou para pior. Sua resposta, em resumo, é que, embora seja compreensível para você interromper a amizade, e embora você claramente deva romper a amizade se a maldade de seu amigo for incurável, a sua amizade passada lhe dará uma boa razão – e talvez até mesmo uma obrigação –  para tentar redimi-lo. De fato, se você considerar óbvio que deve ajudar a restaurar os bens materiais de seu amigo, é ainda mais óbvio que você deva ajudar a restaurar o caráter de seu amigo, já que o caráter não apenas é mais importante que os bens materiais, como também é mais importante para a amizade de vocês. (1165b19-21). Então, não só é possível ter uma amizade de caráter com alguém que é imperfeitamente virtuoso, mas essa amizade lhe dá motivos para ficar ao lado dele, mesmo quando ele se tornou mau, a fim de resgatar o seu caráter e a sua amizade.

Em segundo lugar, suponha que você seja amigo caráter de alguém, mas você progride grandemente em virtude enquanto o amigo não o faz, de modo que haja uma diferença significativa em seus caracteres. Por acaso a amizade existente lhe dá motivos para manter a amizade, mesmo que você não formasse agora uma nova amizade caráter com essa pessoa? Aristóteles se aturde com essa possibilidade, reconhecendo que você não pode permanecer amigo de alguém de que gosta e que valoriza coisas diferentes de você (1165b26-30), mas também notando que a amizade passada é relevante para como você trata a pessoa agora (31-36). Novamente, o ponto para os nossos propósitos é que Aristóteles não tem em mente o virtuoso perfeito; afinal, para que um progrida muito além do outro, isso significa que ambos estavam longe da virtude ideal no início da amizade. Mas isso não significa que eles não eram amigos por causa do caráter.

Tais casos de virtude desigual, ou de progresso desigual na virtude, servem bem o suficiente para mostrar que Aristóteles admite amizades de caráter imperfeito. Contudo, o caso mais interessante é aquele em que duas pessoas boas progridem juntas em virtude. No final do Livro IX, na sua última palavra na discussão da amizade no NE, Aristóteles nos diz que as pessoas boas se tornam ainda melhores quando se tornam amigas de outras pessoas boas, porque elas se corrigem e são moldadas uma pela outra. 1172a11-13). Este comentário ecoa um aparte anterior em 1170a11-12, onde Aristóteles observa que aqueles que vivem entre pessoas boas recebem uma espécie de ‘treinamento em virtude’. E ele não está lá falando sobre o desenvolvimento da primeira infância, mas sim sobre por que a boa pessoa precisa de amigos. A preocupação que as pessoas boas têm pelo caráter próprio e pelo dos outros se manifesta também na evitação de atividades erradas: ambos desencorajam seus amigos a praticar atividades erradas e ativamente obstruem isso quando necessário (1159b5-7).xxix De fato, na Magna Moralia, Aristóteles (ou um aristotélico) sugere que os amigos virtuosos precisam um do outro para desenvolver o autoconhecimento e a virtude, visto que tendemos a ser cegos para nossas próprias falhas (1213a10-26).xxx

O relato de Aristóteles de amigos imperfeitamente virtuosos levanta a questão de como podemos reconciliá-lo com a discussão da virtude em livros anteriores da EN, onde muitas vezes parece que os virtuosos não têm falhas. Para dar apenas um exemplo, em I.10, Aristóteles admite que as circunstâncias podem desviar, de uma maneira menor ou maior, a felicidade dos virtuosos, mas não a sua virtude. Mesmo no meio de um grande infortúnio, a sua bondade ‘brilha’ (1100b30); eles nunca (1100b34) farão errado, mas sempre (1100b19) o que é certo. Isso se encaixa bem com a afirmação de Aristóteles de que a sabedoria prática está preocupada com tudo o que é bom ou ruim para os seres humanos, está ligada à presença de cada virtude moral, e, por sua vez, à presença de todas as virtudes morais (1144b30-1145a6). Mas se a sabedoria prática é global desta maneira, e as virtudes são unidas ou recíprocas, cada qual apoiando e sendo apoiada pelas outras, não há espaço para qualquer falha ou fragilidade de caráter que possa levar à ruína da pessoa virtuosa. Em suma, a pessoa virtuosa parece ser perfeita, caracteristicamente deliberando bem e escolhendo os meios certos para os fins corretos em todas as áreas da vida humana. Essa habilidade implica na posse de (i) princípios morais corretos; (ii) verdadeiras generalizações empíricas sobre, por exemplo, a melhor maneira de criar bons filhos, a igualdade ou desigualdade de mulheres e homens em suas faculdades intelectuais ou morais, e os tipos de leis e instituições que possam promover ou dificultar o bem comum; e (iii) a capacidade de aplicar esses princípios e generalizações às circunstâncias específicas em questão (1141b8-21).

No entanto, há boas razões para acreditar que ninguém é perfeitamente virtuoso, e o próprio Aristóteles ocasionalmente revela que ele reconhece isso.xxxi Por exemplo, em 1109b14-20, Aristóteles observa que atingir a média em relação à raiva é difícil – tão difícil, na verdade, que os pequenos desvios, embora errados, não são censuráveis. Como o mesmo também é verdade para as outras virtudes, isso sugere que não é de todo incomum que as pessoas virtuosas estejam aquém da perfeição. Aristóteles, inclusive, chega a sugerir que a própria virtude pode tornar alguém propenso a um certo tipo de erro: a generosidade de uma pessoa generosa faz dela um alvo fácil para os injustos, que fazem de tudo para separá-lo de seu dinheiro (1121a1-7). O argumento de Aristóteles aqui não é que a generosidade é inerentemente excessiva – isso contradiz sua própria doutrina da média, sobre a qual uma virtude não pode ser nem excessiva nem deficiente. O seu ponto é que, em algumas circunstâncias, as pessoas injustas podem tirar proveito de uma pessoa generosa, porque o último “não honra o dinheiro”, estando mais preocupado em gastar corretamente do que em não gastar de maneira errada. Talvez o homem generoso considere a possibilidade de que estão se aproveitando dele, mas opta por errar ao lado de ajudar. Ou talvez a pessoa generosa seja inocente sobre os modos dos predadores, porque ele não pode conceber plenamente tais pessoas. De qualquer forma, o erro dele é menor.

Muito mais revelador são as frequentes sugestões de Aristóteles de que a virtude vem em graus: uma pessoa virtuosa pode ser mais ou menos justa, corajosa ou comedida (1173a20-22; ver também 1117b9-11, 1120b9-11, 1123b26-30, 1168a33-35, 1172a10-14). E mais surpreendentemente, Aristóteles declara que um covarde na guerra pode ser generoso com o dinheiro, uma afirmação que aparentemente contradiz sua própria visão de que as virtudes estão unidas (1115a20-22). Presumivelmente, porque a declaração admite uma interpretação alternativa. Uma vez que generosidade implica sabedoria prática e covardia implica uma ausência de sabedoria prática, alguém que é ao mesmo tempo generoso e covarde tem sabedoria prática com relação ao dinheiro, mas não com relação ao perigo físico.xxxi Segue-se, então, que a sabedoria prática e, portanto, a virtude não são globais. Nesta interpretação, é possível que pessoas diferentes sejam praticamente sábias em diferentes domínios de suas vidas, e que as virtudes sejam unidas dentro desses domínios.xxxiv

No restante deste artigo, queremos destacar algumas implicações dessa concepção não ideal do virtuoso. Se até mesmo os melhores indivíduos são falhos, reconhecer essas falhas em nós mesmos e em nossos amigos, e responder apropriadamente, é essencial tanto para o autoaperfeiçoamento quanto para ser um bom amigo. Tais amigos, como veremos, possuem virtudes que Aristóteles discute, mas não nomeia. Além disso, se a virtude não é global, então os amigos de caráter podem se complementar, destacando-se em diferentes arenas. Um caso especialmente interessante que Aristóteles discute é a amizade entre marido e mulher, que ele considera ser uma amizade entre parceiros desiguais, graças a sua suposição de que as mulheres são inerentemente inferiores aos homens. No entanto, se admitirmos essa falsa suposição, então, dada a sua sugestão de que as pessoas podem desenvolver a virtude em diferentes domínios, a amizade conjugal pode ser uma amizade de iguais.

IV. As virtudes de amigos imperfeitamente virtuosos

Uma pessoa virtuosa que é imperfeitamente virtuosa deve, em primeiro lugar, ter um projeto de se tornar uma pessoa melhor. As pessoas que não se importam com o próprio caráter não podem ser virtuosas, não simplesmente porque a virtude pressupõe o cuidado e a tentativa de se tornar virtuoso, mas também porque faz parte de ser (imperfeitamente) virtuoso ter o desejo efetivo de melhorar. No mínimo, então, os amigos virtuosos devem estar abertos ao aperfeiçoamento, e não enganar a si mesmos ou aos seus amigos sobre os seus defeitos, e tampouco serem descarados e desavergonhados para com eles. Alguém que é descarado e desavergonhado sobre as suas falhas de caráter não é virtuoso, mas vicioso, (1128b31-32) – embora isso não significa, Aristóteles é rápido em apontar, que o indivíduo propenso a envergonhar-se de atos vergonhosos seja virtuoso (1128b32- 33).

Outra virtude de indivíduos imperfeitamente virtuosos diz respeito à sua atitude em relação aos seus próprios erros menores. Por exemplo, uma pessoa generosa que se desvia da devida doação será penalizada, “mas de maneira comedida e apropriada” (1121a1-2). Em outras palavras, ele vai sentir algum arrependimento ou vergonha pelos seus fracassos, mas não vai bater em si mesmo. Isso, é claro, também se generaliza para outros fracassos de virtude. Além disso, desde que ele ama o seu amigo da mesma maneira que ele ama a si mesmo (IX.4), um amigo bom e virtuoso não irá, Aristóteles concordaria, bater em seu amigo também. Em vez disso, como um igual ao outro, ele tentará encorajar a bondade de seu amigo sem fazê-lo se sentir diminuído ou humilhado. Por sua vez, ele vai acolher em vez de se ressentir das correções de seu amigo, porque ele quer melhorar e ele confia que seu amigo é uma testemunha confiável e o trata com justiça.xxxv Nesse sentido, o amor de amigos virtuosos também é, em parte, um poder no sentido de reconhecer e extrair a bondade potencial de cada um. O amor deles é, portanto, tanto discernente quanto imaginativo, tanto um respondedor notável quanto um buscador otimista e, também, uma parteira de valor. O espírito de busca de tal amor torna a amizade de caráter generosa e confiante, permitindo a um amigo apostar na realização do potencial de seu amigo e agir na expectativa de sua realização. E o amigo, na medida em que é um amigo, vai retribuir essa confiança e generosidade cumprindo as expectativas do amigo.

Mas e se um amigo virtuoso se tornar vicioso? Como vimos, Aristóteles acha que devemos tentar resgatar o amigo, porque o caráter é importante demais para ser deixado de lado dessa maneira. Um amigo amoroso deve fazer o seu melhor para ajudar o outro a se tornar melhor, e apenas desistir se ele falhar (1165b13-22).

Essas passagens fornecem uma visão mais completa do ‘amor’ que é “uma virtude de amigos” (1159a34-35): o amor que é expresso em fazer o bem ao amigo, desejando-lhe bem por si mesmo, e compartilhando as suas alegrias e tristezas. É revelador que Aristóteles considere essas atitudes como características tanto do amor aos amigos de caráter quanto do amor de mãe pelos seus filhos. E embora ele não diga isso, a disposição de um amigo amoroso para perdoar as falhas de um amigo e ajudá-lo a melhorar, ser leal a ele, a menos que ele tenha se tornado incuravelmente ruim, também é como o amor de uma mãe. Um amigo amoroso é também justo em não aplicar um padrão mais elevado a um amigo do que a si próprio, e está aberto às correções de seu amigo sem ressentimento ou melindre. O que torna essas disposições virtudes é o fato de que elas incorporam um reconhecimento e um entendimento adequado ao fato de que, assim como nós mesmos, os nossos amigos são imperfeitos, mas capazes de melhorar e que, em geral, os amigos devem mais aos amigos do que aos outros. (1160a3-8, 1162a29-33).

Com esse rico retrato de amizades boas, mas imperfeitas, diante de nós, queremos finalmente voltar ao relato de Aristóteles sobre a amizade conjugal. Como a maioria de seus contemporâneos, Aristóteles pensava que as mulheres são inerentemente inferiores aos homens em virtude e intelecto. Isto implica que, mesmo que ambos, esposa e marido, sejam virtuosos e, portanto, compartilhem uma amizade de caráter, eles não podem ter uma amizade de iguais. Nenhuma quantidade de educação ou experiência pode superar os defeitos naturais da mulher e torná-la adequada para a participação na esfera pública ou para assumir a liderança no privado.xxxvi A razão prática defeituosa da esposa virtuosa implica que uma de suas virtudes é ser guiada pelo seu marido (Política 1260a13, 23). O seu defeito seria agravado se ela não pudesse reconhecer isso. O relacionamento de um homem e uma mulher é como uma polis aristocrática: é o homem – o melhor – que governa, mas ele confia à mulher as tarefas que são apropriadas para ela (1160b32-35, 1161a22-25). Se ele tomasse o controle de tudo, transformaria o seu casamento em uma oligarquia, pois tal ação de sua parte inflaria seu próprio valor e negaria o de sua esposa. Em um bom casamento, cada qual tira prazer das virtudes do outro (1162a25-27), mas a superioridade do marido requer que mais coisas boas venham dele (1161a22-25). Aristóteles pensa que o modo de equalizar uma amizade desigual é amar a outra proporcionalmente ao seu valor (1159b1-2). Presumivelmente, então, ele pensa que, em uma amizade de caráter entre esposa e marido, a esposa deve amar mais o marido do que este a ama. Este é o único tipo de igualdade possível em uma virtuosa amizade conjugal.

Há um ar de paradoxo na sugestão de que a esposa ame o marido de acordo com seu valor superior, uma vez que tal amor não é uma devoção cega de cão, mas uma disposição que requer compreensão prática. Dada a opinião de Aristóteles de que até os homens virtuosos são imperfeitos, uma mulher que amasse seu marido pela sua bondade precisaria da capacidade de ver quando as suas decisões e ações são virtuosas e dignas de estima, e quando são erradas e indignas de estima. Mas é difícil ver como alguém com um entendimento defeituoso poderia fazer discriminações tão boas. Se Aristóteles tivesse percebido o quanto do juízo de que as mulheres eram inferiores aos homens em compreensão, resultava do tratamento que a sociedade oferecia a elas, algo que podia ser superado com experiência e educação, ele poderia ter forjado uma concepção mais plausível de amizade conjugal como uma amizade de iguais. Sem a falsa premissa da inerente inferioridade das mulheres, o seu reconhecimento implícito de que a sabedoria e a virtude práticas podem ser específicas de um domínio tê-lo-ia levado a ver que as mulheres desenvolvem sabedoria prática e virtude em diferentes domínios dos homens, porque as suas circunstâncias e experiências são diferentes, e essa diferença não implica em inferioridade. Assim, por causa das oportunidades limitadas das mulheres na Atenas antiga (e até na maioria das sociedades contemporâneas), uma mulher virtuosa em tais sociedades tem muito mais probabilidade de ter as virtudes necessárias para a educação e administração doméstica do que um homem, e um homem virtuoso tem muito mais probabilidade de ter as virtudes necessárias para assuntos públicos do que uma mulher. Essas diferenças, no entanto, não se traduzem em virtudes desiguais em geral. As virtudes e habilidades práticas de um marido virtuoso e de uma esposa virtuosa são complementares, assim como as virtudes e habilidades de amigos não relacionados podem ser complementares. Assim, como os outros amigos, marido e mulher também podem se corrigir e moldar-se mutuamente, tornando-se assim melhores (1172a11-13). Ele pode aprender com ela, por exemplo, o que as crianças precisam e a melhor forma de se envolver com elas, e ela pode aprender com ele que tipos de assuntos são importantes para o bem comum e como pensar sobre os mesmos de uma maneira baseada em princípios.

V. Conclusão

O relato de Aristóteles sobre a amizade, e especialmente sobre a amizade de caráter virtuoso, é ao mesmo tempo rico e plausível, respondendo não apenas à investigação teórica, mas também à experiência real. Em todos os três tipos de amizade, os dois amigos reconhecem os benefícios que derivam de sua amizade e se importam um com o outro pelo bem do outro. Em sua discussão sobre amizade de caráter, Aristóteles fala sobre casos reais em que pessoas imperfeitamente virtuosas chegam à mesa com uma variedade de necessidades, desejos e características. É muito fácil perder esse realismo em meio à teoria idealista de Aristóteles, entretanto ele permanece pertinente em toda a EN, especialmente na discussão de Aristóteles sobre amizade de caráter. Aristóteles reconhece que um caráter virtuoso não é suficiente para uma amizade de caráter; os amigos também precisam de interesses compartilhados ou complementares e traços de personalidade. Isso explica por que nem todas as pessoas virtuosas podem ser amigas, mesmo quando o tempo, a distância e a idade não são obstáculos para uma amizade.

A visão de Aristóteles de que o desenvolvimento da virtude requer experiência e de que uma pessoa virtuosa pode ser mais ou menos justa, corajosa ou comedida, e sua observação de que um covarde na guerra pode ser generoso com dinheiro, sugere que ele reconhece que as pessoas podem ser virtuosas em diferentes graus e em diferentes domínios. Portanto, se deixarmos de lado a sua teoria equivocada sobre a natureza feminina, isso nos permite conceber uma amizade entre os cônjuges os quais, por opção ou restrição social, assumem papéis diferentes, mas complementares, e desenvolvem a virtude em diferentes domínios. No mundo real os amigos de caráter mostram a sua confiabilidade e lealdade uns para com os outros perdoando as falhas mútuas perdoáveis ​​, e ajudando uns aos outros a se tornarem melhores. Eles também mostram a sua confiança um no outro por estarem abertos à correção. Assim, eles exibem virtude em resposta às suas próprias imperfeições, virtudes cuja necessidade é gerada por essas mesmas imperfeições. O seu relacionamento é baseado tanto naquilo que já é admirável em cada um deles, quanto no potencial que eles reconhecem um no outro. Ao se deliciar com o melhor um do outro, ambos também podem ver e realizar mais plenamente o que há de melhor em si mesmos.xxxvii

Notas

i Todas as citações não especificadas de outra forma são do livro EN (Ética a Nicômaco), para as quais seguimos o texto de Bywater e, a menos que indicado de outra forma, as traduções de Russell Jones. Nós nos concentramos no EN, embora a Ética Eudemiana, a Retórica e a Magna Moralia (que provavelmente não é de Aristóteles) contenham discussões importantes sobre a amizade, e, ocasionalmente, apontamos para essas discussões e para o material relacionado na Política.

ii Para uma categorização e discussão úteis das várias posições que os intérpretes tomaram, ver Alexander Nehamas, ‘Filia Aristotélica, Amizade Moderna?’, Oxford Studies in Ancient Philosophy 39 (2010): pp. 213-247 (esp. pp. 219- 228). Doravante, ‘Philia’

iii Este é um problema para qualquer visão que faz com que uma propriedade compartilhada por muitos seja a base do amor. Um exemplo notável é a opinião de David Velleman de que o amor é uma apreciação da capacidade de amar de uma pessoa, de seu núcleo de preocupação reflexiva [‘Love as a Moral Emotion’, Ethics 109 (1999): 338-374]. Embora existam diferenças substanciais entre as opiniões de Velleman e Aristóteles, especialmente sobre quem é digno do amor, sua resposta para a pergunta por que não amamos a todos é estruturalmente semelhante à resposta que propomos para Aristóteles.

iv Aristóteles não é inteiramente uniforme no modo como ele expressa esse conjunto de ideias. Em EN IV.6.1126b16-28, Aristóteles está discutindo o atributo amabilidade, do caráter, mas não tem um nome para ele e, portanto, comenta que é mais como uma amizade (philia). Mas ele é rápido em apontar que não é amizade: amizade é amabilidade junto com afeição (stergein). Em VIII.2, ele acrescenta que, para existir amizade, não basta que haja afeição. Afinal de contas, podemos gostar de qualquer coisa, incluindo até objetos inanimados, mas não gostamos deles em seu próprio benefício – não temos boa vontade (eunoia) em relação a eles. Além disso, Aristóteles insiste, aqui, que, para que a amizade surja, o sentimento de boa vontade deve ser mútuo e reconhecido como tal. Pode-se facilmente sair do VIII.2 com a impressão de que boa vontade e afeição (philēsis) são a mesma coisa, consistindo simplesmente em desejar bem a alguém. Em IX.5, no entanto, Aristóteles distingue a boa vontade da afetividade, com base no fato de que a última, mas não a primeira, envolve esforço, desejo e intimidade (uma concepção ativa de amizade refletida na Retórica 1380b35-1381a1). É plausível ver cada um deles como um quadro mais completo da concepção de amizade de Aristóteles, conforme exigido por cada contexto. Assim, a mais completa expressão do relato básico de amizade de Aristóteles encontra-se no IX. 5 e, nessa perspectiva, que adotamos aqui, a boa vontade mutuamente reconhecida precisa amadurecer em uma relação ativa antes de contar plenamente como amizade.

v Aqui e em todo lugar ignoramos o foco exclusivamente masculino de Aristóteles em sua discussão dos três tipos de amizade.

vi O exemplo de Aristóteles desse tipo de mudança nos fundamentos de uma amizade é um caso de amor entre um homem mais velho e um mais novo que se desenvolve em uma amizade de caráter que perdura mesmo depois que a paixão se desvanece (1157a8-12).

vii Parte do que se segue nesta seção baseia-se em ‘Aristotle on the Forms of Friendship’ (Aristóteles sobre as formas de amizade), The Review of Metaphysics 30 (1977): 619-648, de John M. Cooper. Doravante, ‘Forms of Friendship’. Esta é uma leitura essencial sobre como as formas de amizade se relacionam umas com as outras. A mesma discussão aparece em ‘Aristotle on Friendship’ (Aristóteles sobre a amizade), de Cooper, no [livro] editado por Amelie Oksenberg Rorty (Essays on Aristotle’s Ethics; Ensaios sobre a Ética de Aristóteles) [Berkeley: University of California Press, 1980], pp. 301-340, uma versão integrada e condensada de ‘Aristotle on the Forms of Friendship’ (Aristóteles sobre as formas de amizade) e ‘Friendship and the Good in Aristotle’ (A amizade e o bem em Aristóteles), Philosophical Review 86 (1977): 290-315.

viii Talvez essas diferenças acentuadas expliquem por que Aristóteles às vezes reluta em chamar de ‘amigos’ alguns que, no que parece ser sua versão oficial, devem contar como amigos. Por exemplo, ele observa em 1157a14-16 que as amizades baseadas na utilidade se dissolvem quando os amigos não são mais úteis um para o outro, mostrando que eles não estavam atrás de cada um dos amigos, mas dos amigos lucrativos! (Compare 1167a10-21.) Todavia esse breve comentário parece menos destinado a revisar a descrição oficial do que enfatizar que algumas amizades mal merecem o nome, especialmente em comparação com a amizade do melhor tipo. De qualquer forma, isso não o impede de continuar, na linha seguinte, falando sobre como pessoas ruins podem ser amigas umas das outras com base na utilidade ou no prazer.

ix É por isso que Nehamas rejeita a alegação de que essas ‘filias’ contam como ‘amizades’, recusando-se a traduzir philia como amizade. Veja ‘Philia’ e ‘On Friendship’ (Nova York: Basic Books, 2016), pp. 18-24.

x A ‘natureza’ aqui deve ser entendida num sentido quase avaliativo. A virtude moral e intelectual (sophia) juntas constituem a condição que mais centralmente caracteriza um excelente espécime de ser humano, e assim realiza mais completamente a natureza humana. Naturalmente, a virtude não é ‘natural’ em outro sentido, na medida em que se desenvolve apenas através de longa habituação (virtude moral) ou aprendizagem (sophia). Contraponha o bom caráter neste ponto com boa visão ou a capacidade de digerir azeitonas, ambos os quais vêm naturalmente. (Veja a discussão de Aristóteles em II.1.)

xi Veja ‘Philia’, 224-227 e On Friendship, pp. 18-22, de Nehamas, para esta linha de pensamento.

xii O capítulo que segue imediatamente esta passagem, VIII.3, é sobre esta interpretação para ser entendida como focada nos fundamentos do amor e da boa vontade, ao invés do objeto de amor e boa vontade.

xiii Friendship, Altruism and Morality (Amizade, altruísmo e moralidade) de Lawrence Blum, (London: Routledge & Kegan Paul, 1980), pp. 81, 82.

xiv The Fragility of Goodness (A fragilidade da bondade) de Nussbaum, (Cambridge: Cambridge University Press, 1986), p. 359

xv ‘Aristotle on Friendship and the Shared Life’ (Aristóteles sobre a amizade e a vida compartilhada), Philosophy and Phenomenological Research 47 (1987), de Nancy Sherman: 589-613. Doravante, ‘Aristotle on Friendship and the Shared Life’.

xvi Um empréstimo da futura tradução de Adam Beresford (Penguin). Talvez, no entanto, em vez de uma escavação, o comentário seja uma alusão ao Philebus 21d-e de Platão, onde se argumenta que a sabedoria sem qualquer prazer é algo que nenhum ser humano desejaria (como Broadie sugere Ética a Nicômaco, de Aristóteles, tradução, introdução e comentário de Sarah Broadie e Christopher Rowe). – (Oxford: Oxford University Press, 2002), p. 412).

xvii ‘Formas de Amizade’, 640; e ‘Aristóteles sobre a amizade’, 315; de Cooper.

xviii Para um relato sutilmente diferente, no qual o benefício instrumental para si mesmo serve como uma condição para a bondade final da amizade com o outro, ver ‘Aristotle on the Utility and Choiceworthiness of Friends,’ de Matthew D. Walker, Archiv für Geschichte der Philosophie 96 (2014): 151-182.

xix ‘Aristotle on the Shared Life’, de Sherman, 597-599.

xx Ibid., 598-99.

xxi ‘Virtues We Can Share: Friendship and Aristotelian Ethical Theory’, de Talbott Brewer, Ethics 115 (2005): 721-758, p. 738. Doravante, ‘Virtues We Can Share.’

xxii Ibid. Mais realisticamente, isso os torna em grande parte insubstituíveis. Ver ‘Friends as Ends in Themselves’, de Neera K. Badhwar, Philosophy and Phenomenological Research 48 (1987): 1-23. Contraponha a ênfase de Aristóteles em traços virtuosos e na história compartilhada com Robert Nozick o qual afirma que, apesar de começarmos a amar outra pessoa por causa de suas propriedades, continuamos a amá-la por causa de nossa história compartilhada (Anarchy, State, and Utopia [New York: Basic Books] 1974], 168). Em ‘Love’s Bond’ [(The Examined Life, 1989): 68-86], Nozick traz as propriedades de volta ao cenário.

xxiii Em seu ensaio ‘Of Friendship’, Michel de Montaigne diz: “Se você me pressionar para dizer por que eu o amava, não posso dizer mais do que era porque ele era ele, e eu era eu”. Ver Montaigne,The Complete Works. Essays, traduzido por Donald M. Frame (Stanford: Stanford University Press, 1958), p. 141. Nehamas tem uma excelente discussão sobre essa ideia em On Friendship, 119-21.

xxiv ‘A ética de Aristóteles’, de Kraut, The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Edição de Verão de 2014), Edward N. Zalta (org.), URL = http://plato.stanford.edu/archives/sum2014/entries/aristotle-ethics/

xxv ​​ ‘Aristotle on Making Other Selves’, de Elijah Millgram, Canadian Journal of Philosophy 17 (1987): 361-376.

xxvi Ibid., p. 372

xxvii ‘Forms of Friendship,’ 626-629, and ‘Aristotle on Friendship Formas de Amizade’, 305-307, de Cooper.

xxviii Veja também ‘Virtudes We Can Share’ de Brewer, e ‘Aristotle on the Shared Life’, de Sherman.

xxix Esta concepção do melhor tipo de amizade, contra o pano de fundo da concepção de virtude e bem-estar de Aristóteles (eudaimonia), evita o tipo de preocupações que outras concepções de amizade, virtude e bem-estar suscitam, a preocupação de que as demandas da amizade podem e muitas vezes entram em conflito com as demandas mais amplas da moralidade. Ver ‘Friendship’, de C.S. Lewis,  em The Four Loves (Orlando: Harcourt, Brace, Johanovich, 1960): 87-127, às 115 e segs; e ‘On Friendship’, de Nehamas, cap. 6. Dean Cocking e Jeanette Kennett (‘Friendship and Moral Danger’, The Journal of Philosophy 97 (2000): 278-296, p. 279) vão ainda mais longe quando argumentam que parte do valor da amizade é que ‘pode levar nos desencaminhar’.

xxx Cooper tem uma boa discussão sobre isso em ‘Friendship and the Good in Aristotle’, The Philosophical Review 86 (1977): 290-315, e ‘Aristotle on Friendship,’ (1980), 318-23. Cooper contrasta essa passagem com EN 1170b1-14, na qual Aristóteles argumenta que as pessoas virtuosas precisam de amigos virtuosos porque a consciência de seu caráter e ações é agradável.

xxxi Para argumentos nesse sentido, ver ‘Aristotle’s Fallible Phronimos’, de Shane Drefcinski, Ancient Philosophy 16 (1996): 139–54; ‘Como as pessoas boas fazem coisas ruins: Aristóteles sobre os erros dos virtuosos’, de Howard Curzer,  Oxford Studies in Ancient Philosophy 28 (2005): 233–56. Nós advertimos, no entanto, que ambos os autores tendem a reivindicar mais evidências do que está claramente lá. Para dois exemplos, considere 1134a17-23 e 1132a2-4. Curzer (p. 239-240) explicitamente mantém, e Drefcinski (p. 145) sugere, que 1134a17-23 descreve um homem virtuoso que estranhamente rouba ou comete adultério. Mas tudo o que Aristóteles diz aqui é que alguém que não é injusto pode fazer tais atos injustos. Os justos e os injustos não esgotam os tipos de caráter; além destes, há o contido e o acrático, ou seja, aqueles que estão em conflito, mas autocontrolados (o contido) e aqueles que estão em conflito e são fracos (o acrático). Aristóteles pode especialmente ter em mente o acrático nesta passagem. Da mesma forma, Drefcinski (p. 143-144) e Curzer (p. 239-240) interpretam a afirmação de Aristóteles em 1132a2-4 de que a lei se aplica imparcialmente a pessoas ‘decentes’ e ‘básicas’ quando fazem algo errado ao dizer que o virtuoso, às vezes, pode fazer algo errado. Aristóteles em algum momento usa esses termos para se referir a pessoas boas e más, respectivamente. Mas, como Adam Beresford sugeriu para nós, aqui eles se referem mais provavelmente às classes sociais, às pessoas bem educadas e às pessoas comuns, respectivamente. Se assim for, então o argumento de Aristóteles é que a lei não respeita a classe. Portanto, essas passagens não fornecem exemplos claros de ações erradas de pessoas boas.

xxxii O ponto é largamente repetido em 1126a31-b4, embora logo após (em b7-9) ele pareça sustentar que pequenos desvios são censuráveis ​​em um grau pequeno, ao invés de não serem. Talvez ele queira dizer que a censura é proporcional ao afastamento da média, embora algum (vago) grau limiar de afastamento deva ocorrer antes que qualquer culpa possa ser atribuída.

xxxiii Outras possíveis interpretações são discutidas e rejeitadas em ‘Reasoning about Wrong Reasons, No Reasons, and Reasons of Virtue’, de Neera K. Badhwar, em A Filosofia e Psicologia do Caráter e Felicidade, ed. por Nancy Snow e Franco V. Trivigno (Nova York: Routledge, 2014), pp. 35-53. [No entanto, Badhwar agora percebe que, como Drefcinski e Curzer, ela não conseguiu interpretações alternativas de 1134a17-23 e 1132a2-4 (ver nota de rodapé 31 acima), bem como de uma passagem em Política.]

xxxiv A possibilidade de sabedoria prática específica de domínio e a unidade de virtude dentro de domínios é defendida em ‘The Limited Unity of Virtue’, de Neera K. Badhwar, Nous, 30 (1996): 306-329 e, com revisões, em Well- being: Happiness in a Worthwhile Life (Nova York: Oxford University Press, 2014), cap. 6.

xxxv Isto está implícito em 1157a22-24, onde Aristóteles diz que os amigos de caráter [admirável] confiam uns nos outros para serem justos e tudo o mais que bons amigos deveriam ser.

xxxvi Essa visão é desconfortável com a importância que Aristóteles atribui à educação moral inicial, uma tarefa que é em grande parte confiada às mulheres. Se as mulheres não realizassem bem essa tarefa, os homens não cresceriam para serem capazes de promover o bem da cidade. Veja a excelente discussão de Nancy Sherman sobre este assunto em The Fabric of Character (O tecido do caráter) (Oxford: Clarendon Press, 1989), pp. 153-55.

xxxvii Agradecemos a Karen Nielson e a um grupo de colegas da Western University pela discussão de uma apresentação inicial de algumas das ideias deste ensaio; a Adam Beresford por conversas úteis sobre vários detalhes importantes; e a Christopher Grau e Aaron Smuts pelos comentários no texto completo.

***

Notas adicionais. Na ocasião que este ensaio foi publicado, Neera K. Badhwar era professora da Universidade de Oklahoma, e Russel E. Jones da Universidade de Harvard. Neera K. Badhwar é autora do livro Well-Being: Happiness in a Worthwhile Life , publicado em 2014

Fonte: O presente ensaio foi publicado em: https://www.researchgate.net/publication/311985506_Aristotle_on_the_Love_of_Friends

Tradução: Jo Pires-O’Brien (UK); Revisão: Débora Finamore (Brasil).

Jo Pires-O’Brien

The Spanish-American philosopher George Santayana (1863-1952) described Frank Russell, (1865-1931), the 2nd Earl Russell and the older brother of Bertrand Russell (1872-1970), as the most extraordinary of his friends. They met in 1886, in circumstances that can be described as extraordinary, too. Santayana was 22 years old and in his last year as an undergraduate at Harvard University. The young Earl Russell had been sent to Boston by his paternal grandmother to seek a tutor. His guide in Boston, Herbert Lyman, a friend of Santayana, took Russell to meet Santayana at his student accommodation in Hollis Hall. In his memoirs, Santayana reveals that he never knew for sure why Lyman thought that Russell might have liked to meet him. Could it be because his room in Hollis Hall had a view of a picturesque brick path? Was it because Lyman thought that Santayana was a comparatively articulate bloke and known to write poetry? Or could it be because Lyman was his friend? Perhaps Lyman took all of these things into account. Here is Santayana’s description of Russell, taken from his 1947 book The Middle Span:

He was a tall young man of twenty, still lithe though large of bone, with abundant tawny hair, clear little steel-blue eyes, and a florid complexion. He moved deliberately, gracefully, stealthily, like a tiger well-fed and with a broad margin of leisure for choosing his prey. There was precision in his indolence; and mild as he seemed, he suggested a latent capacity to leap, a latent astonishing celerity and strength, that could crush at one blow. Yet his speech was simple and suave, perfectly decided and strangely frank. He had some thoughts, he said, of becoming a clergyman. He seemed observant, meditative, as if comparing whatever he saw with something in his mind’s eye. As he looked out of the window at the muddy paths and shabby grass, the elms standing scattered at equal intervals, the ugly factory-like buildings, and the loud-voiced youths passing by, dressed like shop assistants, I could well conceive his thoughts, and I said apologetically that after Oxford all this must seem to him rather mean; and he replied curtly: “Yes it does.” I explained our manner of life, our social distinctions, our choice of studies, our sports, our food, our town amusements. He listened politely, obviously rather entertained and not displeased to find that, according to my description, all I described might be dismissed for ever without further thought. Then he sat good-naturedly on the floor and began to look at my books – a rather meagre collection in some open shelves. He spied Swinburne’s Poems, and took out the volume. Did I like Swinburne? Yes, perhaps he was rather verbose; but did I know the choruses in Atlanta in Calydon? No? Then he would read me one.  And he read them all, rather liturgically, with a perfect precision and clearness, intoning them almost, in a sort of rhythmic chant, and letting the strong meaning shine through the steady processional march of the words. It seemed the more inspired and oracular for not being brought out by human change of tome or of emphasis. I had not heard poetry read in this way before. I had not known that the English language could become, like stained-glass, an object and a delight in itself.

He stayed a long time, until, the daylight having decidedly failed, he remembered that he was to dine with the James’. My own dinner was long since cold. He was off the next day, he said; but I must look him up whenever I come to London. I saw no more of him at that time; but I received through the post a thin little book bound in white vellum, The Bookbills of Narcissus, by Richard Le Gallienne, inscribed “from R.” And William James not long afterwards took occasion to interrupt himself, as his manner was, as if suddenly thought had struck him, and to say to me: “I hear you have seen this young grandson of Lord John Russell. He talked about you; you seem to have made an impression.” The impression I had made was that I was capable of receiving impressions. With young Russell, who completely ignored society and convention, this was the royal road to friendship. (pp. 51-52)

The opportunity for a second meeting between Santayana and Russell came in March 1887, when Santayana, who had been studying in Germany since the fall of 1886, travelled to England. Russell was not in London but in Reading, looking after the Royal, his 100 tons steam yacht, that was moored at the Kennet Canal. It was there that Santayana met him. When Santayana arrived, Russell was discussing boating matters with the mechanic, and only after he finished he greeted Santayana properly. On that occasion Santayana noticed that Russell had a knack for the latest mechanical novelties such as the small dynamo used for the illumination of the yacht.  When Santayana asked Russel what electricity was, Russell pulled him to stand close to the dynamo’s large magnet, and when Santayana felt the pull, he said to him: ‘That is what electricity is.’ The two young friends spent a couple of nights at the local inn, and when the yacht was ready, Russell and Santayana sailed it down the Thames towards London, while Santayana did his best to learn what was required of him as a second mate.

Later that same year Santayana met Russell again in Marseilles, for another trip on the Royal. To Santayana, that second trip sealed their friendship, for it enabled the two young men to get to know each other better. Here is Santayana’s recollection of it.

Two men in their early twenties eating and sleeping for three weeks in the same cabin, seeing the same sights and living through the same incidents without one moment of boredom, without one touch of misunderstanding or displeasure, could not but become very good friends. But we were predestined to become friends before, in fact ever since our acquaintance; and I don’t think this trip through Burgundy made such a difference. Friendship in any case didn’t mean for Russell what it meant to me. There was no dramatic curiosity in it for him, no love of speculation and unanimity. He cared nothing about what other people might be in themselves or in their feelings and careers; nor did he have the least need of embosoming himself. He was frank enough and didn’t take the pains to disguise facts in his own life, when the interest of the moment led him to refer to them.

In spite of their different social circumstances, the friendship that Santayana had with Russell lasted for many years. Santayana explained that on the fact that neither of them were a nuisance to the other. As he wrote in his memoirs, “he respected my freedom unconditionally and gladly, and I respected his.”

References

Santayana, G. The Middle Span: The background of my life. London, Constable, 1947.

Joaquina Pires-O’Brien

Anna-Teresa Tymieniecka (1923- 2014), the woman who gained posthumous fame for having had a friendship with Pope John Paul II (Karol Wojtyla) for more than thirty years, was a Polish American phenomenologist philosopher. In this essay I try  to show that although it was Tymieniecka’s  friendship with Pope John Paul II that has caught the interest of the greater media, she was an accomplished individual in her own right.

At the time of Tymieniecka’s death in 2014, age 91, she was still active in the World Phenomenology Institute (WPI), the institution that she founded in 1968, in Hanover, New Hampshire.  She served WPI for many years, as its president and as the editor of its official publications: Analecta Husserliana and of Phenomenological Inquiry.  A search of her books in Amazon shows her name as editor until close to her death. Tymieniecka’s biography provide many clues to her motivation as well as to her personality.

According with Marek Jerzy Minakowski, a Polish genealogist who has an extensive blog in the internet (https://minakowski.pl/), the biography of Anna-Teresa Tymieniecka (1923- 2014) that appears in Wikipedia is not completely accurate. The version in Wikipedia states that “she was born into an aristocratic Polish-French family,” but although she comes from an aristocratic family, it was a Polish-Jewish one, for her connections to French aristocrats are too remote to count. Minakowski states that was the great-granddaughter of Abraham Loewenstein, from the Jewish commune in Kazimierz, and a descendant of Szmul Niederkowir, the richest Polish Jew of early ‘9th century. The version in Wikipedia also states that Anna-Teresa’s mother, Maria-Ludwika de Lanval Tymieniecka, introduced her to philosophy of Henri Bergson (1859-1941). To that, Minakowski makes two points. The first is that Tymieniecka’s mother probably had a proper Jewish name at birth, inferring that she was the daughter of Jews who converted to Catholicism. The second is that she would know the French philosopher Henri Bergson, because he too was a descendant of Szmul Niederkowir.[1]

Tymieniecka was born on an estate in Masovia, Poland, in a well to do family. As a young woman, she was drawn to the Lvov–Warsaw Philosophical School, the most important movement in the history of Polish philosophy, established by Kazimierz Twardowski (1866-1938) at the end of the 19th century in the Ukrainian city of Lviv, capital of the province of Galicia, which at that time was part of the Austro-Hungarian Empire[2]. She was especially interested in Twardowski’s most important book Zur Lehre vom Inhalt und Gegenstand der Vorstellungen (On the content and object of presentations). As far as her formal higher education is concerned, Tymieniecka studied simultaneously and the Kraków Academy of Fine Arts. At the Jagiellonian University she began systematic studies of philosophy under the guidance of Roman Ingarden (1893-1970), who himself had studied with Kazimierz Twardowski and Edmund Husserl (1859-1938).  At the end of her undergraduate studies, she moved to Switzerland to continue studies under another important Polish philosopher and logician, Józef Maria Bocheński (1902-1995), at the University of Fribourg. Her doctoral study, dedicated to explorations of the fundamentals of phenomenology in Nicolai Hartmann and Roman Ingarden’s philosophies, was later published as Essence and Existence (1957). From Fribourg, Tymieniecka moved to Paris, where she enrolled herself at the Sorbonne, to study French philosophy and literature, obtaining her second Ph.D. from this institution in 1951. In the years 1952-1953 she did postdoctoral researches in the field of social and political sciences at the College d’Europe in Brugge, Belgium. According to her main biographer, from that moment on, Tymieniecka started her own way in philosophy, by developing a special phenomenological attitude that was neither entirely Husserlian, nor entirely Ingardenian.

Tymieniecka imigrated to the United States in 1954. Upon her arrival she held two short term academic appointments, the first to teach philosophy at the University of California at Berkeley, and the second to teach mathematics at Oregon State University, in Corvallis. According to her biography, after these she did postdoctoral research at Yale, and after that, in 1957, she became an assistant professor of philosophy at Pennsylvania State University, lecturing also at Bryn Mawr College, also in Pennsylvania. From 1961 to 1966 she taught at the Institute for Independent Study at Radcliffe College, a women’s liberal arts college in Cambridge, Massachusetts. Her last academic post was as a  professor of Philosophy at St. John’s University, New York city, from 1972-1973.

In 1956 Tymieniecka married Hendrik S. Houthakker (1924-2008), Professor of Economy at Stanford University (1954-1960) and Harvard University (from 1960) and member of President Nixon’s Council of Economic Advisers from 1969 to 1971. The couple had three children: Isabella Houthakker, Louis Houthakker and Jan-Nicolas Houthakker. Although Tymieniecka’s biography does not provide any details of her married life, one could make an educated guess that she must have endured the usual hardships of trying to find a job somewhere near that of her husband’s. However, Tymieniecka had the courage and the determination to carve her own working niche, founding the WPI and locating it somewhere accessible to her family home, first in Lebanon (NH) and then in Pomfret (VT). This is the kind of compromising that spouses do for the sake of their relationship and their family. We cant’t know for sure that the married of Tymieniecka and Houthakker was a happy one, but the evidence points to that.

The WPI that Tymieniecka founded soon made its mark through its various activities and publications. Many of its meetings were conducted in rooms rented at Harvard University. Tymieniecka herself was well respected in the academic circles.  About the time Tymieniecka was founding the WPI, she became acquainted with two books by the Cardinal Karol Wojtyla, after which she developed an interest in meeting Wojtyla in person. These books were Miłość i Odpowiedzialność  (Love and Responsibility; 1960) and Osoba i czyn (Person and act or The acting person; 1967). Love and Responsibility is about the complexity of sexual feeling and response, and an extension of the Thomist view that all sexuality must be generative. The Acting Person stresses that man must ceaselessly unravel his mysteries and strive for a new and more mature expression of his nature, which includes his struggle to live with dignity.

The opportunity for Tymieniecka to meet Wojtyla appeared in 1973, when she was invited by the Seventh Centennial International Thomas Aquinas Congress to represent American scholarship on its Scientific Committee. She decided to invite the Cardinal Wojtyla to present a paper in the phenomenology section, of which she was the moderator, and to travel to Poland to deliver the invitation in person. Their first meeting must have been as momentous as one would expect of a meeting of two kindred spirits with sharing interests. After their first meeting, Tymieniecka and Cardinal Wojtyla became friends.

A friendship between a priest and a married woman is bound to raise eyebrows, especially so with the priest happens to be a Cardinal or a Pope. There is no evidence of impropriety in the friendship between Tymieniecka and Cardinal Wojtyla. On the contrary, their friendship served to show that it is possible for a spiritual leader to cultivate the life of the spirit and be engaged with the world. Tymieniecka’s husband, Houthakker, who was intelligent and cosmopolitan did not object to hi wife’s friendship with Cardinal Wojtyla. In fact, he too became a friend of the Cardinal according to biographers Carl Bernstein and Marco Politi in their book His Holiness (1997). We learn from their book that Cardinal Wojtyla and his private secretary, Father Stanislaw Dziwisz, visited Tymieniecka and her husband in their Vermont country home in the summer of 1976. According to them, the cardinal celebrated mass each morning at a picnic table in the backyard; he borrowed her husband’s shorts to wear beneath his swimming trunks when they swam in a neighbour’s pond; and they took long walks (usually in the company of Dziwisz) to discuss philosophy and their work. After Wojtyla was elected to the papacy in October 1978, he insisted in carrying on meeting with Tymieniecka. Their friendship lasted until the death of Wojtyla in 2005.

There are two important things about Tymieniecka that her biographers agree. The first is that she was intellectually equal to her kindred spirited friend, the late Pope John Paul II. The second is that their friendship was platonic. We can go further to say that their friendship was of the ‘complete’ (teleion) type described by Aristotle, which is only possible between those who are sensible and virtuous.

Tymieniecka’s  exceptional intelect can be infered both from her academic qualifications and her books. As shown in her selected bibliography, below, Tymieniecka is the author of seven books of great significance. She was the editor of Analecta Husserliana and of Phenomenological Inquiry, the two main publications of The World Phenomenology Institute. In addition to that, she was also a co-Editor of the Springer (formerly Kluwer Academic Publishers) book series: Islamic Philosophy and Occidental Phenomenology in Dialogue, with Gholamreza Aavani and Nader El-Bizri. Tymieniecka’s editorial signature can be deduced from the various titles she helped to put into print, which included the aforementioned books by Karol Wojtyla, Pope John Paul II.

Tymieniecka sold her archive to the National Library of Poland in 2008, but the letters she reveived from Pope John Paul II were handed to them only after her death, on June 7, 2014, in Pomfret, Vermont, United States.

When in The World Phenomenology Institute held its 39th Annual Cambridge Conference, in June 4-6, 2015, one of its Session was entitled ‘Homage to Anna-Teresa Tymieniecka. Its plenary session was conducted by Daniela Verducci[3], WPI CoPresident (European/Asian Division), who spoke on The Subject/Object Relationship According to the Phenomenology of Life of Anna Teresa Tymieniecka.

Conclusion

As a long admirer of Karol Wojtyla, the late Pope John Paul II, when I learned about his long lasting friendship with the philosopher Anna-Teresa Tymieniecka, I simply dismissed any innuendos of wrong doing. My recent interest in the philosophy of  friendship drove me do this brief inquire into the life of his friend Tymieniecka, and not to my surprise, I discovered another exceptional person. The friendship between Tymieniecka and Wojtyla was of the complete type that Aristotle described. This type of friendship only happens between very exceptional people. Complete friendships are the diamonds of humanity: tough, beautiful and extremely rare. They are morsels of meaning that fill the void of existence.

Selected bibliography of Tymieniecka

Tymieniecka, A.-T. Essence et existence: Étude à propos de la philosophie de Roman Ingarden et Nicolai Hartmann (Paris: Aubier, Editions Montaigne, 1957).

—. For Roman Ingarden; nine essays in phenomenology (’s-Gravenhage: M.Nijhoff, 1959), viii + 179 p.

—. Phenomenology and science in contemporary European thought. With a foreword by I. M. Bochenski ([New York]: Farrar, Straus and Cudahy, 1962), xxii + 198 p.

—. Leibniz’ cosmological synthesis (Assen: Van Gorcum, 1964), 207 p.

—. Why is there something rather than nothing? Prolegomena to the phenomenology of cosmic creation (Assen: Van Gorcum & Comp., 1966), 168 p.

—. Eros et Logos (Paris: Beatrice-Nauwelaerts, 1972), 127 p.

—. Logos and Life (Dordrecht; Boston: Kluwer Academic, 1987–2000, 4 vols.).

Bibliography

Bernstein, Carl and Politi, Marco. His Holiness. 1997.

Minakowski, Marek Jerzy. The next friend of the Pope was a descendant of Jewish bankers. https://minakowski.pl/najblizsza-przyjaciolka-papieza-byla-potomkini-zydowskich-bankierow/ . Consulted on 09.04.2019.

Stourton, Ed. The secret letters of Pope John Paul II. BBC News, 15 February 2016. Source: https://www.bbc.co.uk/news/magazine-35552997

Verducci, Daniela. The ‘Sacred River’ Toward God: Anna-Teresa Tymieniecka’s Phenomenology of Religious Experience. Open Theology 4:630-639, 2018.

Wikipedia. Anna-Teresa Tymieniecka (February 28, 1923 – June 7, 2014). https://en.wikipedia.org/wiki/Anna-Teresa_Tymieniecka

                                                                                                                             

Joaquina (Jo)  Pires-O’Brien is the editor of PortVitoria, a magazine of the Iberian culture, being published since July 2010.

Key words: Anna-Teresa Tymieniecka; Pope John Paul II; Cardinal Karol Wojtyla; Analecta Husserliana; The World Phenomenology Institute; Aristotle; Henri Bergson; complete friendship; Daniela Verducci;

Notes

[1] Bergson was a Jew who regarded Catholicism with sympathy, as shown in his book Les deux sources de la morale et la religion (1932), which was very influential to a number of Catholic thinkers. During World War II, when France was occupied by the Germans, Vichy regime issued a decree ordering the Jews to register themselves, but in a separate decree it exempted those Jews who had achieved distinction in the areas of science, literature, art, etc. Although the 80 year old Bergson fitted the latter category he opted to register in solidarity to other Jews. He died soon after that, on January 3, 1941.

[2] Its other members included Tadeusz Kotarbiński, Stanisław Leśniewski, Jan Łukasiewicz and Alfred Tarski.

[3] Verducci is the author of La fenomenologia della vita di Anna-Teresa Tymieniecka. Prova di sistema (Italian) Paperback, 1 Jan 2012. Verducci’s more recent paper about Tymieniecka appeared in 2018 in the journal Open Theology.

Fernando R. Genovés

Pocas amistades han sido tan ejemplares y memorables como la que experimentaron Michel de Montaigne y Étienne de la Boétie. Sus vidas se cruzan en unos tiempos henchidos de sentimientos caballerescos y cortesanos, de poesías arrebatadas, de afectos inflamados por un aliento renacentista que venía de antiguo, de los clásicos, allí de donde proceden el vigor y la gloria que no se consumen jamás. Cuando se conocen, ambos son jóvenes, cultos y sensibles. Pero, aquéllos son también tiempos de cólera, desbordados. Es aquel un siglo de acero que hace propicio y necesario el esfuerzo por estrechar los lazos de la amistad, ese licor dulce que sólo a algunos humanos les está reservado probar, ese sentimiento privativo que, sin hacer perder la libertad y la individualidad, los hermana con las solas potencias del espíritu y sin abandonar este mundo.

Recuerda precisamente Ortega y Gasset la caracterización platónica del amor como «una manía “divina”»[1], por la que el enamorado se siente estimulado para llamar «divina» a la amada. Pues bien, Montaigne, a lo largo de su existencia, disfruta no poco de los placeres de Venus; honra el nombre y la memoria del padre (aunque ignora a la madre); trata a la esposa con gran respeto y consideración, y no desatiende a la hija; cumple cívicamente con sus vecinos y cumplimenta a sus superiores en las instituciones, a quienes sirve hasta que los deberes para sí se ponen por delante de los oficios públicos; ama a los clásicos; pero, por encima de todo, reverencia la intimidad, el cuidado de sí y el afecto de lo próximo. El carácter de La Boétie no es menos gallardo, aunque sí más recto. ¿Es esto divino?

Para Montaigne y La Boétie, amigos del alma, la amistad es «nombre sagrado [y] cosa santa»[2]. Con todo, dejando las divinidades propiamente dichas para el Olimpo y la santidad, para lo trascendental, ambos se tratan mutuamente, simplemente, de «hermanos»[3]. Cierto es que Montaigne en «Sobre la amistad», arrebatado por el impulso retórico, seducido por lo enfático e inducido, en fin, al canto poético —que, en rigor, no es lo suyo, sí de La Boétie; donde Montaigne verdaderamente brilla es en la escritura ensayística—, cree, o al menos eso escribe, que la unión con La Boétie ha respondido a algún mandato del cielo[4]. Podríamos incluso convenir en que, en algunos momentos, la amistad que les une posee tonalidades místicas (Gerard Defaux). Comoquiera que sea, para estos dos humanistas practicantes, el sentimiento de la amistad arranca de sentimientos profundamente humanos, demasiado humanos, si queremos decirlo así, por tratarse en su caso de una amistad perfecta que no se extingue con la muerte de uno de ellos, pero humanos al cabo.

Tenemos noticia de primera mano de esta relación gracias principalmente al testimonio de Montaigne. Siendo tres años más joven que el amigo, le sobrevive varias décadas, si es que tras la temprana muerte de Étienne el resto de la existencia mutilada de Michel puede llamarse vida: «desde el día que le perdí […] no hago sino errar y languidecer.»[5] La vida del superviviente ya no puede ser la misma tras el naufragio. Para muchos estudiosos de la vida y la obra de Montaigne, su retiro en la torre del castillo se debió en gran medida a la pérdida irreparable de La Boétie. Allí, en su «sede», se concentra en la composición de una de las obras de pensamiento más hermosas y provechosas que se han escrito jamás, los Ensayos. Todo apunta, en efecto, a que al menos el Libro Primero lo redacta bajo el influjo poderoso del recuerdo del amigo.

En los motivos iniciales de los Ensayos, y en sus primeros compases, la huella poderosa de La Boétie se advierte con claridad. La prueba principal está en la presencia misma del ensayo dedicado expresamente a la amistad en homenaje a La Boétie. Este texto puede leerse en la presente edición, junto a un documento muy citado, aunque poco conocido por el lector en español, imprescindible para evaluar el recorrido, el alcance y los últimos instantes de esta amistad ejemplar. Me refiero a la carta que escribe Michel a su padre relatando con detalle y emoción la agonía de Étienne[6]. Al final de la misiva, describe el arrebato repentino de La Boétie, ya presto para el largo adiós, que le lleva, a modo de último deseo (o quizá última orden), a dirigirse a Montaigne en estos términos: «Mon frere! Mon frere! Me refusez vous doncques une place? («¡Hermano! ¡Hermano! ¿me negáis, pues, un lugar?»).

La importancia simbólica de este episodio es decisiva para entender el origen de los Ensayos. En éstos, cierto es, se da a conocer a La Boétie y sus textos, asegurándole así la inmortalidad literaria. Empero, no debe exagerarse la deuda. Montaigne es hombre gentil que cumple sus promesas y honra a los seres queridos, pero ni su existencia ni sus escritos son prestados, dependientes o derivados de instancias ajenas a él mismo. Sin reparar en este rasgo sustancial de Montaigne, tanto la obra que produce como la singular experiencia de la amistad en la que se complace, quedarían distorsionadas.

Hay además otra ocurrencia no menos relevante en la metanoia de Montaigne, en la mitad del camino de su vida, y que ayuda a entender mejor el movimiento que le conduce a la torre y la aplicación, casi en exclusiva, a la que se emplea en la confección de los Ensayos. Me refiero al abandono de la política —o por decirlo con mayor precisión: al cese de los cargos y las cargas de carácter público a los que Montaigne ha estado atado durante tantos, demasiados, años, para el gusto y la inclinación de nuestro gentilhombre— que antecede al retiro filosófico. El 28 de febrero de 1571, a los treinta y ocho años, Montaigne decide dar por satisfecha las deudas para con sus mayores y cumplida toda dedicación institucional para con sus conciudadanos, en calidad de gobernador municipal, diplomático y embajador, quedando así en franquía para poder recluirse en el «seno de las doctas musas» y comenzar a ocuparse de sí mismo como tarea primordial. El legado del padre ha quedado atrás y el amigo le ha dejado solo, si bien los tiene a ambos en el recuerdo y siempre presentes. Pero a la política…, simplemente, la pierde de vista. En la torre, sobre su cabeza, no hay otro cielo que la selección de sagradas escrituras y de sentencias clásicas que hace grabar en las vigas que sostienen el techo de su bóveda terrestre para recordar así su vocación y destino.

¿Son, pues, los Ensayos un tributo a La Boétie o al propio Montaigne? Las dos cosas a la vez y cada uno en su sitio. He aquí, a mi parecer, la clave de la amistad de los dos gentileshombres. El indicio concluyente lo hallamos en la célebre declaración de Montaigne contenida en el ensayo «De la amistad», donde define la relación con La Boétie en estos términos: «Par ce que c’estoit luy, par ce que c’estoit moy» («Porque era él y porque era yo»)[7].

A propósito de otra cogitación, he sostenido que en las notas al pie de página acaso se encuentren los momentos más inspirados de la obra ensayística de Ortega y Gasset[8]. Atendiendo al argumento que nos ocupa, me atrevo a afirmar ahora que sin los añadidos (addenda), es decir, sin las glosas con las que, como savia nueva, Montaigne actualiza y reaviva incesantemente su libro, y que recogen puntualmente los pensamientos y sentimientos del autor, y los ponen al día, sin tales apostillas, digo, los Ensayos no serían lo que son. La máxima atención acerca de nuestro asunto descansa, en consecuencia, sobre un añadido. La célebre proclamación de amistad perfecta que acabamos de leer no aparece en la primera edición de los Ensayos. En ésta, correspondiente a 1580, se dice: «Si se me obligara a decir por qué yo quería a La Boétie, reconozco que no podría contestar.» Es en la edición póstuma, conocida como «de Burdeos» (1595), donde Montaigne hace constar al margen las anotaciones que, por fin, dan respuesta al quid de la cuestión de la amistad perfecta: «par ce que c’estoit luy» y «par ce que c’estoit moy». Porque era él, porque era yo.

Hay práctica unanimidad en la siguiente valoración: «De la amistad» representa uno de los ensayos más elaborados de Montaigne, más pensados y mejor compuestos[9]. Allí se contiene una profesión de fe en la amistad casi exaltada. De la amistad entre Montaigne y La Boétie se dice en el texto que constituye la unión de dos cuerpos en una misma alma. En ella, ambas voluntades se pierden en una sola. Pues bien, en perfecta coherencia, la máxima declarativa que venga a continuación debería decir: Porque yo era él y él era yo. Sin embargo, Montaigne no escribe tal cosa. Es más: el autor de los Ensayos, esa sublime andadura filosófica alrededor del yo, no podía, en rigor, escribir tal cosa. Anota al margen del texto, con tinta clara y mano firme, para que así conste definitivamente en el registro de los tiempos y la memoria de los hombres, que si amaba a La Boétie ello se debía a que uno era uno y el otro era otro. No por esto lo estima menos. Ocurre más bien que Montaigne, muchos años después de la pérdida del amigo, ha logrado finalmente encontrarse a sí mismo. Lo que entonces, en los primeros esbozos del libro, era emoción temprana, ahora, en su última edición, es sentimiento maduro.

Ya lo he dicho antes: en materia de amor, allí donde el discurso de la ética poco tiene que ordenar, nada, en verdad, debe esperarse de coherencia o lógica. Pero también ha quedado dicho algo más: a diferencia del amor, la amistad, vinculada todavía a la ética, constituye un lazo que, a diferencia de aquél, continúa preservando la libertad de los participantes como condición de su fuerza. En un momento del ensayo consagrado a nuestro tema, Montaigne diferencia las amistades de la verdadera amistad, de la amistad única y perfecta. En alguna de aquéllas (por ejemplo, la que caracteriza a las relaciones paterno-filiales), «poco encontramos en ella de libertad voluntaria, cuando es ésta, por el contrario, la verdadera animadora del afecto y la amistad.»[10] ¿Cómo podrían, por otra parte, Montaigne y La Boétie, paladines de la causa de la libertad, hacer un elogio de cualquier clase de servidumbre voluntaria —aunque fuese a cuenta de la amistad que tanto estimaban — cuando ambos la detestan, y el segundo, expresamente, denuncia todo pretexto o justificación de la dominación, sea a propósito de ésta u «otras drogas semejantes [como, por ejemplo] eran para los pueblos antiguos los encantos de la servidumbre, el precio de su libertad y los instrumentos de la tiranía.»[11]?

¿Qué más declara La Boétie sobre la ética de la amistad? Que los amigos han de ser personas íntegras y fieles: «No puede haber amistad donde está la crueldad, donde está la deslealtad, donde está la injusticia. Entre malvados, cuando se reúnen, existe un complot, no una compañía: no conversan, sino que recelan unos de otros; no son amigos, son cómplices.»[12] Asentada la cuestión ética, entremos en materia política.

La política entra en juego

 Montaigne y La Boétie se conocen en un marco público. Ambos ocupan puestos de representación política en el Parlamento de Burdeos y tienen noticia uno del otro antes del encuentro personal. Ocupan cargos de similar rango en una institución no muy populosa; lo extraño es que tal feliz coincidencia no se hubiese producido antes. Mas no importa ahora sopesar la peripecia, cuyo alcance, como otros capítulos de esta historia de política y amistad, dejamos para lugares más convenientes y a personas verdaderamente eruditas. Lo relevante en este momento es reparar en el preludio de la melodía: a Montaigne le llega el manuscrito de La Boétie sobre la servidumbre voluntaria con bastante antelación al momento de las presentaciones. Montaigne admira el discurso, pero no es precisamente el contenido del panfleto lo que le enciende el deseo de conocer al autor; de hecho, del asunto que trata apenas habla. Más tarde, cuando llega la oportunidad, postergada siete años tras la muerte de La Boétie, de publicar el conjunto de la obra de éste, el folleto político no encuentra sitio, ese «lugar» que le reclamaba el amigo antes de expirar. Todavía más tarde, Montaigne excusa incluirlo en los Ensayos, pretextando distintos motivos que son narrados en los textos que aquí ofrecemos, tanto en los propios testimonios de Montaigne como en el ensayo de François Combes dedicado a analizar, entre otros temas de relevancia histórica y literaria, la influencia política en la relación de ambos librepensadores.

Todo sugiere, empero, que Montaigne prefiere divulgar al amigo poeta que al amigo político. Esta elección resulta más reveladora y significativa que todas las manifestaciones explícitas o confesiones vertidas sobre el caso. No pretendo decir que Montaigne mienta acerca de estos graves temas; pero sí digo que estamos ante un gentilhombre dueño de sus palabras y sus silencios, regulador de los plazos y tiempos de la obra que acomete. No engaña a nadie, pues. Pero no está tan loco como para decir toda la verdad. Es más, a lo largo de todos sus textos no deja de repetir que él es persona asaz olvidadiza, que su memoria es precaria y que, en fin, el registro exacto de las ocurrencias habidas, realmente, se le escapa…

Hombre prudente y discreto, tiene una preocupación principal en aquel siglo «si gasté», tan desbordado por el fanatismo y la intemperancia, un siglo perdido de hombres extraviados: salvarse. He aquí un obstáculo difícil de salvar, si no es al precio de sumarse a las filas de una de las facciones en lucha: la Liga belicosa de los católicos o las agrupaciones sediciosas de los hugonotes; Monarquía o República. Eran aquéllos unos tiempos difíciles en los que para salvarse tenía uno que echarse a perder frente al grupo, armado por la fe y la espada. O bien, estar muy despierto y buscar otras salidas; si no gloriosas, sí, al menos, decorosas.

La Boétie escribe El discurso sobre la servidumbre voluntaria en plena juventud, excitado por la pasión política; no es todavía un funcionario, un diplomático, un personaje con vocación política, pero lleva camino de serlo. Montaigne, en cambio, se ocupa poco de la política: ejerce cargos públicos sólo porque son derivados de su condición noble y materialmente heredados del padre, por respeto a la tradición familiar y al rango adquirido. Durante bastantes años, siempre demasiados para su temperamento y carácter, cumple el oficio de político entre legajos, legaciones, misiones diplomáticas y querellas partidistas, mas no la vocación del hombre libre que es y quiere seguir siendo; acaso ambas categorías las aprecia incompatibles entre sí. Montaigne se reserva para el retiro.

[1

Si La Boétie se inclina por el estoicismo, Montaigne, sin dar la espalda a la enseñanza de la Stoa, tiende desinhibidamente hacia el hedonismo. Étienne posee un talante rigorista y enérgico que le hace proclive al seductor mensaje protestante, y aun puritano. Michel, por el contrario, independientemente de su grado de devoción religiosa, que no discutiré tampoco aquí, se encuentra simplemente cómodo en el catolicismo, sin sentir la menor necesidad de cambiar de fe —¡la fe de sus padres! —, sobre todo, si trata de imponerse a sangre y fuego. Todavía podríamos encontrar más diferencias entre ellos, no casualmente son a la vez tan parecidos y tan diferentes[1], tanto que, como sabemos, uno es uno y el otro, otro… Considero preferible fijarnos en sus semejanzas y en sus encuentros en vez de empeñarse en la línea quebradiza de los posibles desencuentros. Montaigne no miente cuando afirma que ambos participan de almas gemelas, que un supremo entendimiento y afinidad armonizaba sus sentimientos. Pero ello no significa que compartan las mismas ideas. Acaso aquéllos, los sentimientos puros, quedan a salvo cuando se libran de la acometida de éstas, las creencias políticas (y religiosas).

Tal vez habría de preguntarse con Jean Lacouture si las disensiones políticas —presumible o realmente— existentes entre Montaigne y La Boétie llegaron a minar o a perturbar en algún momento su amistad perfecta. El mismo Lacouture sugiere una respuesta a esta cruda cuestión: la propia evolución de los acontecimientos en Francia y el destino unieron sus fuerzas para no dar ocasión a que tal situación dramática tuviese lugar. La guerra civil no alcanza un alto grado de virulencia hasta 1562 y La Boétie muere en el verano de 1563. Montaigne, quien fallece en 1592, debe afrontar, durante largos años, en soledad, sin la presencia y la influencia del amigo, los momentos más duros de la querella religiosa y civil de los franceses. No sabemos qué opción, qué partido, hubiese adoptado La Boétie en el momento en que la confrontación llegara a su punto más álgido y se infiltrara venenosamente en el corazón del país, alterando el corazón de los franceses y amenazando con helarlo: ¿y tú de parte de quién estás? ¿Estás conmigo o contra mí?

Francamente, no me imagino a Étienne y a Michel discutiendo de política, o de religión, hasta ese punto; de hecho, no concibo que discutiesen de ningún modo sobre estos pormenores. Tenían demasiado que proteger y salvar para exponerlo a la intemperancia de los acontecimientos y a las pasiones que despiertan política y religión. Con todo, no estaban en «partidos» contrarios, ni hay atisbo de traición, deslealtad, doblez, medias verdades o falsedades en sus actos. En tal caso, sencillamente, no estaríamos hablando de amistad, de la amistad única y perfecta. En lo fundamental, por lo que respecta a las ideas, La Boétie y Montaigne están de acuerdo. Les une el humanismo, el clasicismo, el catolicismo vigente en la época, el respeto por las tradiciones y las costumbres asentadas, el gusto por la tolerancia, la estimación del propio país, la desaprobación del tumulto y la sedición, y, por encima de todo, el amor a la libertad y el desprecio hacia toda forma de tiranía. Pero, también algo más, lo sustancial: la amistad.

El resto es algo a mantener en silencio o guardar para uno mismo. Para Montaigne y para La Boétie, así como para muchos otros hombres sabios, mesurados y discretos, los hombres estamos empujados por las circunstancias, y aun por la especie, a convertirnos en animales políticos, en ciudadanos que viven en la ciudad y comparten un ámbito común junto a sus semejantes. Mas también, los hombres estamos inducidos a la soledad y a la meditación, al refugio espiritual que representa la torre de un castillo o que se contiene en un poema gentil. Con todo, lo relevante, lo imponentemente singular, lo primero en nuestras vidas es sentirnos personas libres que aman y no desoyen la llamada de la amistad.


Fragmento de la Introducción del libro: Fernando R. Genovés (ed.) Política y amistad en Montaigne y La Boétie, Institución Alfons El Magnánim, Valencia, 2006.

Notas

1] José Ortega y Gasset, op. cit., p. 37.

[2] Étienne de La Boétie, Discurso de la servidumbre voluntaria o el Contra uno; en adelante, La Boétie, Discurso (Véase Bibliografía), p. 52.

[3] «El nombre de hermano es, en verdad, hermoso y lleno de dilección, y a él se debe nuestra alianza [de Montaigne y La Boétie].» (Montaigne, «Sobre la amistad», véase la presente edición, p. 106.

[4] Véase la presente edición, p. 111.

[5] Véase la presente edición, pp. 118 y 119.

[6] Véase capítulo 2.1 de los Apéndices.

[7] Véase la presente edición, p. 111.

[8] Véase Fernando Rodríguez Genovés, La escritura elegante. Narrar y pensar a cuento de la filosofía, Alfons El Magnànim, Col.lecció Pensament i Societat, Valencia, 2004.

[9] Jean Lacouture, por ejemplo, en su hermoso libro Montaigne a caballo (ver Bibliografía), afirma sin reservas que nos hallamos ante uno «de los más logrados, tratado evidentemente como una clave de la obra, si no su razón de ser.» (p. 102).

[10] Véase la presente edición, p. 106.

[11] La Boétie, Discurso, pp. 35 y 36.

[12] La Boétie, Discurso, p. 52

[13] Cf. Phillippe Desan, « ‘ Ahaner pour partir’ ou les dernières paroles de La Boétie selon Montaigne», en Étienne de La Boétie, Sage révolutionnaire et poète périgourdin (véase Bibliografía), p. 401.

See what else is available at PortVitoria.

Cover https://portvitoria.com/index.html

Home page https://portvitoria.com/

Past issues https://portvitoria.com/past-issues/

Blogs https://portvitoria.com/blogs/

Konstantin Kolenda

George Santayana was not only a philosopher. He was also a poet. It is not surprising, therefore, that his philosophy reflects a poet’s mind. He thought little of academic polemics. To him philosophy was an imaginative effort of the mind to grasp and to express in fitting language the prominent features of experience. He believed that the interest in reflection is essentially moral; its goal is to gain wisdom and to discover the good life. In aiming at these objectives Santayana wrote in the tradition of the great sages of mankind, and it is as such that he may count for ‘posterity.’

Born in Madrid in 1863 of Spanish parents, Santayana came to Boston at the age of nine, to be educated with the three children of his mother by previous marriage. Although reared in American schools, Santayana did not develop a sense of belonging to his environment. But, as he himself said, his detachment from America was balanced by an equal detachment from every other place. Although he occasionally went to Spain to visit his father, he found the society and the public life of that country most unattractive. His later residences in England and in Italy were more satisfying, but the feeling of being a stranger, wherever he was, never left Santayana. And this, as he confessed, was rather con­ sonant with his philosophy and may have helped to form it.1

Nevertheless, Santayana is an American philosopher. He obtained his philosophical training at Harvard under William James and Josiah Royce, and taught there for over 20 years. He wrote in English in a beautifully polished style, and regarded it as the only possible medium for him. On the eve of the First World War he received an inheritance from his mother’s estate. This prompted him to give up his professorship at Harvard and to move to Europe. He lived and wrote for a number of years in England, and later established his headquarters in Rome. During the Second World War, his health failing, he gave himself over to the care of nuns in an Italian convent and died there in September of 1952, working and writing well into his 90th year.

Although a stranger everywhere, Santayana did not disavow his intellectual dependence on the American environment. To this his own statement testifies: “My intellectual relations and labors still unite me closely to America; and it is as an American writer that I must count, if I am counted at all.”2 He had no direct interest in and no acquaintance with the broader strata of American life, yet his writings reveal a sympathetic observer, often exhibiting a deep understanding of American character. The following excerpt from the ‘Character and Opinion in the United States’, written in England in 1921, may serve as a good example.

In his affection the American is seldom passionate, often deep, and always kindly. If it were given me to look into the depths of a man’s heart, and I did not find goodwill at the bottom, I should say without any hesitation, You are not an American. But as the American is an individualist his goodwill is not officious. His instinct is to think well of everybody, and to wish everybody well, but in a spirit of rough comradeship, expecting every man to stand on his own legs and to be helpful in his tum. When he has given his neighbor a chance he thinks he has done enough for him; but he feels it is an absolute duty to do that. It will take some hammering to drive a coddling socialism into America.3

Later on in the same book we find another shrewd remark about the American man.

He is an idealist working on matter. Understanding as he does the material potentialities of things, he is successful in invention, conservative in reform, and quick in emergencies. All his life he jumps into the train after it has started and jumps out before it has stopped; and he never once gets left behind, or breaks a leg.4

To the very last Santayana believed in the native goodness of the American. When in his latest work, Dominations and Powers, he proposed a new type of world government by experts he suggested that the leadership should be placed in the hands of Americans, since they are basically good and the most generous of all peoples. He also claimed that his American friends were “more numerous, more loyal, more sympathetic, and with two or three exceptions, more beloved,” than his friends of other nationalities. The people with whom he felt most at ease were Americans, and he found American tastes and manners more natural to him than any others.5

Santayana’s social and political detachment has its counterpart in his refusal to identify himself with any philosophical school or movement. He stood aloof both from the contemporary world of action and from the world of thought. He found both very uncongenial to his taste. This reaction is explained in one of his posthumous writings.

The liberal, empirical, psychological philosophy into which I was plunged was miserably artificial, like a modern town laid out in squares. There was nothing subterranean acknowledged in it, no ultimate catastrophe, no jungle, no desert, and no laughter of the Gods. Mankind lived lost in the fog of self-consciousness, persuaded that it was creating itself and the whole universe. They had forgotten their religion; and their philosophy, when they had one, was a glorification of their vanity, and of their furious impulse to make money, to make machines, to make war. What would come of it, except perhaps to make them all alike? In my solitude I watched their mechanical arts not without admiration: they were clever children making their own toys, and as busy at it as birds building their nests or worms burrowing their holes. Verily they have their reward, if they enjoy the process. But may they not be rather multiplying their troubles, and missing the natural pleasures and dignity of man? These pleasures and dignity lie in seeing and thinking, in living with an understanding of the place and destiny of life.6

Santayana’s philosophy cannot be fitted into a specific major camp. He found most philosophical systems “anthropocentric and inspired by the conceited notion that man, or human reason, or the human distinction between good and evil is the centre and pivot of the universe:”7  He rejected idealism, pragmatism, and positivism – the three major camps of philosophical thinking in his lifetime – because he found them permeated with false pretensions and advocating false hopes. He believed them to be not only cognitively inadequate, but also morally wrong. In rejecting the  special schools of philosophy, each of which, according to Santayana “squints and overlooks half the facts and half the difficulties in its eagerness to find in some detail the key to the whole,”8 he claimed to seek refuge in certain basic and persistent deliverances of common sense, which, he believed, when well expressed, could become a better witness to the kind of world in which man finds himself. Santayana was fond of calling himself a naturalist, a realist, and a materialist. These labels certainly have an application to his philosophy, but not without some important qualifications.

I

One of the dominant themes in Santayana’s thinking is skepticism. He was puzzled by the confidence with which men tended to identify their picture or their idea of the world with the world itself. Of course the primary and indelible conviction of common sense tells man that he is immersed in something which he calls a world, full of things and events. But whence comes the claim that the world which confronts man is characterized properly by the qualities and distinctions which he happens to experience in it?

In his hasty judgment about the real nature of the world man tends to forget that the world as he knows it is a world seen only from his perspective. He forgets that his special animal equipment is the intervening variable which stands between him and what surrounds him. This variable is bound to distort the world by presenting it to him in his own image. In spite of our progress in science we are still plagued with anthropocentric delusions. We project our representation of the world on the world itself, we read our concern about our limited destiny into the operation of the cosmos which, for all we know, is indifferent to our fate.

Especially deluded is the claim of the idealists, culminating in the Hegelian philosophy, that the universe is directed by all-embracing rational laws, thus organizing and interlocking all there is into one interdependent system, progressively unfolding its sublime destiny. How can such a wild claim be justified? Does it have any basis in fact? None whatever, is Santayana’s answer. We are not equipped with an instrument which could give us such knowledge. What we call reason is only a way in which the human animal adapts itself to its immediate environment. This adaptation does not exceed the narrow limits of natural needs and drives. If we are honest with ourselves we should confess to a vague but persistent awareness of a dark background which we cannot penetrate. The world is not what we find in it, and it is presumptuous to claim that we know its core. The ultimate reality is unknowable in the same sense that a drum is inaudible; you can hear the sound but not the drum. An idealist who claims to know what the ultimate reality is, walks through one world while mentally beholding another. But what he is beholding isn’t there. There is something, but what it is the human being, as a biased creature, cannot know.

Our special human bias is involved in all knowledge. Take ordinary perception. The fundamental fact about perception is that it is a recognition of something absent. Seeing an object or a person is not merely seeing its immediate surface. When I look at a certain shape of a certain color and call it an apple, the meaning of the word ‘apple’ is not encompassed by the qualities which I perceive when I look at it. What I do not see are other qualities and properties which at the moment I do not perceive but nevertheless ascribe to the apple – such properties as weight, taste, solidity, etc. But how do I know that they are really present in that which I see? By animal faith, answers Santayana. Even ordinary everyday perception is full of memory and expectation; it is a way of seeing what isn’t there. But from this we can derive an important lesson: our contact with the world is primarily imaginative. The world becomes significant because we supplement in imagination what we see by what we do not see. What we see or are otherwise aware of are the immediate reports of the senses. What we add are the associated or expected features which are – and this is important – of some possible interest o us. This is the way our experience becomes meaningful, and a mere welter of sensations becomes for us a world.

Merely to stare at a datum is to discover nothing but the datum itself. If I look at a red patch on the table and repress all memory and expectation I do not perceive anything at all. But if I let my animal psyche pursue its accustomed course, the sight of the red round patch will cause an impulse to connect it with further possible experiences which I have undergone in the past and which are recorded in memory. Memory itself Santayana defines as “faith in the absent.”9 The forward tension of this memory will cause an expectation that similar experiences of formerly experienced properties await me in the future. This expectation is a strain of life in me, an animal faith, stretching my attention over what is not given but is of possible interest. Consequently, Santayana concludes that knowledge is only a more or less successful adjustment of an animal in its special way to its special environment. “Belief in the existence of anything, including myself, is radically incapable of proof, and resting, like all belief, on some irrational persuasion or prompting of life.”10

These promptings of life may be more or less dependable and disciplined, but they will always make use of imagination. The work of imagination consists in ballasting our sense data with that which they are taken to signify. Thus, if seeing what is not there is madness, even ordinary perception is mad. But it may be normal madness, if imagination employed is successful enough, if it establishes a harmony be­ tween the flux in the organism and in its environment. The order of perceptions, checked against those of other people, may even establish a certain pattern of sanity, and this normalcy in the use of imagination will become a common sense picture of the world. But we should use it without being misled by it. An agreement of perceptions on a working basis is merely a projection of the world on the human scale, and we can understand it in terms of our purposes only. We have no knowledge of what the world is in itself, for all our knowledge is calling names on provocation. An animal equipped with a different visual apparatus will not see the forms of things as they present themselves to a human eye. We know, for example, that for most animals colors do not exist. Similarly, the distribution of heavenly bodies on a starry sky will look quite differently from another planet, not to speak of more remote corners of the interstellar space. The game of picking out the Big Dipper would be played differently on Mars or on Venus, or more likely, it would not be played at all. Our relative perspective, our means of perception, and our special interests color every assertion we may make about he world. There is a real world, but it is not the one we construct out of our sense data and by our animal imagination. The recognition of this truth should prevent us from lapsing into unwarranted dogmatic claims about the ultimate reality. All knowledge is recognition of something absent; it is, in Santayana’s words, a salutation, not an embrace.

One of the persistent and urgent deliverances of common sense is the belief in being rooted in that primeval, mysterious, vital, prolific and irrational basis of all existence, which we call nature. This basic element out of which human life arises, which it confronts in itself and outside of itself, against which it has to fight and in which it finds its protection, Santayana calls matter or substance. “The realm of matter is the matrix and the source of everything; it is nature, the sphere of genesis, the universal mother.”11 Santayana even suggested that this source of all being may be called God, if we prefer to call it so.12 Nevertheless, this source is nothing supernatural or otherworldly. It is definitely this world in all its infinite manifestations. “If in clinging to the immaterial we denied the material, it would not be merely ashes and dust that we should be despising, but all natural existence in its abysmal past and in its indefinite fertility; and it would be, not some philosopher’s sorry notion that we should be denying, but the reality of our animal being, the fact that we are creatures  of time, rooted in a moving universe in which our days are numbered.”13

Santayana’s main objection to so many traditional philosophies is that they were trying to deny this natural rootedness of man in the realm of matter, and even denied its very existence. Human organism is but one form in which the infinitely plastic matter expresses itself. That it does so, is nothing to be explained or investigated, for all existence is irrational in its very core. Why the world exists, or why it is the kind of world it is and produces the beings it does, are unanswerable questions. Recognition of material facts as such is the beginning of wisdom. But there can be no explanation of any existence, Santayana tells us. “We may enjoy it, we may enact it, but we cannot conceive it; not because our intellect by accident is inadequate, but because existence, which substance makes continuous, is intrinsically a surd, a flux, a contradiction.”14

Since our contacts with matter are various, our ideas of it will be various. Furthermore, they will be always in some ways inadequate and provisional, for matter is essentially dynamic and not pictorial. It is interesting to note in this connection that the view of modern physics that what we call matter can be best described in a formula defining certain dynamic relationships, is in line with Santayana’s opinion. We should not forget, he tells us, that the common sense conventional ideas as well as more elaborate representations of science present us with a store of beliefs useful for our purposes, but that these beliefs by no means reflect the nature of the world itself. Without some beliefs we simply cannot do, and a rational attitude will consist in recognizing them as such “can’t helps.” But we should be mistaken a1id probably sooner or later disillusioned if we should take them for the whole of truth and not relative to our organisms and interests only. A human organism finds itself equipped with definite impulses and needs, and all its perceptions and organization revolves around serving them well. This is the function of intelligence. Our comprehension of the existing world is useful in the same way that a sewer system is; it’s good to have in order to make our lives more comfortable, but it would be a mistake to treat it as the pivot of the universe. A wise man will believe in a common sense world but will not take it too seriously. To find happiness and satisfaction he will turn somewhere else.

Let us follow Santayana’s invitation to visit further realms of being. But before we do so, it may be helpful to recapitulate briefly the basis from which he proceeds. He wants to arm us with skepticism radical enough to rebuke all dogmatic philosophers and scientists who claim to show us the world as it really is. He appeals to the irresistible conviction of common sense that there exists an external order of things in which we are rooted and which we call nature, substance or matter. He reminds us that, although in dealing with our natural environment we organize our perceptions and cognitions to form beliefs about the world, those beliefs are not more than a basic orthodoxy of mankind. They are useful because they enable us to take care of our natural needs, but they do not bring us in contact with ultimate reality. Since a certain harmony and health of the organism is prerequisite to attaining a possible human good, we should value our biased knowledge for what harmony it can bring about.

II

The natural adjustment and harmony characteristic of lower forms of life are attained without consciousness and intelligence. But a human organism, by virtue of its complex vital organs is capable of attaining satisfactions not open to the lower levels. It is in consciousness, in the mental life of the human animal, that we discover a new realm. This realm Santayana calls the realm of essence.

Santayana’s concept of essence has been very troublesome to his readers. It has been widely discussed and criticized, often producing much heat and little conviction. Nevertheless, this concept has had many versions in recent philosophy, which indicates that it may be one of the more significant ideas of our time. It has been given different names – ‘phenomenon’ by Husserl, ‘eternal object’ by Whitehead – but on the whole it is used to define the same unique aspect of experience. Let us examine Santayana’s version of this concept. For him it is one of the most important philosophical insights, even though he himself once suggested a possibility that his doctrine of essence may be “merely a monk’s dream.”15

We have already noted that any existence is for Santayana an object of faith. Knowledge of things is knowledge of something not directly given but postulated by animal faith. The existence of the apple which we considered a while ago is a belief mediated by a symbol of which we are directly aware: a red round patch. Suppose we refrain from positing the existence of any further qualities  that this red patch usually signalizes. This we can do by suspending our referential attitude, which, Santayana told us, is the pressure of the animal psyche in us, storing up certain memories and stretching certain expectations into the future. In suspending this belief and arresting our present experience, what are we aware of? Nothing but the round red patch. Now extend this suspension of belief to all objects signalized by sense data, and confine yourselves to that which is immediately given. In looking around the room suppress all the memories and expectations connected with what you see, that is, exclude everything you do not see, such as the other side of the walls, the insides of solid objects, the histories of the faces you are looking at. This is not easy to do because our awareness of present experiences is so automatically permeated by those brought in from the past or possible future  that we hardly ever or never pay attention to what is really given to us immediately. But if you succeeded in removing the ballast of all memory and expectation, what would remain? Essences, suggests Santayana.

Essence is appearance taken as appearance, with no referential object tied to it. Essences are nothing but surfaces as surfaces. Whenever we add that hey are surfaces of something, we are already transcending what we actually are aware of. When you suspend all belief in objects behind appearance you discover a new infinite realm of essences. This realm is inexhaustible, claims Santayana, and it is because of our particular animal constitution that we come in contact only with some of them. Moreover, only a limited portion of possible essences finds existential embodiment. Here Santayana reaffirms the protean, arbitrary power of matter to dete1mine on its own which essences to embody. For all we know there may be other universes where quite different essences may be given existence in objects. And there may be essences in our immediate surrounding which never have been intuited. One might say that the impressionistic school in painting, the modern non-representational art, and atonal music are examples of a search for new essences. Perhaps James Joyce’s and Gertrude Stein’s linguistic exercises were attempts to capture directly intimate surfaces of experience which are not conveyed in conventional language. When the Camel or Chesterfield advertisers describe the absolutely unique flavors of their products, they show that the interest in essences is indeed a common feature of daily experience. Gourmets and wine connoisseurs, not to speak of opium and marijuana smokers, are all in their ways believers in Santayana’s doctrine of essence.

It is important to stress the absolute abundance of essences. They are not limited to the sense data. The surface aspect of any experience is an essence, and this includes all complex relations. Although pink elephants and green rats, as we say, do not exist, their essences can be distinguished. Even such characters as mathematical and scientific formulas have their essences, although they can be intuited only by those who understand them. But of course, the most abundant field of essences is art. It is there that the awareness of essences is intensified and brought to a sharp focus.

In saying this, we have put our hands on the central lever of Santayana’s philosophy. He found the characteristic capacity of the human animal in its ability to enjoy essences as separated from their embodiment in existence. The existence and the real nature of thing is to us a closed book. We should reconcile ourselves to our limited grasp of the nature of the material flux in which we are embedded as natural beings, since this flux at bottom is arbitrary and irrational. This being our true situation, how shall we face it? Control matter as much as you can, says Santayana, adjust your physical wellbeing to the rest of nature, but don’t get too excited about the material aspect of existence. This is the main fault of unqualified materialists and positivists. A wise man will try to live in health and physical comfort, but he will lay up his treasures somewhere else.

III

By way of essences we can now enter what Santayana calls the realm of spirit. On the face of it, it seems extremely puzzling for a materialist to admit that there is such a realm. However, an examination of the nature of this realm may show what meaning Santayana assigns to the idea of spirit and how this idea fits into his system.

To understand what spirit means it is necessary to make a distinction between essence and intuition of essence. In any direct apprehension of essence, what we are aware of is different from the act of apprehending it. Now the acts of apprehending essences is the life of spirit. In a word, life of spirit is consciousness. It is the total inner difference between being awake and being asleep, alive or dead. Spirit is consciousness of experience as consciously enjoyed; it is attention, feeling, thought. The realm of spirit is the realm of all value. But we must guard ourselves from the delusion of regarding spirit as something independent and in some way exercising its own power and authority. It is explicitly a surface function of a natural organism which has reached a certain high level of complexity and organization. It has no independence of matter, but on the contrary, constitutes one of its dimensions, supervening on the natural basis. It is “a natural faculty in a natural soul,”16  for “spirit would have nothing to live with and nothing to live for, if it had begun and ended being a spirit.”17

Spirit for Santayana is the moral fruition of physical life. It is epiphenomenal, volatile and evanescent, crowning some natural impulse as it attains its fulfilment. It is an inner light which,  although  powerless,  renders  events  in experience mentally present. The function of spirit, which is essentially imaginative and poetical, can itself be best expressed through metaphor.  Santayana  calls it “the  witness of the  cosmic dance,”18  a “product of combustion,” a “leaping 8.ame,”19 which is “blown and extinguished by any wind: but no extinction here can prevent it from blazing up there, and its resurrection is as perpetual as its death.”20

At the same time, spirit is a “fountain and seat of judgment,”21 it is “an ideal possession of things materially absent.”22 This function, which we call ‘mind,’ liberates man from his blind immersion in material processes by observing, conceiving, enjoying, asserting, desiring, at the same time being capable of renouncing and outlasting any particular interest or commitment.23 This cumulative response to experience gives substance and richness to the life of spirit; it endows humanity with culture. But it has no other destiny than to be privately enjoyed. Spirit is ever on the wing, has nothing to do with death or another life; it may come at any moment and it totally vanishes as it lives. It is immaterial, neither a drain nor an influence, and merely a concomitant to natural life.24  On one occasion Santayana was quoted as saying that consciousness is “a sort of nodding towards or throwing kisses at reality or off into vacancy.”25  Out of the welter of intermittent and conflicting impressions the human psyche tries to construct as much order and beauty as it can, and hold them together in intuition and understanding. It craves to rescue its world from confusion “so that it may be better seen and understood.”26 This is the value of reflective and imaginative life of which man is capable: to form a single drama out of conflicting impressions and impulses. “The better we know the world the more inescapable will be our perception of its tragic and comic character, that is to say, of its vanity as an experience and of its richness as truth. We see that the only profit in experience is its profit for the spirit.”27

According to Santayana man is half-animal and half-poet. To experience happiness, to be aware of goodness he must use the latter function. Nature in its innumerable pre-human forms may achieve equilibrium, habitual forms of behavior, smooth adjustment of functions, but prior to attaining the light of consciousness it knows no goodness and no happiness. Actual happenings in themselves are blind; to be enjoyed they must be illumined by spirit. “Intuition though it always has a natural ground never can have a natural object, but only an ideal one. Nature has learned to know itself at this price, that its knowledge should be indirect and symbolic. It can describe itself only in words, and had to invent them in order to think.”28  But when the light of spirit is kindled in the natural man, the valves towards value are open. Healthy  and smooth discharge  of organic functions will reflect itself in a sense of welcome and joy. “All ideals are but projections of vital tendencies  in animal organisms,”29 and spirit is only a silent observation of these tendencies as they engage in constant play. The awareness of the passing scene through intuitions of essences will intermittently kindle delight, suffering, joy, pain and pleasure. The fullest and most innocent absorption in intuition of essences is found in the play of children. As he lives and gains experience, man will learn how to discriminate between  things which are good for their own sake and those which are mere instrumentalities. Furthermore, he will reject and condemn the intuitions which bring distraction to spirit. Such distraction is seen pure in pain. “As an intuition, if such it may be called, pain is empty, yet as a sensation it is intense, a nesting, imperative; so that it exemplifies the very essence of evil for the spirit to exist in vain, to care intensely in the dark, to be prodded  into madness  about  nothing.”30  But those essences which a man will find attractive, beautiful and good in themselves, are the crown and fruition of living.

Spirit, the most derivative aspect of natural life, by opening through intuition and imagination the avenues to consummatory experiences, constitutes the most valuable aspect. The world must be enjoyed for what it is and for what it offers to the life of spirit. Santayana’s message to every human being is therefore: be a poet in some way. A social and gregarious  animal like man will naturally  find much goodness in the  communal  aspect  of his existence. Our awareness of each other, mutual involvement and dependence, furnish a propitious medium for the activity of spirit. “Social life lifts the spirit to a more comprehensive intelligence; there is more constant transcendence of the self in imagination and a richer, more varied, more dramatic world to imagine and to overcome.”31  Our daily work, if enlightened, can be another source of spiritual freedom and enjoyment. To love one’s work is to attain this possible perfection. For, as Santayana  tells us, “Free labor and art is simply nature unravelling its potentialities, both in the world and in the mind, unravelling them together, in so far as they are harmonious in the two spheres.”32 Interest in art engages consciousness in the contemplation of possible beauty, for “art in general is a rehearsal of rational living, and recasts in idea a world which we have no present means of recasting in reality.”33 Any society in which people are compelled to do what they do not wish to do, or are forced to put up with what does not content them, is defeating and frustrating the life of spirit.

Spirit has other enemies besides human ignorance. Too often brute matter, the indifferent and arbitrary course of nature,  defeats spirit and denies it its possible happiness. Being powerless, spirit cannot  command  its terms to the world. The dangers of existence cannot be eliminated, but the struggle to survive is not without value to the life of spirit. Although mortal dangers are always with us, there is a way to deal with them: “in raising them into conscious suffering and love, spirit turns the ignominy of blind existence into nobleness, setting before us some object to suffer for and to pursue. In the very act of becoming painful, life has become worth living in its own eyes.”34  A wise man will not bash his head against the wall. To be disillusioned is a con­ sequence of living in a world whose ultimate core remains unencompassed and dark. Man always was and will be sur­ rounded  and  ambushed by the  impenetrable powers  of matter. But when he sees illusion as an illusion, it ceases to be illusory. It is possible for man to be disillusioned without becoming sour, disenchanted without being embittered. Toward whom shall we bear malice, and to whom shall we express our disappointment? Nature bears us no malice, and in lending its premises to the activity of spirit, cannot be accused of enmity to it. Only we must not expect too much. The last step in wisdom is to renounce the striving to possess and to change the world; the dominion of spirit is ideal, it is intellectual worship, pure  vision, and pure love, it is the capacity to identify oneself with “the truth and beauty that rise unbidden from the world into the realm of spirit.”35 “There can be no final victory in existence, except in the comment that spirit may make on it.”36

IV

Santayana’s  philosophy is too rich in content  to be discussed in a few pages. Moreover, it cannot be summarily criticized for being true or false, right or wrong. Santayana does not argue his views. He presents them as a possible way of looking at things, believing that his readers may find in their own experience much of what he sought to express in his writings. No doubt a sympathetic reader will find this to be the case.

There is a definite merit in Santayana’s urgent reminders that we are too eager to identify our representations of things with the nature of reality itself. Philosophers always have been tempted to identify what is most important for man with what is most real in the universe. In this respect Santayana’s skeptical voice is a refreshing wind. He asked us to give due recognition to our special animal bias in our theoretical and practical comprehension of the ways of the universe. In  agreement with  common sense convictions, he pointed to the primacy of the immediate immersion of man in the totality of things which overwhelms him in its vastness and impenetrability. He believed that this feeling of immersion in nature is basically sound and reflects the true nature of our situation. To a healthy human animal theorizing is always artificial, suspect and secondary, while instinct and feeling are congenial, primordial and primary. In the recognition of the natural basis of existence Santayana’s voice was not alone. The primacy of fact over idea is characteristic of our century. The naturalistic trend has a powerful ally in the contemporary reliance on experimental, pragmatic, positivistic methods and procedures in science. In the study of man himself, behavioristic psychology and descriptive social sciences are emphasizing the factual conditions of man’s existence. At the same time psychiatry and depth psychology probe the deeper strata of human nature. The quest for naturalistic ethics has been quite lively of late, and Santayana’s version is only one among many, although, of course, distinguished by its advocacy of esthetic illumination in natural enjoyments.

What is more uniquely Santayana’s contribution, is his contagious invitation to seek value in the realm of art and symbolic imagination. In inviting us to live in the presence of an ideal, to increase our awareness of the multiplicity of beautiful f01ms which a well-lived life can offer, to sharpen our intellectual comprehension of the world to the degree in which such comprehension is possible, Santayana was per­forming a great service. He asked of man not to be pre­ occupied  with the instrumentalities of living and  not so excited about the material aspect of existence. A wise man will concentrate his attention and give his allegiance to those things to which everything else is but a means. It is not the number of cars and electrical appliances that makes our lives better, but the amount of beauty and goodness which they may help inject into our experience.

The object of Santayana’s philosophy was the enlightenment of men in the sphere of values. Like the Greeks, of whom he was very fond, Santayana urged us to ask ourselves whether what we pursue is really for our good. There are passages in his writings which reveal a genuine and profound appreciation of the intrinsic goodness of life. It is difficult to resist the temptation to quote some of the finer flights of Santayana’s spirit. They seem to contradict his contention that this spirit was really vanishing as it lived.

Spirit has its lyric triumphs in childhood and in the simple life: wedding days and moonlight nights and victories in war and soft music and pious trust. It breaks out momentarily in the shabbiest surroundings, in laughter, understanding, and small surrenders of folly to reason. Such moments are far from permanently lifting the soul they visit into a high spiritual sphere; often they come to ne’er-do-wells, poets, actors, or rakes. The spark dies in the burnt paper; yet it had the quality of a flame or a star. All the saint or the sage can add is constancy to that light, so that it colours all their thoughts and actions, turning the material circumstances into almost indifferent occasions. Yet the least disciplined or integrated  of us sometimes feel something within us rising above ourselves, a culmination, a release, a transport beyond distraction. It was but a summer lightning, and the sultriness continues unabated; yet the flash has given us a taste of liberty.37

No doubt the spirit or energy of the world is what is acting in us, as the sea is what rises in every little wave; but it passes through us, and cry out as we may, it will move on. Our privilege is to have perceived it as it moves. Our dignity is not in what we do, but in what we understand. The whole world is doing things. We are turning in that vortex; yet within us is silent observation, which bridges the distances and compares the combatants.38

In the earlier stage of his philosophical development Santayana’s thought was more cheerful and even sang praises to the immortality of human reason. Of course, the eternity of which he speaks cannot exist except in a vision of time, for otherwise “eternity would have no meaning for men in the world, while the world, men and time would have no status in eternity.”39 The real substance of all existence is material and perishable, and the eternal aspect is derivative from it. “If time bred nothing, eternity would have nothing to embalm.”40 However, the vision of the intellect is imperishable, “because  it is ideal  and  resident  merely in import  and intent.”41

Experience is essentially temporal and life foredoomed to be mortal, since its basis is a process and an opposition; it floats in the stream of time, never to return, never to be recovered and repossessed. But ever since substance became at some sensitive point intelligent and reflective, ever since time made room and pause for memory, for history, for the consciousness of time, a god, as it were, became incarnate in mortality and some vision of truth, some self-forgetful satisfaction, became a heritage  that moment could transmit to moment and man to man…

As Archimedes,  measuring  the  hypotenuse,  was lost to events, so art and science interrupt the sense for change by engrossing attention  in its issues and its laws… Unconsciousness of temporal conditions and of the very flight of time make the thinker sink for a moment into identity with timeless objects. And so immortality, in a second ideal sense, touches the mind.42

Nevertheless, for all its poetic beauty, there is a deeply disturbing note in what Santayana conceives to be the life of spirit. This disturbing note rings in the outright assertion of the evanescence and essential futility of human destiny. It is hard to accept Santayana’s analysis of life as a series of little victories on the road to ultimate defeat. Moreover, this analysis carries with it a cognitive claim which our experiences do not seem to bear out. Santayana’s central doctrine – the separation of essence from existence and the consequent characterization of spiritual life as esthetic communion with non­existing, non-efficacious, powerless essences – is a groundless doctrine and rests on distorted evidence. He describes the enjoyment of essences as the pursuit of ideals. But this, as he himself at times admits, is a pursuit of futility. To believe in ideals that are plainly irrelevant to the actual course of our life and, apart from esthetic titillation, make no difference to it, is not only futile, but also often irresponsible. Essence is what an ideal becomes when it loses all vitality.

The  radical  disillusionment  of Santayana  is really the result of his analysis of human ideals. If thought is indeed a surface function, then of course, futility is the only answer and we should exclaim with Ecclesiastes: All is vanity! This is where the unwarranted separation of essence from existence, of contemplative and esthetic enjoyment from practical involvement in the affairs of living, does its real damage. If pressed to ultimate conclusion, it should lead not only to renunciation and to ivory tower living, but also to utter indifference, irresponsibility, and at best to an egoistic pursuit of Epicurean contentment. Santayana often speaks like his favorite poet Lucretius. “If you have seen the world, if you have played the game and won it, what more would you ask for? If you have tasted  the sweets of existence, you should be satisfied; if the experience has been bitter, you should be glad it comes to an end.”43

It is true enough that ideas by themselves have no physical efficacy. But it is equally true that human beings equipped with ideas do have such efficacy. At least their lives become different when they entertain their ideas seriously and guide their activity in accordance with them. In a sense, Santayana’s disenchanted and wintry wisdom reflects our modem disillusionment in man’s rational capacity and in his ability to shape the world for his own good. Undoubtedly, recent political and social upheavals furnish enough material for skepticism about man’s use of his powers. Global wars and the threat of atomic annihilation show us how precarious our individual existence is and how little we can do to alter our personal fate. But this does not mean that all efforts to avert disaster on the part of thinking men are doomed to failure. Paradoxically enough, it is the ideas in some people’s minds that really expose us to the atomic threats. Those ideas are a threat because they are accompanied by an effective grasp and control of nature’s powers and resources. To a significant extent our fortunes depend on what kind of ideas and ideals we and our fellowmen shall embrace as our guides. Not only does our mutual survival or mutual destruction depend on the ideas we shall embody in our living, but also the very meaning of life will receive its import from the ideals we shall choose to follow. Our choices will have practical effects in our natural life. And it is because of its possible real effects that an idea is or is not worth embracing and following. Fortunately, much of Santayana’s moral wisdom stands firmly in spite of his gloomy estimate of human aspirations. The ideal of brotherhood and love, expressed by him in the essay on ‘Ultimate Religion,’ could hardly find a more effective statement.

To love things spiritually, that is to say, intelligently and disinterestedly, means to love the love in them, to worship the good which they pursue, and to see them all prophetically in their possible beauty. To love things as they are would be a mockery of things: a true lover must love them as they should wish to be. For nothing is quite happy as it is, and the first act of true sympathy must be to move with the object of love toward its happiness.44

Notes

  1. The Philosophy of George Santayana,  Schilpp,  ed., p. 602.
  2. Ibid., p. 603.
  3. Character and Opinion in the United States, p. 171.
  4. Ibid., p. 175.
  5. Schilpp, pp. 601-2.
  6. The Idler and His Works, Saturday Review, May 15, 1954, p. 6.
  7. Winds of Doctrine, p. 214.
  8. Scepticism and Animal Faith, Preface, p. v.
  9. Realms of Being (subsequently abbreviated: RoB), p. 204.
  10. Scepticism and A.F., p. 35.
  11. RoB, p. 189.
  12. The Idler and His Works, p. 48.
  13. RoB, p. 190.
  14. Ibid ., p. 218-9.
  15. Irwin Edman in Saturday Review, October 18, 1952.
  16. RoB, p. 554.
  17. Ibid., p. 762.
  18. Ibid., p. 562.
  19. Ibid., p. 550.
  20. Ibid., p. 567.
  21. Ibid., p. 550.
  22. Ibid ., p. 618.
  23. Ibid., p. 552.
  24. Ibid., p. 632.
  25. R. B. Peny, Thought and Character of William James, II, p. 404.
  26. RoB, p. 567.
  27. Ibid., p. 703.
  28. Ibid., p. 649.
  29. The Idler and His Works, p. 49.
  30. RoB, p. 679.
  31. Ibid., pp. 702-3.
  32. Ibid., pp. 704-5.
  33. The Life of Reason, 1954 ed., p. 365.
  34. RoB, p. 620.
  35. Ibid., p. 643.
  36. Ibid., p. 724.
  37. Ibid., p. 756.
  38. Winds of Doctrine, p. 199.
  39. Life of Reason, p. 294.
  40. Dialogues in Limbo, p. 174.
  41. Life of Reason, p. 292.
  42. Ibid ., pp. 92-6.
  43. Ibid., p. 295.
  44. Classic American Philosophers, M. Fisch, ed., pp. 323-4.

                                                                                                                             

Notes. Public lecture delivered at the Rice Institute on November 28, 1954. Published in The Rice Institute Pamphlet – Rice University Studies, 42 (3): 101-124, 1955.

Konstantin Kolenda (1923-1991) was a Polish-born American philosopher, a professor at Rice University, in Houston, Texas, and author of several books. He studied philosophy and German at Rice University, and after graduating in 1950, he attended Cornell University, where he attained a PhD in Philosophy in 1953.

Editorial. Friendship then and now

The revered British writer and lay theologian C.S. Lewis said that “friendship is born at that moment when one person says to another ‘What! You, too’? I thought I was the only one”. Lewis formula for friendship requires conversation, of the face-to-face type, which psychologists associate with engagement, empathy, and instant resonance of thought. The kind of friendship that Lewis referred is based on acceptance and freedom, which is why people would select their friends for their virtues, which included sensitivity to read each other’s mind. However, this type of friendship is now very rare due to the demise of face-to-face conversation, in an era when people prefer to communicate with one another electronically. Nowadays, people can have dozens of friends but friendship is flimsy, if not fulsome, for it is based on perceptions of the images people project of themselves. On top of that, maintaining numerous friends can be exhausting, as people are compelled to spend a lot of their time staring at some electronic device. This means that, unlike the old-fashioned type of friendship, the new type is not free, as people are imprisoned inside a vicious circle of reward-motivated behaviour.

Many sages of the ancient world recognized the importance of friendship, and the most noteworthy of them is Aristotle, to who treated friendship (philia) as a by-product of virtue. Aristotle’s view on friendships is the topic of a magnificent essay by the American philosophers Neera K. Badhwar and Russell E. Jones, presented here in Portuguese. Three other essays offered in this issue are about remarkable friendships of the old-fashioned type: Montagne and La Boetie, George Santayana and Frank Russell, and Anna-Teresa Tymieniecka and Pope John Paul II.

The two books reviewed in this edition also relate to friendship. They are Sherry Turkle’s Reclaiming Conversation: the power of talk in a digital age (Penguin, 2015), and  Jaron Lanier’s Ten Arguments for Deleting Your Social Media Accounts Right Now (Bodley Head; 2018). Both books highlight the unintended consequences of the technological wonders of the Digital Age such as social conditioning and mental manipulation. Turkle, a social scientist who has been studying digital culture for over thirty years, points out how we are constantly checking out smartphones and depriving ourselves of spontaneous interaction and from solitude. Lanier, a scientist and entrepreneur who pioneered virtual reality, tackles the insidious use of our personal data by the social media companies and points as a solution to change its business model from the current one which is based on advertising to a new one based on charging a fee to users.

In addition to the above, this edition also offers two items on George Santayana (1863-1952), a Spanish American philosopher, poet and humanist born in Avila, Spain, which I believe readers of PortVitoria would appreciate.

Joaquina Pires-O’Brien

July 2019

 

How to reference

Pires-O’Brien, J. Editorial. Friendship then and now. PortVitoria, UK, v.19, Jul-Dec, 2019. ISSN 2044-8236.

Joaquina Pires-O’Brien

Se suponía que el año 1968 anunciaría una revolución contra el establishment. Como todas las revoluciones, 1968 tenía un objetivo noble, que era instalar una sociedad más libre y más justa. En retrospectiva, 1968 ha sido degradado de una revolución a una serie de revueltas contra el patriarcado, la represión social, el capitalismo y las formas de vida ordinarias etiquetadas como ‘burguesas’, así como contra el imperialismo y la Guerra de Vietnam. Todavía, dejó devastadoras consecuencias para la sociedad, como si hubiera sido una revolución.

Hilos ideológicos y actitud mental

1968 fue el pináculo de las revueltas de la década de 1960. Su ideología tenía varios hilos ideológicos entrelazados que incluían el Romanticismo, el Existencialismo, el Marxismo, la vieja izquierda, la nueva izquierda y el Posmodernismo, así como una mentalidad específica contra las guerras y una fijación con la vida auténtica.

El Movimiento Romántico fue una revuelta del siglo XIX contra la restricción clásica en las artes y los rigores de la ciencia, con orígenes en los siglos XVII y XVIII, especialmente en la religión. El romántico por excelencia del siglo XIX fue Johan Gottfried Herder (1744-1803), el diseminador de la idea del Volksgeist o ‘el espíritu del pueblo’, una noción convincente de que cada nación tiene una cultura natural la cual resulta de su propia necesidad de significado.

El existencialismo o la filosofía de la existencia, es también un producto del siglo XIX, y gira en torno a la ansiedad del ser y la búsqueda de la esencia del ser. Su principal fundador fue Søren Kierkegaard (1813-1855), que fijose en el proceso histórico del yo. Otros articuladores del existencialismo son: Fiódor Dostoievski (1821-1881), Friedrich Nietzsche (1844-1900), Edmund Husserl (1859-1938), José Ortega y Gasset (1883-1955), Martin Heidegger (1889-1976) y Jean-Paul Sartre (1905-1980).

El marxismo se refiere a la teoría socialista de Karl Marx (1818-1883), que se basa en la dialéctica tripartite de la filosofía de la historia del filósofo alemán Georg W. F. Hegel (1770-1831): tesis, antítesis y síntesis. En la teoría socialista de Marx, la tesis es la sociedad burguesa, que se originó a partir de la desintegración del régimen feudal; la antítesis es el proletariado, que se originó del desarrollo de la industria moderna, siendo expulsado de la misma por la especialización y la degradación, por lo cual deberá, en un dado momento, volverse contra ella; y la síntesis es la sociedad comunista que resultará del conflicto entre la clase trabajadora y las clases propietarias y empleadoras, concretamente, la armonización de todos los intereses de la humanidad después de que la clase trabajadora se haga cargo de las plantas industriales.

La vieja izquierda y la nueva izquierda son ambas fincadas en la doctrina socialista de Karl Marx (1818-1883), aunque la nueva izquierda incorporó las contribuciones de otros socialistas tales como el filósofo italiano Antonio Gramsci (1891-1937). El principal objetivo de la vieja izquierda era apoyar la revolución obrera que Marx había profetizado; sus adeptos consistían principalmente en comunistas prosoviéticos, socialistas revisionistas, trotskistas, maoístas, anarquistas, etc.

La nueva izquierda consistía de una nueva versión del pensamiento marxista, donde el paradigma revolucionario de Marx es reemplazado por una resistencia pasiva del establishment, que incluye aceptar las rutinas burocráticas como un medio para la ocupación de las instituciones. El movimiento más expresivo para la ideología de la nueva izquierda fue la Escuela de Frankfurt[1], que en 1933 fue transferida a la Universidad de Columbia en Nueva York. Este enlace de Columbia con la Escuela de Frankfurt es significativo, ya que Columbia se convirtió en el epicentro cultural estadounidense de 1968

El Posmodernismo, cuyos principales idealizadores son Michael Foucault (1926-1984), Jean-François Lyotard (1924-1998), Jacques Derrida (1930-2004) y Richard Rorty (1931-2007),  consiste básicamente en una desconfianza general de las grandes teorías y ideologías, así como una reacción contra la modernidad y la negación del progreso. De acuerdo con la doctrina posmoderna, no existe el ‘conocimiento objetivo’ o el ‘conocimiento científico’, o incluso una ‘moral mejor’, porque todo es opinión, y cada tipo de opinión es tan bueno como otro.

Los intelectuales que inspiraron 1968

Como todos los levantamientos de la Historia, 1968 tuvo sus agitadores intelectuales. Los intelectuales más prominentes de 1968 vinieron de Francia y Alemania, siendo los dos más destacados Jean-Paul Sartre (1905-1980) y Herbert Marcuse (1898-1979). Sartre y Marcuse se destacaron por su conexión con los estudiantes universitarios y con el público los cuales estaban ansiosos por las incertidumbres de la Guerra Fría. También se podría argumentar que la razón de esa  fuerte conexión fue que los escritos de Sartre y Marcuse encajaban bien con la mentalidad dominante de la época.

Sartre popularizó su propia versión del Existencialismo, la cual incluía la noción de que el comunismo representaba el deseo del pueblo y ofrecía una forma de vida auténtica, en oposición a la forma de vida inauténtica que se encuentra en el capitalismo. Marcuse popularizó una especie de socialismo que no exigía guerras, y podría lograrse invadiendo y ocupando las instituciones establecidas. También cabe a el, la popularización de la noción de amor libre.

Sartre

Sartre diseminó una especie de Existencialismo en el que el significado y la autenticidad podrían estar vinculados en el comunismo. En 1960 hizo una gira por América Latina, acompañado por su compañera, la filósofa Simone de Beauvoir (1908-1986), quien también fue una figura destacada entre los intelectuales franceses. La pareja visitó Cuba, donde fueron recibidos por Fidel Castro y Ché Guevara, entonces su Ministro de Finanzas. En Brasil, donde fue acompañado por Jorge Amado (1912-2001), Sartre habló en varias universidades, y uno de sus intérpretes fue el joven Fernando Henrique Cardoso (nacido en 1931), futuro presidente de Brasil. En 1964, Sartre fue galardonado con el premio Nobel de Literatura, lo cual rechazó con el argumento de que era una institución occidental y que aceptarlo podría ser percibido como tomar partido en el presente conflicto Occidente y Oriente.

El enfoque de Sartre sobre el existencialismo se centró en la noción de la vergüenza, o la forma en que otros lo veían, acerca da cual el no tenía control; es a partir de esta reflexión que se le ocurrió la frase “el infierno son los otros”. La comprensión de Sartre de la libertad era particularmente única, y para él el camino hacia la libertad era más importante que la libertad misma. Por lo tanto, cuando los manifestantes franceses tomaron las calles y la policía francesa respondió con fuerza, Sartre predicó una contraviolencia a la violencia de la policía. Aunque los libros de Sartre fueron muy bien considerados por la generación asociada con 1968, él se equivocó con respecto al comunismo y al régimen soviético. Su vida personal no fue ejemplar, como se revela en sus biografías.

Marcuse

Marcuse enseñó en el Instituto de Investigación Social de Frankfurt, que fue restablecido en la Universidad de Columbia, Nueva York, después de su clausura por los nazis en 1933. En ese momento, huyó a Ginebra y de allí a los Estados Unidos, junto con su sus colegas Max Horkheimer (1895-1973) y Theodor Adorno (1903-1969). Durante la Segunda Guerra Mundial, Marcuse se desempeñó como oficial de inteligencia, y, en la década de 1950, cuando el Instituto de Frankfurt regresó a Europa, el decidió quedarse en los Estados Unidos y naturalizarse como ciudadano estadounidense. En 1955, el publicó Eros and Civilization, donde combinó a Freud y Marx para crear una doctrina de liberación sexual y política al mismo tiempo, y en lo cual introdujo el lema “Haz el amor, no la guerra” en el centro de las revueltas de 1960. Marcuse se convirtió en una celebridad a los 66 años, con su libro El hombre unidimensional, de 1962, donde la palabra ‘unidimensional’ en el título se refiere al aplanamiento del discurso, la imaginación, la cultura y la política en la sociedad. En él, Marcuse sugirió una ruptura con el sistema actual para dar paso a una ‘existencia bidimensional’ alternativa. Tanto Eros y Civilization cuanto El hombre unidimensional ayudaron a promover la nueva izquierda con la población estudiantil. Los pensamientos de Marcuse sobre la creación de una sociedad emancipada sin una revolución socialista se encuentran resumidos en Un ensayo sobre la liberación, publicado en 1969, considerado una descripción instantánea del utopismo revolucionario en la década de 1960.

El tipo de socialismo predicado por Marcuse era una completa negación de la sociedad existente y una ruptura con la historia previa que proporcionaría un modo alternativo de existencia libre y feliz con menos trabajo, más juego y la reducción de la represión social. El utilizó la terminología marxista para criticar las sociedades capitalistas existentes e insistió en que la revolución socialista era la forma más viable de crear una sociedad emancipada. Marcuse fue considerado un hedonista irresponsable por Erich Fromm (1900-1980)[2], el filósofo social estadounidense y psicoanalista que también era un refugiado alemán. La ingratitud de Marcuse hacia el país que lo recibió como refugiado se manifiesta en sus escritos, donde describió a los Estados Unidos como ‘preponderantemente maléfico’.

Los primeros críticos de las revueltas de los años 60: Aron y Habermas

De los primeros críticos de las revueltas de los sesenta, los dos más significativas fueron Raymond Aron (1905-1983) y Jürgen Habermas (1929). Tanto Aron como Habermas habían sido socialistas cuando eran jóvenes y ambos estudiaron profundamente el socialismo y Karl Marx. Ambos siguieron describiéndose a sí mismos como miembros de la izquierda incluso después de convertirse en sus principales críticos, consideraron a las masas como un camino para el totalitarismo y creyeron que una amplia reforma universitaria podría ser la solución a los disturbios de 1968. Por último, no menos importante, ambos eran odiados por los estudiantes.

En 1969, Aron publicó La Revolution Introuvable, traducida al año siguiente para el inglés como The Elusive Revolution (La revolución elusiva), en la que se refirió a los acontecimientos de mayo de 1968, como un “psicodrama” en que “todos los involucrados imitaban a sus grandes antepasados y desenterraban modelos revolucionarios consagrados en el inconsciente colectivo”- una referencia a la Revolución Francesa de 1789 y el Reino del Terror que creó. El libro recibió críticas negativas en Francia y en los Estados Unidos[3].

Habermas, que ha publicado docenas de libros y ensayos, es el filósofo viviente más importante de Alemania. Aunque tenga estudiado en el Instituto de Frankfurt, se alejó de su influencia marxista y creó su propia escuela de pensamiento. Su crítica de las revueltas estudiantiles de la década de 1960 es muestreada en algunos de sus ensayos, como ‘El movimiento en Alemania’. En su libro de 1962 Strukturwandel der Öffenlicheit, que apareció en inglés solo en 1989, como The Structural Transformation of the Public Sphere (La transformación estructural de la esfera pública), criticó muchas de las teorías en el centro de las revueltas de los estudiantes. Habermas señaló el papel especial de las universidades como plataformas del debate de la esfera pública, y que los estudiantes más radicales estaban eliminando la posibilidad de discusión. También reconoció los nuevos movimientos ambientales que surgieron de las revueltas de los años sesenta.

El ‘nosotros y ellos’ de 1968: Una estrategia de identidad

Los articulistas de 1968 crearon una división social de tipo ‘nosotros y ellos’, donde el ‘nosotros’, o ‘los participantes de 1968’, eran los buenos que tenían la intención de crear un mundo mejor, mientras que los ‘ellos’ eran los malos, etiquetados como ‘contrarrevolucionarios’ o ‘reaccionarios’. De hecho, los ‘ellos’ reaccionarios eran una minoría, y una mejor descripción de los ‘ellos’ es ‘la mayoría silenciosa’, gente común que estaba demasiado ocupada viviendo su vida ordinaria.

La razón subyacente de la división de ‘nosotros y ellos’ entre los comprometidos y los no comprometidos era crear una identidad de grupo que pudiera servir al objetivo político de obtener poder a través de la ocupación de las instituciones. La mentalidad de 1968 dio identidad grupal a los que una vez fueron estudiantes rebeldes, y de esa identidad de grupo ganaron poder, al menos dentro de la academia. La mayor evidencia de esto son las guerras culturales de los años 1980 y 1990 en los Estados Unidos. Aunque hay indicios de conflictos académicos similares en Europa y en muchos países de América Latina, no hay estudios críticos significativos disponibles sobre el tema.

Cuando el filósofo británico Roger Scruton escribió Thinkers of the New Left (Pensadores de la nueva izquierda) en 1985, fue condenado al ostracismo por el establishment académico en Gran Bretaña, que presionó a Longman House, su editor, para que retirase los libros de las librerías. Al darse cuenta de que no obtendría otro trabajo académico en Gran Bretaña, Scruton decidió obtener una nueva formación como abogado y continuó su carrera académica fuera de Gran Bretaña. Durante este tiempo, Scruton modificó el manuscrito original y le agregó secciones, como Fools, Frauds y Firebrands (Tolos, fraudes y militantes: pensadores de la nueva izquierda) que se publicó en 2015. Solo entonces Scruton fue tomado en serio. Finalmente, a la edad en que la mayoría de la gente se retira, Scruton se convirtió en profesor de Filosofía en la Universidad de Buckingham y en 2016 fue nombrado caballero (‘knight’) por la reina Elizabeth II, para servicios à filosofía, enseñanza y educación pública.

Consecuencias sociales de 1968

1968 también es conocido como ‘el año largo’ porque su espíritu continuó. Sus revueltas intentaron crear una sociedad mejor, sin embargo, a pesar de sus buenas intenciones, 1968 tuvo varias consecuencias sociales non intencionadas desde el sofocar del debate en la esfera pública, y la ampliación del populismo político, hasta la fragmentación social que resultó del multiculturalismo sin interculturalismo.

Populismo se refiere a acciones deliberadamente planificadas para atraer a la mayoría de las personas. Dado que las personas son reconocidas como soberanas en cualquier democracia, el populismo parece ser algo bueno. Sin embargo, no existe una sola voluntad política atribuible al pueblo, y lo que el populista hace es engañar a la gente para que crea lo contrario. Los líderes políticos populistas están bien entrenados en el arte de la persuasión. Un ejemplo que ocurre con frecuencia es el de un candidato que convence a la gente de que merece que se le confíe porque él es uno de ellos, cuando ‘ser uno de ellos’ simplemente significa que no tiene las habilidades correctas de uno estadista.

El multiculturalismo se refiere a la doctrina de considerar a cada individuo, y cada cultura en la cual los individuos participan, como igualmente valiosos. Aunque aparentemente esto es algo bueno, la aceptación de ciertas prácticas culturales podría infringir los derechos humanos de las personas, como lo ejemplifica la mutilación genital femenina (MGF) y el matrimonio de niños.

La fragmentación social es también un fenómeno creciente en las democracias occidentales. En su libro The Once and Future Liberal: After Identity Politics (El liberal/progresista de ayer y del futuro), Mark Lilla (nacido en 1956) ilustra el problema en los Estados Unidos, que puede inferirse del crecimiento de la política de identidad, que se refiere a activismos basados en un único descriptor unificador, como ser una mujer, negra o LGBT (lesbiana, gay, bisexual y transgénero) – creada para resolver el problema de la exclusión social o política. Para Lilla, al mantener a las minorías separadas de la sociedad dominante, las políticas de identidad no ayudan a las minorías a ganar poder político al obtener más escaños en el gobierno local. Aunque el libro de Lilla se ocupa de la situación en los Estados Unidos, la política de identidad también es común en América Latina.

La revolución estudiantil de 1968 fue un movimiento de masa, y, como todos los movimientos de masa, consistió en la acción de líderes instigadores y maltas de seguidores (el hoi polloi o el populacho). Aunque muchos de los líderes instigadores de 1968 acabaron por entender que los problemas asociados a las idealizaciones de la sociedad, las maltas de seguidores continuaran a soñar con la sociedad ideal y a buscar intervenciones sociales de un tipo de otro. Ejemplos de este último son los grupos armados de izquierdistas que aún viven en los bosques africanos y latinoamericanos.

Han pasado casi cincuenta años para que 1968 se entienda correctamente. Desafortunadamente, demasiado tarde para evitar sus consecuencias sociales no deseadas.

Referencias

Aron, Raymond. Thinking Politically: A Liberal in the Age of Ideology, New Brunswick, NJ, Transaction Publishers, 1997.

Habermas, Jürgen (1989). The Structural Transformation of the Public Sphere. Cambridge, Polity Press, 1992. Reprint of 2011.

Lilla, Mark. Once and Future Liberal: After Identity Politics. New York, Harpers, 2017.

Marcuse, Herbert. An Essay on Liberation. Boston, Beacon Press, 1969.

Scruton, Roger (1985). Fools, Frauds and Firebrands: Thinkers of the New Left. London, Bloomsbury, 2015.

 

Notas

Traducción: J Pires-O’Brien (UK)

Revisión: E Gwyther (UK)

 

[1] La Escuela de Frankfurt, un movimiento de sociología inspirado en el marxismo también conocido como ‘teoría crítica’. El movimiento en sí surge del Instituto de Investigación Social (Institut für Sozialforschung), que estaba adscrito a la Universidad Goethe en Frankfurt, después de que fuera fundado en 1923 por Felix Weil. Otros nombres asociados con la Escuela de Frankfurt son Friedrich Pollock, Max Horkheimer, Erich Fromm, Wilhelm Reich, Leo Lowenthal, Theodor Adorno y Walter Benjamin. Después de 1933, los nazis forzaron su cierre, y el Instituto fue trasladado a los Estados Unidos, donde encontró hospitalidad en la Universidad de Columbia, en la ciudad de Nueva York. Después de la Guerra, el Instituto fue restablecido, y el miembro más notorio de esta nueva generación fue Jürgen Habermas, aunque más tarde abandonó tanto el marxismo como el hegelianismo.

[2] Aquí hay una cita de Erich Fromm sobre la liberación sexual de la década de 1960: “El hecho de que millones de personas compartan los mismos vicios no hace que estos vicios sean virtudes, el hecho de que compartan tantos errores no hace que los errores sean verdades, y el hecho de que millones de personas compartan la misma forma de patología mental no hace que estas personas estén sanas “.

[3] Aron encontró el reconocimiento al final de su vida, especialmente después de la publicación de sus memorias, un mes antes de su muerte, el 17 de octubre de 1983.